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sábado, 4 de outubro de 2025

A Vida de Pietro Zanotelli

 


A Vida de Pietro Zanotelli

Das Colinas de Vicenza às Terras Vermelhas de São Paulo

Pietro Zanotelli nasceu em San Pietro Mussolino, Vicenza, no dia 14 de março de 1900. O vilarejo era pobre, mas os bosques que se erguiam ao redor ofereciam o sustento possível. Com somente os três anos do ensino básico concluídos, desde criança, Pietro aprendera a manejar o machado, a serrar troncos e a arrastar toras pelas encostas. Sua juventude foi marcada pelo cheiro da resina dos pinheiros e pela aspereza das mãos feridas pela madeira.

A pequena aldeia se resumia a algumas ruas tortuosas e estreitas, uma antiga igreja, dominando a praça e pequenas casas de pedra úmidas salpicadas de liquens, onde as famílias se apertavam em meio à escassez. As colheitas raramente bastavam, e a maioria dos jovens partia ainda muito cedo, deixando atrás de si velhos e mulheres. Era um retrato de um Vêneto pobre que ainda lutava contra as feridas deixadas pela guerra.

Em 1922, como tantos outros jovens da região, partiu para a França em busca de uma vida melhor. Encontrou trabalho nos túneis do Jura, onde o corpo era consumido pela umidade e pela escuridão. Foram três anos de labuta subterrânea, até que a saudade o empurrou de volta a San Pietro Mussolino. O retorno, porém, trouxe-lhe apenas a constatação amarga: ainda não havia futuro possível em sua aldeia natal.

A ideia da América começou a rondá-lo. Já não era uma emigração em massa, como a dos tempos de seus pais e avós. Agora, cada partida era um gesto individual, uma tentativa desesperada de escapar do desemprego e da fome que a Itália do pós-guerra ainda não conseguira resolver. Pietro observava as cartas que chegavam de parentes já instalados no Brasil, com relatos de dificuldades, mas também de terras férteis e novas oportunidades.

Na madrugada de 2 de julho de 1926, o dia da partida chegou. Pietro levantou-se cedo. A pequena maleta de papelão, já meio consumida, o passaporte recém-emitido e algumas moedas no bolso eram tudo o que carregava. Os parentes o acompanharam até o ponto de onde partia uma carroça que fazia o transporte de passageiros. Quando o cocheiro gritou a ordem de embarque, sentiu um nó na garganta. O silêncio pesou mais do que qualquer palavra. Virou-se uma última vez para olhar sua terra, e num sussurro apenas para si mesmo disse: “Adio Mussolino, chissà quando ti rivedrò”.

Seguiu então de trem para Gênova. Instalado em um hotel barato em uma rua lateral não muito longe do cais, dividiu pão e salame com três companheiros de viagem. Ao passear pelo porto, ficou paralisado diante do navio Giulio Cesare, uma fortaleza de aço erguida sobre as águas, pronta para atravessar o oceano. O porto fervilhava de vozes em diferentes dialetos, famílias chorando separações definitivas, vendedores ambulantes aproveitando o último instante de comércio, padres abençoando os que partiam.

No 30 de junho, as formalidades se sucederam: corte de cabelo, banho obrigatório, inspeção médica, vacina. Quando finalmente embarcou, desceu a escadaria de ferro até o porão, onde se alinhavam beliches numerados. Aquele seria seu mundo durante semanas.

Ao soar os três apitos da partida, o navio começou a afastar-se do cais. Do porto, a multidão cantava hinos patrióticos; no convés, emigrantes agitavam lenços encharcados de lágrimas. O barulho da música e dos gritos se misturava ao choro sufocado. Pietro permaneceu imóvel, carregando no peito o peso da separação.

