Mostrando postagens com marcador fazenda de café. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador fazenda de café. Mostrar todas as postagens

domingo, 5 de outubro de 2025

Da Terra do Pó às Terras Vermelhas de Rio Claro – De Ramodipalo a Mombuca


 

Da Terra do Pó às Terras Vermelhas de Rio Claro 

De Ramodipalo a Mombuca


O ano de 1886 trouxe consigo um vento gelado sobre os campos alagadiços de Ramodipalo Rasa, pequena localidade do município de Lendinara, na província de Rovigo. Domenico Azzolino, nascido em 1º de novembro de 1861, sabia que sua vida já estava marcada pelas águas do Pó e pela miséria sem fim que assolava aquelas terras. Sua esposa, Giudite Osti, nascida em 8 de setembro de 1867, compartilhava da mesma resignação. O solo parecia fértil apenas para a fome: milho mirrado, trigo que se perdia com as chuvas, e os vastos arrozais de Ramodipalo, embora abundantes, raramente beneficiavam os camponeses, que trabalhavam neles apenas como diaristas, sem jamais provar da prosperidade que produziam. Nada havia para os filhos pequenos, e nada haveria no futuro. A emigração não era escolha, era a última esperança. A decisão foi tomada como se fosse sentença. Venderam o pouco que tinham, juntaram as moedas, despediram-se da antiga casa de pedra e barro que guardavam memórias e partiram. A travessia do Atlântico começava.

No porto de Gênova, uma multidão de camponeses amontoava-se em filas desordenadas. Homens de mãos calejadas, mulheres de olhos cansados, crianças agarradas às saias das mães. Os navios eram fortalezas flutuantes, carregados não apenas de corpos, mas de ilusões. Domenico embarcou com Giudite e os dois filhos pequenos, levando na mala alguns utensílios, uma muda de roupas e um punhado de sementes de milho, como se pudesse, com aquilo, transportar um pedaço da pátria. A bordo, o tempo dissolvia-se em dias intermináveis. O espaço exíguo no porão cheirava a suor, maresia e doença. A comida, distribuída em porções miseráveis, misturava caldo ralo com pedaços de carne salgada. O mar, ora espelho, ora monstro, lembrava-os de que a viagem não tinha retorno. Crianças choravam noite adentro, velhos gemiam com febres. A cada enterro no oceano, quando um corpo era lançado às ondas envolto em lençóis brancos, o silêncio dos passageiros tornava-se mais pesado que o barulho das ondas.

Quando, finalmente, a silhueta do litoral brasileiro surgiu no horizonte, uma onda de alívio percorreu os emigrantes. Mas o desembarque em Santos trouxe mais medo que esperança: palmeiras se erguiam como sentinelas estranhas, o calor sufocava, os mosquitos zuniam em enxames. Dali, reunidos em um grande grupo, foram levados de trem para o interior de São Paulo, até Rio Claro, onde a Fazenda Bela Vista os aguardava.

A fazenda, propriedade dos irmãos Ribeiro, brasileiros de origem portuguesa, era um verdadeiro império de café. Fileiras intermináveis de pés verdes cobriam o horizonte, como um mar vegetal sem fim. Mas por trás da grandiosidade escondia-se a realidade brutal: trabalho incessante, dívidas no armazém da fazenda, alojamentos improvisados. Domenico e Giudite não tiveram escolha. Assinaram com as mãos trêmulas o contrato de colonos, sem entender cada cláusula, mas conscientes de que não havia outra saída.

A lida começava antes da luz da aurora, quando o sino da fazenda convocava os trabalhadores. Os colonos avançavam para o campo com enxadas, sacos e cestos, sob a vigilância dos feitores. O calor do meio-dia queimava a pele até abrir feridas; a chuva transformava o terreno em lama onde se afundava até os joelhos. O café exigia força, paciência e uma resistência quase sobre-humana.

Foi nesse ambiente que a tragédia se aprofundou. Domenico e Giudite já haviam perdido dois filhos na Itália, mas não imaginavam que as febres do Brasil arrancariam deles também os dois pequenos que haviam trazido. Enterraram as crianças em covas rasas, sob uma cruz improvisada, enquanto o trabalho não cessava. O luto era sufocado pelo toque do sino, que obrigava a todos a voltar ao campo.

A vida, porém, teimava em continuar. Vieram novos filhos: Guerino, Domingos, José, Albino e Teresa. Cada nascimento era uma vitória contra a terra hostil. Mas as dívidas cresciam no armazém da fazenda, onde cada saco de farinha, cada punhado de sal, era anotado com rigor no livro dos feitores. Para escapar à ruína, Domenico reduziu o sustento da família ao essencial. A polenta tornou-se o alimento de cada refeição, acompanhada apenas pelo suco das laranjas que apanhavam. O milho para a farinha ele conseguia trocando milhete no engenho de açúcar da Fazenda Itaúna.

Ainda assim, persistiam. Com permissão dos patrões, criavam dois porcos e algumas galinhas. Giudite enchia os quintais de vozes infantis e de canto de pássaros. O pouco transformava-se em muito, pela obstinação com que se agarravam à sobrevivência.

Anos de suor, silêncio e economia renderam frutos. Domenico e Giudite conseguiram juntar o suficiente para abandonar a condição de colonos assalariados. Compraram um terreno de terra fértil em Mombuca, não muito distante. Ali, pela primeira vez, respiraram o ar da liberdade. Construíram uma casa simples, cercada de lavouras próprias, e receberam de volta os filhos já casados, que ergueram suas famílias ao redor. Netos correram pelo pátio de terra batida, enchendo de risos o espaço que antes fora marcado pela morte.

Somente Teresa, a filha, não os acompanhou. Casada com Angelo Marino, também de origem italiana, fixou-se na Fazenda Santa Gertrudes, onde o marido trabalhava como um capataz. Ainda assim, a união familiar resistia à distância, como um fio invisível que mantinha todos ligados àquele núcleo fundado pelo sacrifício dos pais.

Em Mombuca, a vida encontrou um ritmo mais lento, sem, contudo, perder o peso da luta cotidiana. A pequena propriedade não lhes ofereceu riqueza, mas deu-lhes autonomia. Ali, já não eram obrigados a responder ao sino dos feitores, nem a comprar fiado no armazém da fazenda. Plantavam o que precisavam, criavam animais, e o que sobrava era trocado ou vendido nas feiras da região.

O tempo corria, trazendo casamentos dos filhos e o nascimento de netos que enchiam o terreiro com brincadeiras barulhentas. A casa, feita de madeira e barro, nunca foi grande, mas era suficiente para abrigar visitas frequentes. Ao redor, ergueram-se outras moradias simples, construídas pelos filhos, até que o pequeno núcleo familiar tomou ares de comunidade.

A velhice, porém, não trouxe apenas satisfação. Domenico carregava nos ossos o cansaço de décadas de trabalho duro, e seus silêncios prolongados denunciavam as lembranças que nunca se apagavam: a travessia pelo oceano, a fome dos primeiros anos e, sobretudo, os filhos perdidos ainda pequenos. Giudite, mais resistente, sustentava a rotina da casa, mas também se deixava vencer por recordações amargas, especialmente ao recordar os enterros apressados em solo estrangeiro.

As noites eram longas. Sentados sob o alpendre, ouviam os sons da mata misturados ao burburinho distante das vozes dos filhos. Às vezes, o silêncio pesava tanto quanto o trabalho dos tempos de colônia. Não falavam das dores, mas elas estavam presentes, invisíveis, em cada olhar cansado, em cada suspiro.

Aos poucos, Domenico e Giudite passaram a ser vistos como referências entre os filhos e vizinhos. Não porque fossem figuras grandiosas, mas porque haviam sobrevivido a tudo: ao desterro, à perda, ao trabalho sem fim. Tornaram-se testemunhas vivas de uma época em que milhares haviam cruzado o mar, e em cada ruga de seus rostos havia a marca dessa travessia.

Quando os anos avançaram ainda mais, e a vida começou a se esvair em silêncio, o casal já estava cercado por gerações que não haviam conhecido Rovigo, nem as águas do Pó, nem o medo dos primeiros dias no Brasil. Esses descendentes corriam livres pelos campos de Mombuca, alheios ao peso da história. Para Domenico e Giudite, essa era talvez a única vitória possível: deixar para os filhos e netos uma terra onde já não fosse preciso recomeçar do nada.

E assim se encerrou o percurso de dois imigrantes comuns, nem mais fortes nem mais fracos do que tantos outros, que viveram e morreram no interior paulista. A vida deles não foi marcada por glórias, mas por sobrevivência. E, no silêncio das suas memórias, encontrava-se a verdade mais dura e mais simples da grande imigração italiana: abandonar tudo, perder muito e, ainda assim, permanecer.

Nota do Autor

A trajetória de Domenico Azzolino e Giudite Osti não foi isolada. Entre 1870 e 1920, mais de um milhão e meio de italianos atravessaram o Atlântico em direção ao Brasil, muitos deles vindos do Vêneto, da Lombardia e do Piemonte. Assim como eles, deixaram para trás aldeias pobres, campos alagadiços ou montanhosos, e encontraram nas fazendas de café do interior paulista uma nova forma de sobrevivência. A vida dos Azzolino refletia a experiência de milhares: contratos mal compreendidos, dívidas no armazém, a fome vencida com polenta, a perda de filhos ceifados por doenças tropicais. Mas também revelava a lenta conquista da terra própria, a criação de novas gerações enraizadas no Brasil e a construção de pequenas comunidades familiares que se multiplicaram ao redor das antigas fazendas. Seus descendentes, espalhados hoje por diferentes cidades e regiões, carregam em silêncio essa herança feita de trabalho, sacrifício e persistência. E, na memória coletiva da imigração italiana, histórias como a de Domenico e Giudite são lembradas não como epopeias grandiosas, mas como a essência mesma da sobrevivência: homens e mulheres comuns que, ao abandonar sua terra natal, ajudaram a transformar o Brasil em um país de muitas pátrias.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta


quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Caminho de Terra Vermelha

 


Caminho de Terra Vermelha

A vida de Cesare Travaglini, emigrante da Úmbria para o Brasil


Úmbria, Reino da Itália — Outubro de 1887

Naquele outono tardio, os campos da Úmbria pareciam ter desistido da colheita. A chuva fina se infiltrava pelas telhas de ardósia e os ventos gelados rasgavam as estradas de terra como se quisessem apagar os rastros de uma geração inteira que se preparava para partir. Cesare Travaglini, com vinte e dois anos e os olhos carregados de inquietude, sentia que não pertencia mais àquelas colinas cobertas de oliveiras retorcidas. Era o primogênito de sete filhos, neto de camponeses, filho de um sapateiro que há muito desistira de sonhar. Seu pai, Giovanni, aceitava a miséria com resignação endurecida. Quando ouviu do filho a palavra “emigração”, cuspiu no chão como quem rejeita uma praga. Mas sabia que a pobreza não segurava ninguém. E quando finalmente consentiu com a partida, fê-lo com a frieza de quem sabia o que o aguardava do outro lado: “A terra dos outros, Cesare... te cobra em carne o que oferece em pão.”

Cesare partiu numa madrugada escura, levando apenas um terço da mãe, um caderno de anotações e a coragem de quem não tem mais onde cair morto. Deixava para trás os irmãos esfomeados, a casa com goteiras, os olhos silenciosos da mãe à porta. Seu destino: o Brasil.

Porto de Gênova — Novembro de 1887

O navio Príncipe de Asturias zarpou sob céu de chumbo, carregando quinhentas almas comprimidas no porão. Não havia espaço para a dignidade — apenas corpos empilhados como mercadoria de segunda ordem, sacudidos pelo mar e pela incerteza. O cheiro de suor, enjoo e medo se espalhava pelos corredores como uma névoa que não cedia. Era um odor espesso, pegajoso, impregnado nas roupas, na pele e nos pensamentos. Ratos corriam entre os fardos de bagagem, disputando migalhas com crianças desnutridas. Os gritos de náusea misturavam-se às preces sussurradas em dialetos que já morriam antes mesmo de cruzar o Atlântico.

Crianças choravam sem consolo, agarradas às saias das mães ou a pedaços de pão duro. Mulheres rezavam com os olhos fechados, murmurando ladainhas de aldeias esquecidas, invocando santos que o Novo Mundo talvez não conhecesse. Homens se agarravam a cartas amareladas, dobradas com reverência, como se fossem mapas para a terra prometida. Eram palavras escritas com esperança e exagero por parentes que juravam ter encontrado fartura além-mar — terras férteis, colheitas abundantes, salários em moeda forte, casas com telhado e liberdade com nome próprio.

Durante os trinta e três dias de viagem, Cesare escreveu, mesmo doente. A febre vinha em ondas, como o próprio mar. Suas mãos tremiam, mas ele não largava o lápis. Registrava tudo como quem finca estacas numa terra ainda invisível. Descreveu a tempestade que quase os jogou contra os rochedos das Canárias — os gritos, o ranger do casco, o estômago virado do navio e das almas. Homens rezavam em voz alta, outros se calavam como condenados. Um barril solto esmagou o braço de um estivador. Cesare anotou até a cor do sangue escorrendo pelo convés.

Descreveu o rosto de um menino de Piacenza que morreu no quinto dia e foi lançado ao mar embrulhado num lençol — o corpo leve demais, quase sem peso, como se o oceano o tivesse chamado de volta antes mesmo de ele conhecer a terra firme. A mãe permaneceu muda, sentada à beira do beliche por dias, com o lenço do filho entre as mãos, enquanto os outros passageiros desviavam o olhar.

Descreveu, acima de tudo, o silêncio aterrador das madrugadas, quando o oceano parecia respirar mais alto que os vivos. Era um som fundo, ancestral, como se a própria terra tivesse sido engolida e regurgitada pelo mar. À noite, a embarcação parecia imóvel, suspensa no vazio, como uma sombra sobre o nada. O sal entrava pelas frestas do porão e ardia nos olhos. O escuro era tão espesso que o horizonte desaparecia. E ali, sob aquele céu sem estrelas, Cesare escrevia — não para registrar o horror, mas para não esquecê-lo. Sabia que o que se esquece morre duas vezes.

Fazenda São Domingos, Província de São Paulo — Janeiro de 1888

A terra era vermelha como ferrugem e grudava nos pés como se quisesse puxar de volta quem ousasse fincar raízes. Espessa, quente, quase viva, deixava marcas no tornozelo e no pensamento. Sob o sol inclemente, transformava-se em pó fino que se infiltrava nas roupas, nos pulmões, nas dobras do tempo. A fazenda São Domingos se estendia por mais de mil alqueires de cafezais e canaviais, alinhados como exércitos sob comando mudo. Era um império de terra e dívida, onde os coronéis andavam a cavalo e os colonos curvavam as costas até parecerem parte da lavoura.

Os recém-chegados — italianos, portugueses e alguns poucos espanhóis — logo compreendiam que liberdade era palavra escassa ali. Na boca do feitor soava como ironia. Trabalhando sob o sistema de parceria, os colonos teoricamente dividiam a produção, mas na prática colhiam apenas cansaço. A comida vinha do armazém da própria fazenda, sempre com preços inflados, listados em folhas que ninguém sabia ler. Arroz quebrado, farinha grossa, sabão preto, café de segunda — tudo era descontado antes da colheita. Os vales substituíam o dinheiro; notas coloridas com o nome da fazenda, aceitas somente ali, criando um círculo fechado de servidão. Qualquer doença, qualquer dia de chuva ou cansaço, qualquer filho com febre era anotado no caderno de capa dura do feitor, um objeto mais temido que o chicote. E o saldo final era sempre negativo — não importava o esforço, o suor, o número de sacas entregues. Era como nadar contra a correnteza com os bolsos cheios de pedra.

Cesare, porém, não se entregava. Não por teimosia, mas por princípio. Sabia ler. Sabia somar. Sabia, sobretudo, resistir. Trazia do Vêneto uma desconfiança ancestral pelos poderosos e uma fé silenciosa na força da comunidade. Em pouco tempo, tornou-se referência entre os colonos. Lia os contratos com atenção de advogado, desfiava as cláusulas armadilhadas, ajudava a calcular os juros embutidos nas contas do armazém. Explicava a diferença entre “adiantamento” e “endividamento” com palavras simples, mas certeiras. Ensinava as crianças a escrever seus nomes com gravetos no chão batido, mesmo depois de doze horas na roça. Era um rebelde de olhos calmos, desses que não precisam levantar a voz para fazer-se ouvir. Não incitava motins, mas plantava perguntas. E isso, para os patrões, era perigoso. A cada nova colheita, seu nome circulava em cochichos — uns o chamavam de capitão sem patente, outros de anarquista de bíblia. Mas os colonos o viam como um farol: alguém que, mesmo coberto de barro e cansaço, enxergava além do café e da dívida. Alguém que lembrava a todos que ainda havia espaço para dignidade, mesmo em meio à servidão disfarçada de contrato.

1894 — As margens do Rio Turvo

Foram sete anos de suor, febres e noites sem pão. Sete anos em que a terra parecia conspirar contra ele e os céus não respondiam a preces. Mas Cesare guardava cada tostão como quem recolhe sementes para um solo que ainda não existe. Evitava as festas dos conterrâneos, os almoços de domingo em casas alheias. Poupava no fumo, não bebia nem em batizados. Trabalhava de sol a sol, fazendo biscates nas lavouras dos outros, roçando mato por diária ou serrando madeira em troca de farinha e feijão. Quando surgiu a oportunidade de comprar um pedaço de mata virgem na beira do rio Turvo, não hesitou. A escritura foi feita às pressas, em cima de um balcão de armazém, com testemunhas analfabetas e firma reconhecida a suor e desconfiança. Pagou em moedas de cobre guardadas em latas de querosene e em promissórias riscadas com dedos trêmulos. O lugar não tinha estrada, nem vizinhança, nem sombra de capela. Só mato, pedra e silêncio. A terra era bruta. Pedregosa. Áspera como os calos de sua mão. Mas era sua. Pela primeira vez, algo no mundo lhe pertencia.

Ergueu uma casa de pau-a-pique com as próprias mãos, misturando barro com palha e esperança. Reutilizou tábuas de um galpão abandonado e amarrou as traves com cipó e paciência. Fez telhado de taquara e cobriu de folhas secas até conseguir telhas de verdade. Batizou o lugar de Monte Scheggia, homenagem silenciosa à vila natal que agora habitava apenas sua memória — uma colina modesta nos arredores de Belluno, de onde via, na infância, os sinos das igrejas balançarem contra o céu das Dolomitas.

Logo depois, casou-se com Rosa Carminati, viúva de um tanoeiro morto de febre na última epidemia de verão. Rosa sabia lidar com forno, horta e silêncio. Trazia consigo dois filhos ainda pequenos, que Cesare aprendeu a chamar de seus sem distinção de sangue. Com ela teve mais três: dois meninos de temperamento diferente como o fogo e a água, e uma menina de olhos atentos, que nasceu ouvindo a leitura de um trecho do Purgatório.

Todos foram criados entre enxadas e cadernos de escola. Durante o dia, ajudavam na roça ou nas lidas do terreiro; à noite, se sentavam ao redor da lamparina, onde o pai, de mãos calejadas e alma inquieta, lia Dante em voz alta. Lia com sotaque de gente que mastigava duas línguas ao mesmo tempo, com os erres enrolados do Vêneto e a cadência dos que lutam para não esquecer. Lia para que seus filhos soubessem que haviam nascido de homens que ousaram atravessar o oceano para plantar o amanhã com as próprias mãos. Cada verso era um testemunho. Cada canto, um alicerce.

Nas noites de lua cheia, quando o rio Turvo refletia as estrelas como se fosse um espelho de prata, sua voz se confundia com o farfalhar das folhas e os uivos distantes das corujas. E assim, naquela clareira esculpida à força de machado e fé, Monte Scheggia foi deixando de ser só lugar e passou a ser destino — um pedaço da Itália enterrado no coração da terra brasileira.

São Paulo, 1932 — O fim do caminho

Cesare Travaglini morreu velho, curvado, mas inteiro. A espinha vergada pelos anos de enxada e silêncio, os músculos endurecidos pela luta contra a terra, a seca, a febre e o tempo. O rosto era um mapa de sulcos e cicatrizes, mas os olhos — aqueles olhos castanhos que sempre miravam o longe — nunca perderam o brilho de quem crê em algo além do imediato. Morreu com as mãos manchadas de terra vermelha, a mesma terra que, décadas antes, lhe havia rasgado os pés, mas que agora se deitava sobre ele como um manto amigo.

Foi enterrado à sombra de uma grande árvore que ele mesmo plantara, no alto de uma colina da fazenda Monte Scheggia. Era uma figueira brava, nascida de um caroço trazido da Itália, embrulhado em um lenço de algodão que Rosa guardara entre os peitos durante a travessia. Cesare costumava dizer que ela sobrevivera porque tinha a alma dos que emigraram: raízes fortes, corpo retorcido e uma teimosia de pedra. Ali, sob aquela copa generosa, onde as crianças se escondiam nas brincadeiras de domingo e os pássaros armavam ninhos no tempo das águas, repousava agora o corpo de quem dera forma e destino àquela terra.

Depois de sua morte, enquanto a família desmontava a velha casa de pau-a-pique — agora já abandonada, em ruínas de barro e saudade — encontraram, escondida entre as paredes de taipa, uma caixa de madeira simples, com ferragens enferrujadas e cheiro de tempo parado. Dentro, estavam seus cadernos. Alguns já amarelados, outros com folhas soltas e anotações escritas com letra firme, porém vacilante nos últimos anos. Misturavam-se ali contas da roça, esboços de cartas nunca enviadas, listas de sementes, poemas curtos, trechos de Dante, e pensamentos lançados como sementes em solo seco. No último caderno, a derradeira anotação era de uma simplicidade que atravessava os ossos:

“A terra dos outros primeiro nos come. Depois nos aceita. E, por fim, se deixa amar.”

Essas palavras, escritas com tinta preta e caligrafia envelhecida, tornaram-se a epígrafe de sua vida. Um de seus netos, professor de história e filho do menino que aprendera a ler ouvindo Dante sob a luz da lamparina, decidiu doar os manuscritos ao Museu da Imigração de São Paulo. O gesto não foi apenas um tributo familiar, mas um resgate de tudo o que Cesare representava — não só para os Travaglini, mas para tantos outros que, como ele, haviam deixado para trás um continente e semeado outro com trabalho, silêncio e fé. E foi lá, entre vitrines empoeiradas e corredores onde o passado parece respirar, que a história de Cesare Travaglini ganhou nova vida. Seus cadernos, agora protegidos por vidro e etiquetas de inventário, passaram a ser consultados por pesquisadores, estudantes, e netos de outras famílias que também vinham de longe. Ali, onde o tempo se dobra e os nomes se tornam memória, a voz de Cesare continuava a ecoar. Não mais com sotaque carregado, mas com a solidez de quem construiu algo que ultrapassou sua própria existência. Como o próprio caminho de terra vermelha que ele trilhou — abrindo mato, carregando pedra, vencendo o tempo, mas sempre em frente.


Nota do Autor

Esta é uma história inventada com nomes fictícios — mas a maior parte dela é verdadeira. Caminho de Terra Vermelha nasceu da escuta atenta de vozes esquecidas. Vozes que, embora não tenham deixado livros ou monumentos, deixaram pegadas reais nos cafezais, nos trilhos da ferrovia, nas pequenas colônias do interior brasileiro. Cesare Travaglini, personagem central desta narrativa, é ficcional. No entanto, ele carrega dentro de si a soma de muitos homens e mulheres que cruzaram o oceano no final do século XIX em busca de pão, terra e futuro — às vezes com esperança, quase sempre com dor.

Entre 1870 e 1920, mais de um milhão de italianos desembarcaram no Brasil. Vinham principalmente do Norte da Itália: Vêneto, Lombardia, Trentino, Piemonte, Úmbria, Toscana. Fugiam da fome, da miséria, das guerras e dos impostos abusivos. Chegavam a um país onde o fim da escravidão criara uma demanda urgente por mão-de-obra nas fazendas de café. Os contratos ofereciam promessas. A realidade impunha dívidas, trabalho forçado, isolamento e discriminação. Ainda assim, resistiram. Plantaram, construíram, adaptaram-se, criaram raízes. Muitos sucumbiram. Outros prosperaram — mas todos pagaram um preço alto.

O título desta obra remete à terra vermelha do interior paulista, símbolo de fertilidade e também de sacrifício. Era sobre ela que os colonos italianos — como tantos outros imigrantes — dobravam a espinha, enterravam filhos, erguendo com mãos ásperas a esperança de um novo começo. Embora os fatos históricos sejam respeitados com rigor, esta é uma narrativa literária, construída com liberdade criativa. Misturam-se aqui a pesquisa histórica, o imaginário popular, os registros da tradição oral e o desejo de dar rosto, nome e voz aos que muitas vezes foram reduzidos a estatísticas nos livros oficiais.

A história de Cesare Travaglini é, portanto, um espelho. Não para ver o passado como um museu, mas como parte viva da nossa identidade — feita de partidas, perdas, lutas e, sobretudo, de reinvenções.

Que este livro sirva como um tributo à coragem anônima dos que vieram antes. E que os seus rastros e pegadas na terra vermelha nunca se apaguem.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil



Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil

Beraldo Vanin nasceu em 1844, em Megliadino San Fidenzio, um vilarejo pobre da província de Pádua, onde o solo magro dava colheitas incertas e a fome rondava cada inverno. Desde menino aprendera a viver entre a terra ingrata e a dureza do trabalho. Aos vinte anos casou-se, construiu família, mas a morte prematura da esposa que tanto amava o deixaria marcado para sempre. Viúvo aos quarenta e três, com filhos já adultos e casados, carregava apenas a solidão e a lembrança de uma vida de sacrifícios que parecia não levar a lugar algum. Era o tempo em que rumores corriam pelos campos do Vêneto. Falava-se de um Brasil distante, coberto por fazendas de café que precisavam de braços. Homens enviados pela propaganda dos fazendeiros descreviam um paraíso de trabalho garantido, comida farta e contrato certo. Para quem, como Beraldo, já não via futuro na planície vêneta, a promessa soava como última chance. Não partia sozinho: vizinhos, primos e conhecidos também se alistaram para a Fazenda Esmeralda, nas proximidades de Piracicaba, São Paulo. A travessia, diziam, duraria poucas semanas. A realidade começou a mostrar sua face em Marselha, onde Beraldo embarcou em setembro de 1887. Ali, centenas de italianos se amontoavam em hospedarias fétidas, alimentando-se mal, dormindo em pisos imundos. Os navios prometidos não chegavam. Dias viravam semanas, e a cidade tornava-se um inferno de febres, fome e desesperança. Famílias inteiras, que haviam vendido tudo para emigrar, gritavam por socorro. Muitos sentiram-se traídos por agentes inescrupulosos. Alguns clamavam por Deus, outros maldiziam a hora em que haviam deixado o Vêneto. Beraldo resistia. A viuvez dera-lhe casca dura. Não tinha crianças pequenas para proteger, apenas a própria vida para conduzir, e uma obstinação que o fazia suportar o purgatório de Marselha. Sabia que, custasse o que custasse, embarcaria. Quando enfim o navio levantou âncora, a esperança dividia espaço com o medo. A embarcação à vela balançava sobre o Atlântico como uma folha ao vento. Nos porões úmidos, o cheiro de suor e de doença sufocava. A comida escasseava, a água adoecia, corpos se enfraqueciam. Crianças tossiam até a morte. Mulheres choravam em silêncio. E cada novo dia parecia um milagre de sobrevivência. Beraldo, calejado pela vida, mantinha-se de pé. O desembarque no porto do Rio de Janeiro foi um choque: o ar denso e quente, os mosquitos que zuniam sem trégua, o idioma incompreensível, o olhar desconfiado dos brasileiros. Mas a viagem ainda não terminara. No dia seguinte embarcou em outro vapor com destino ao porto de Santos, já na província de São Paulo. Conduzidos para um trem subiram pelo interior até a região de Piracicaba onde ficava a Fazenda Esmeralda e um contrato de quatro anos os esperava. A realidade logo esmagou as ilusões. Os dias eram de trabalho sem descanso sob o sol implacável. Os feitores vigiavam os colonos como se fossem escravos — e, em muitos aspectos, ainda eram. A cada semana, o saldo das contas deixava todos presos à fazenda, em dívidas que nunca se quitavam. O sonho transformava-se em cativeiro. Beraldo sentiu o corpo se quebrar, os calos se abrirem, a febre da terra arder-lhe nas noites sem sono. Mas não cedeu. Sobreviveu onde outros tombaram. Guardava em silêncio a lembrança da esposa, como se a presença dela lhe desse forças para continuar. Aos domingos, sob a sombra das árvores, reencontrava sua identidade. Ali, entre conterrâneos, falava em dialeto vêneto, partilhava memórias de Megliadino, rezava pela alma dos mortos. Muitos abandonaram o contrato e fugiram rumo ao sul. Beraldo permaneceu. Cumprir o pacto, pensava, era a única forma de não deixar sua vida em vão. Quando o contrato venceu, em 1891, não havia fortuna à sua espera. Mas havia experiência, uma pequena soma de dinheiro e uma certeza: nada mais o prendia à Itália, os filhos com suas famílias tinham emigrado para outros lugares distantes. O futuro, ainda que duro, estava no Brasil. Nos anos seguintes, trabalhou em propriedades menores da região de Piracicaba. Tornara-se um homem respeitado, que ajudava recém-chegados a enfrentar patrões, calcular pesos de sacos de café e resistir a injustiças. Para muitos imigrantes, Beraldo era referência — um viúvo solitário, mas com a autoridade de quem havia suportado o pior. Em 1896, uniu-se a outros colonos que arrendaram terras junto ao rio Corumbataí. Pela primeira vez plantava para si mesmo. Milho, feijão e mandioca brotaram da terra, e a pequena propriedade deu-lhe algum ganho. Sentiu, então, um sabor novo: a liberdade. O tempo correu. Aos sessenta anos, já não era apenas mais um colono. Era lembrado pela retidão, pela calma, pela capacidade de unir homens em torno do trabalho e da dignidade. Guardava sempre no bolso uma pequena imagem da Virgem trazida de Megliadino, último elo com a terra natal e com a esposa perdida. Nunca voltou a casar. Nunca mais veria os filhos. Na virada do século, Beraldo já mal podia trabalhar. Limitava-se a orientar os jovens e a narrar histórias da travessia. Tornara-se um símbolo vivo da primeira geração que chegara ao Brasil nos porões infectos de navios franceses. Em 1911, com sessenta e sete anos, Beraldo Vanin morreu em silêncio, numa casa de madeira que ajudara a levantar, cercado por vizinhos que o consideravam parte da família. Não deixou riquezas nem descendentes no Brasil. Mas deixou algo mais forte: a memória de um homem que atravessou oceanos, resistiu à miséria e se agarrou à vida com obstinação. Seu nome não entrou nos livros oficiais. Mas entre os imigrantes, tornou-se lembrança de coragem. Beraldo era a ponte invisível entre o Vêneto e o Brasil, um dos muitos homens simples que não buscavam glória, apenas sobrevivência — e que, sem perceber, ajudaram a erguer o alicerce da nova pátria. 

Nota do Autor

A história real do emigrante italiano Beraldo Vanin nasceu do desejo de dar voz aos milhares de emigrantes anônimos que deixaram o Vêneto no século XIX em busca de sobrevivência nas terras distantes do Brasil. Inspirada em cartas e documentos da época, custodiados em um grande museu paulista, ela reconstrói, em forma literária, a vida de um homem simples de Megliadino San Fidenzio, viúvo e já maduro, que atravessou o oceano em 1877 e encontrou nos cafezais paulistas sua nova pátria. A escolha por Beraldo não é fortuita: ele representa aqueles que não aparecem nos grandes livros de história, mas que foram fundamentais para a formação da sociedade brasileira. Sua trajetória reúne a dor da partida, a dureza da travessia, a exploração nos contratos de colonato e, sobretudo, a obstinação silenciosa que marcou a geração de imigrantes italianos. Ao escrever sobre Beraldo, busquei não apenas resgatar o drama individual, mas também lançar luz sobre a coragem coletiva de homens e mulheres que, mesmo sem riquezas ou glórias, deixaram um legado de dignidade e esperança.

Dr. Piazzetta


terça-feira, 29 de julho de 2025

La Promessa de ‘na Tera Nova

 


La Promessa de ‘na Tera Nova


Capìtolo Primo — El Destin Scelto

Quando che Gabriele Montanari lu el ze montà su el vapor a Génova, el cielo zera scuro e pesante, come se el mar e el cielo i gavea fato un pato de silénsio. La so mòier, Donata, la ghe tegneva streto el brasso, e i so do fiòi, Luisa e Pietro, i se grapava al so tabaro come se no volesse lassarla ´ndar.

Ma Gabriele el no podea esità. Gavea trentoto ani e do ètari de tera rovinà da dèbiti, da i granai falì e da le brose tardie. L’Itàlia nova unita parlava de libartà, ma portava solo misèria. Quando el sentì parlar de la "tera del cafè", del "Brasil", che pagava con schei veri par i brassi forti, no el ga pensà do volte. El se ga metesto assieme con altri de la so contrà — i Pedersoli, i Barlandi — e lu el ze partì.

Soto ´ntel fondo scuro del vapor Ester, la traversia no la zera solo un viaio tra continenti, ma un lento batèsimo de sal, paura e rassegnassion. Le taole del barco spiatolava come se protestasse ogni volta che l’Atlántico le sbatea contro, e el odor grosso de sudor, de gòmito e de aqua màrcia ghe entrava ´ntel naso come ‘na maledission che no se podea cavar via.

Par zorni sensa fin, el dondolar del barco rivoltava el stómego; i òmeni curvà in silénsio, le done che pregava con i oci smarì, e i putei che pianseva ´ntel scuro, sensa capir parché el mondo zera diventà cusì streto e ùmido. Le bote de àqua, che a l’inìsio pareva la salvessa, presto le spandèa un odor rancido mescolà con la marésia de legno fradìcio.

La morte, discreta come ‘na bavesa de ària, la passava tra i corpi. No vegniva con i gridi, ma con el silénsio de chi che no respirava pì. De matina, do marinai rivava con ‘na tela strassà. I incartava el corpo sensa tante stòrie, come se fusse un peso qualsiasi, e lo butava in mar con l’indiferensa de chi che el ga za fato quela roba par dessene de volte. El son del corpo che cascava in àqua — un tonfo muto, e po’ un silénsio eterno — zera un capìtolo che no se scrivea, ma che restava drento.

Gabriele, disteso sora ‘na tola che serviva da leto, el scrivea tuto con le man tremanti. Gavea poco pì de vente ani, i oci cavà da la febre e la barba che ghe copriva la facia zòvene. Ogni pàgina del so quaderno zera un refùgio e ‘na resistensa. El segnava i nomi, le date, le impression, el odor de le onde, el nùmaro de putei che no rivava a finir la setimana. El scrivea come chi che no vol èsser desmentegà.

El zera convinto che la so stòria — quela traversia, quel inferno che flutoava, quela speransa picinina in meso al abìsso — un zorno la sarìa servida. Magari par qualcuno, in futuro, par saver che i ghe zera stà. Che i gavea vissù. Che i gavea sonià ‘na tera dove la fame no gira scalsa.

Quando i rivò a Santos, in zenaro del 1889, i ze sbarcà come èbri, barcolando. Ma el peso dovea ancora rivar. I ga portà tuti in quel che i ciamea la "Hospedaria dos Imigrantes", un gran capanon pien de leti de legno, con odor de disperassion e oci persi che no savea ‘ndove vardar.

Lì, Gabriele lu el ga imparà a tacer. Zera pì sicuro.

Capìtolo Secondo — La Màchina de la Speransa

La sorte, questa vècia baldraca caprissiosa, la ga soriso ai Montanari. I ga stà mandàa a la fazenda Santa Apolonia, ´ntel interno de la provìnsia de San Paolo, invece che in le tera lontan dove tanti — come i Bonfiglioli — i spariva sensa pì scrivar gnente a casa.

La fazenda zera un mondo isolà, serà in sé stesso come un corpo antico che no vol morir, e lì comandava la volontà de un omo solo: el baron Giacomo Ferraz de Mello. El portava ancora el tìtolo come se valesse qualcosa, anca se tuti savea che la so fortuna la se sgretolava ano dopo ano. Zera un omo de moda elegante e parole teatrali, ma con i oci furbi. E da quei oci el tirava fora el poco potere che ghe restava. No fasea gnanca un passo falso. Ogni gesto, ogni òrdine, ogni contrato, gavea el guadagno come spina dorsal. La carità, par lù, zera un lusso da borghesi — e el lusso, da tempo, no ghe entrava pì ´nte le spese.

El laoro par i coloni zera ‘na màchina grossa, sorda a ogni pietà. Sota el sol che spacava la tera come pele seca, i piantava cafè fin che i diti i se induriva come radisa. Quando el vento no spirava, el calor vegniva su da tera come ‘na muràia invisìbile. E quando spirava, el portava zanzare, che i spetava tra i canavéi — ‘na cortina verde ndove l’ària zera stròsa e la pele zera sempre rossa. El tàio de la cana zera un laor da ciechi, con el sudor che scolava mescolà con el sangue, e la pena zera pì constante che l’ombra.

El ciamava quel sistema “colonato”, come se el nome bastasse par darghe un senso de libartà e contrato giusto. Ma Gabriele, atento, lùcido come ´ntel fondago del vapor, el gà capì sùito la verità: zera solo ‘na cornice nova par ‘na tela vècia. Un sistema travestì, adomesticà da le parole, ma che respirava ancora con la boca de la servitù.

No ghe zera catene, ma ghe zera dèbiti. No ghe zera senzale, ma ghe zera paura. E el tempo, che dovea portar progresso, lì lo rifasea solo con altre bandiere.

El pagamento vegniva in boni che se podea spender solo ´ntel spàssio de la fazenda — ndove tuto custava el dòpio. El magnar? Riso sensa gusto, polenta mole, e zorni sensa pan. E ancòi, Gabriele ringraziava. Zera mèio che morir de fredo a Modena.

Quel che no contava ai putei zera che tanti òmeni scampava de note, con la febre, pien de morse de bèstie che el no gavea mai visto. Altri, i moriva. E i morti no tornava mia in Itàlia — tornava solo i so nomi.

Capìtolo Terzo — Parole che Traversea l’Osseano

El 14 de febraro, sentà al’ombra de un capanon, Gabriele el scrivè a so amigo Carlo, che zera ancora in Itàlia. El ga scrito parole con el peso che le meritava. No le fasea bela. El ga contà la pena de chi che rivava, la crudeltà dei alogi, la fame che scavava i visi.

Ma el ga contà anca ‘na picinina vitòria: lù e i Pedersoli gavea laoro. Guadagni bassi, sì — ma veri. E el prometè de mandarghe schei a la mama, anca se solo pochi milréis, par far capir che el gera ancora vivo.

No el ga contà bale. Ma no el ga contà gnanca tuto.

El tegnìa in silénsio el pianser de Donata quando i ga sepeli un visin italian in un cimitero poareto. El ga tacà el timor che i fiòi i cressesse parlando brasilian e la Italia restasse solo ‘na memòria. Parché un omo el se difende no solo con i mùscoli, ma anca con el silénsio.

Capìtolo Quarto — El Tempo che Pianta le So Piantine

I ani i passava come i treni che traversava le campagne paoliste: veloci par chi i varda da lontan, ma lenti e duri par chi el ze drento, sentando ogni sossol.

In tel 1894, Gabriele e Donata i gavea conquistà in ‘na citadina che nasseva da banda de la fazenda, quel che prima pareva un sònio lontan: sinque alquere de tera pròpria, pagà a rate, segnà con steche piantà con forsa ´ntel suolo rosso. Lì, ndove el bosco odorava ancora de abandono, i ga taià radisa con le man, butà zo àlbari con la manara e la testardessa, e falo nàsser i primi pianti de mango, naransa e verdure.

No zera ‘na proprietà, zera un pato. Ogni solco costava un zorno de mal de schena; ogni pianta, ‘na sfida a la seca, ai inseti o ai pressi del marcà. Ma la zera soa. Par la prima volta, la tera soto i piè no la rispondea a el comando de nissun altro. E in quela conquista muta — sensa ini ne anca bandiere — ghe zera pì dignità che in tute le medàlie del mondo.

Luisa la se ga sposà con un altro fiol de emigranti, un certo Vittorio Bianchi. Pietro volèa studià, sognava de farse mèdico — o giornalista ma, mancava i soldi.

La lètara de Gabriele la restò drento ‘na cassa de legno. Ma la so stòria la continuò. Noel ze mai tornà in Itàlia. No el ga mai bevù quel spumante che i gavea promesso. Ma de sera, con el caldo, el se sentava in veranda a vardar le stele, e el diseva:

“Là, da l’altra banda, ghe ze Modena. Ma qua… qua la ze ndove mi go piantà la mia vita.”


Nota de l’Autor

Sto libro "La Promessa de ‘na Tera Nova" el ze nassesto da la voia de dar vose a chi che quasi mai se conta tra le pàgine de la Stòria. Òmeni e done che i ga traversà un ocean con pì paura che certeze, pì fame che robe, e che, anca cusì, i ga avù el coraio de creder che ´ntel mondo ghe zera un posto ndove i so fiòi i podèa crèsser lìbari — anca se lori, forse, no sarìa mia stà davero lìbari.

Par ogni parola scrita, mi go provà de ricordarme che i nùmari fredi dei registri de l’emigrassion i scondea stòrie calde de carne, sudor e pérdita. Le statìstighe no sente mia la fame. No le tremola ´ntel fondago de un vapor. No le sepolta i fiòi ´ntela foresta calda del Brasil. Ma chi che la ga vivesto ‘sta traversia, la ga sentì tuto — e la ga lassà, anca sensa voler, ‘na trassia invisìbile ´ntel paese che el ga aiutà a costruì

Sto libro no el ze mia ‘na biografia precisa, gnanca ‘n tratato stòrico. Lu el ze un tentativo de scoltar el silénsio de le generassion che le ga rivà prima de noialtri. De vardar, tra le rughe dei visi desmentegà, la coraio testarda de chi che la ga costruì case dove prima ghe zera solo boschi, cesete ndove prima ghe zera paura, e scole ndove prima ghe se sentiva solo el colpo de la manara.

Se in qualche momento ti, letor, te senti el odor del cafè novo adesso colto, te senti el scrichiolar de un careto de bo, o te senti un nodo in gola pensando a quel che i ga lassà indrio… alora ‘sta stòria — che la ze inventà, sì, ma anca memòria — la ga fato el so dover.

Con gratitùdine e rispeto,

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

sábado, 18 de janeiro de 2025

Raízes de Esperança: Uma Saga de Amor e Coragem do Outro Lado do Oceano





Para ir ao trabalho Gino, um forte rapaz com seus 18 anos recém-completados, percorria diariamente vários quilômetros pelas colinas e vales da província de Treviso, na Itália. O sol dourado da tarde refletia nos campos verdejantes de videiras e oliveiras, pintando um cenário que contrastava com a quietude do pequeno vilarejo onde nasceu. A paisagem idílica não conseguia dissolver a inquietude que o corroía. A situação econômica do país estava cada vez pior, com falta de serviço e insegurança no trabalho, o qual, quando conseguia, remunerava muito mal os trabalhadores, que pouco ou nada sobrava no fim do mês. A pobreza era generalizada no campo e a fome já rondava alguns lares. Muitos milhares de italianos já haviam emigrado para outros países, tanto da Europa como principalmente para a América. Gino, era o filho mais velho, de uma família de doze irmãos, todos menores de idade, sentia que precisava fazer alguma coisa, algo grande além das fronteiras de sua aldeia. A notícia que mudaria o rumo de sua vida chegou em forma de conversa com um amigo. Este lhe contou que, pelas cartas de um parente emigrado alguns anos antes, ele relatava entusiasmado sobre as terras férteis do Brasil, onde o café crescia em abundância, como ouro em grãos. O grande país sul-americano estava contratando aos milhares trabalhadores para as grandes fazendas de café de São Paulo e Espírito Santo e até pagavam a passagem até o local de trabalho. Essa mão de obra estrangeira era muito necessária para preencher a lacuna deixada pela abolição da escravidão no país, onde todos os escravos africanos foram libertos alguns anos antes. Os olhos de Gino brilharam com a possibilidade de uma vida melhor para ele e para a família. Aquilo soava como o destino chamando por ele. Com coragem, ele tomou uma decisão ousada, deixando para trás sua família e sua terra natal, e embarcando em uma jornada incerta em busca de prosperidade. A longa e tumultuosa travessia do oceano foi um grande desafio que testou sua coragem, mas Gino perseverou. Ao chegar ao interior de São Paulo, o jovem italiano encontrou-se em um mundo completamente diferente. As vastas plantações de café se estendiam até onde a vista alcançava, como um mar verde e perfumado. Ele havia sido contratado, quando ainda na Itália, por uma grande fazenda, onde seu trabalho como agricultor apesar de árduo, trazia a promessa de um futuro melhor e isso o mantinha firme. Foi durante esse período de alguns anos na fazenda que Gino ali conheceu Maria Augusta, uma jovem italiana, também proveniente da província de Treviso, emigrada com a família pouco tempo antes, que também buscavam oportunidades em terras estrangeiras. O destino entrelaçou seus caminhos de forma inesperada, e eles decidiram se casar. Juntos, enfrentaram os desafios da vida na enorme fazenda de café, construindo um amor que crescia a cada safra, como os frutos que colhiam. No entanto, a saudade da família na Itália, da qual tinha poucas notícias, nunca o abandonou, mas, o que mais influiu na decisão do casal foi a recessão no cultivo do café, cujos preços estavam em queda no mercado mundial. Depois de alguns anos de trabalho na fazenda, e ainda sem filhos, o casal tomou a difícil decisão de voltar para sua terra natal. Eles retornaram à pequena aldeia onde Gino nascera, no interior da província de Treviso, com a esperança de reconstruir suas vidas. Ali, plantaram novas raízes e estabeleceram-se entre amigos e familiares, mas o desejo de prosperidade continuou a arder em seus corações. A situação econômica da Itália, e da Europa em geral, ainda não estava boa e o trabalho continuava escasso e mal remunerado. Mesmo assim não tinham outra opção e continuaram tocando a vida. Em solo italiano, Maria Augusta e Gino foram abençoados com três filhos: dois meninos e uma linda menina. A vida apesar de muito dura era mais tranquila do que aquela agitação da fazenda de café, mas a situação econômica na Itália novamente começou a piorar rapidamente e as perspectivas de um futuro próspero desvaneceram como um sonho que se desfaz ao acordar. Foi então que eles tomaram outra decisão difícil, mas muito corajosa: emigrar novamente. Em 1909, Gino, Maria Augusta e seus três filhos voltaram ao Brasil, desta vez para ficar. Assinaram um contrato de trabalho em outra grande fazenda de café, onde enfrentaram desafios ainda maiores. A família cresceu, e mais dois filhos nasceram nas terras paulistas, solidificando ainda mais seus laços com o Brasil. Juntando as suas economias, mudaram-se para uma cidade próxima da fazenda que experimentava um período de grande progresso e lá adquiriram um grande lote de terra na periferia e passaram a trabalhar com empregados de pequenas fábricas que surgiam. Cada novo dia era uma batalha contra o desconhecido, mas a esperança e o amor que compartilhavam os mantinham firmes. O tempo passou, e a família de Gino e Maria Augusta prosperou, chegando a abrir com os filhos um pequeno comércio que aos poucos foi se transformando em uma grande rede de lojas com várias filiais, inclusive em cidades vizinhas, hoje um conglomerado de supermercados. Eles viram seus filhos crescerem e construírem suas próprias vidas no Brasil, mantendo viva a rica herança italiana que os ligava à sua terra natal. As histórias de coragem e perseverança de Gino e Maria Augusta continuaram a ser contadas de geração em geração, lembrando a todos que, com determinação e amor, é possível construir um novo lar e um futuro melhor, mesmo em terras distantes. O aroma do café e o sabor do sucesso se entrelaçaram em suas vidas, criando uma história que celebra o amor, a coragem, a emigração e a força da família, traçando um elo indelével entre a Itália e o Brasil.