A travessia foi marcada pelo enjoo dos primeiros dias, pela comida escassa e pelo cheiro sufocante dos camarotes. Os limões comprados em Gênova ajudaram a suportar o mal-estar. No convívio com outros passageiros, surgiam histórias semelhantes: jovens arrancados pela necessidade, velhos em busca de filhos que já haviam partido, mulheres levando crianças pequenas na esperança de recomeçar. Todos unidos pela mesma esperança de um futuro do outro lado do mar. Havia também as noites em que o mar se revoltava, e o balanço violento lançava os corpos contra as paredes de ferro, lembrando a todos que a travessia era uma aposta de vida e morte.

Ao desembarcar no porto de Santos sem conhecer a língua do Brasil, Pietro não encontrou promessas fáceis, mas sim o desafio de recomeçar do nada. Seguiu de trem para o interior de São Paulo, onde já existiam comunidades italianas estabelecidas. Encontrou trabalho em armazéns, em pequenas indústrias, em roças arrendadas, mudando de ofício conforme apareciam as oportunidades.

O Brasil não foi para ele uma terra de riqueza, mas sim de sobrevivência e continuidade. Casou-se com Ana Luísa Marchette, filha de imigrantes, com quem teve filhos e netos. Sua vida tornou-se um equilíbrio entre o trabalho incessante e a saudade que nunca se apagou. O sotaque do Vêneto nunca o deixou, e até os últimos dias mantinha o hábito de cantarolar canções antigas, como se cada nota fosse um elo com sua terra perdida.

Morreu em Campinas, no ano de 1972, aos 72 anos. Foi enterrado sob uma cruz simples, com a frase escolhida pela família:

“Partiu da Itália por necessidade, viveu no Brasil por esperança.”

Assim se encerrou a trajetória de Pietro Zanotelli, um homem que carregou no coração o peso da despedida e a coragem da travessia, testemunha de uma geração que deixou o Vêneto não por escolha, mas por obrigação da vida.

Nota do Autor

Este relato nasceu da necessidade de dar carne e voz a uma geração que, apesar de ter marcado profundamente a história, corre o risco de ser esquecida. Pietro Zanotelli, personagem central desta narrativa, não é um homem isolado: ele representa milhares de italianos que, nas primeiras décadas do século XX, foram forçados a abandonar seus vilarejos, suas famílias e o chão onde aprenderam a caminhar.

Não partiram por aventura ou ambição, mas pela imposição da vida. A Itália que emergiu da Grande Guerra estava exausta: os campos devastados, o trabalho escasso, as promessas do Estado vazias. Para muitos, a única saída era olhar para o horizonte do Atlântico e imaginar que, do outro lado, pudesse existir uma chance de sobrevivência.

Foi esse gesto — levantar-se de madrugada, despedir-se em silêncio, carregar uma mala pobre de roupas e memórias — que fundou a epopeia anônima de tantos homens e mulheres. Eles não eram heróis, mas trabalhadores comuns. E ainda assim, sua coragem os tornou extraordinários.

Ao recriar a trajetória de Pietro, não busquei apenas relatar fatos, mas também reconstruir atmosferas: o peso das despedidas, o cheiro acre dos portos, o som metálico dos apitos de partida, a claustrofobia dos porões de navio e, sobretudo, a saudade que atravessava oceanos. A saga de Pietro é uma chave para compreendermos a dor e a força daqueles que transformaram o Brasil em sua nova pátria.

Esta narrativa não é uma biografia literal. É um romance baseado em cartas, documentos e testemunhos, tecido com o fio da ficção para iluminar o que os registros oficiais não contam: o silêncio, o medo e a esperança.

Que a vida de Pietro Zanotelle, aqui narrada, seja lembrada como símbolo de todos os que cruzaram o mar não para enriquecer, mas para sobreviver — e, ao fazê-lo, construíram as bases de um futuro que hoje chamamos de nosso.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta




terça-feira, 23 de setembro de 2025

La Zornada de Giuseppe

 


La Zornada de Giuseppe

Un Conto Inspirà da la Realtà dei Emigranti Italiani


La Partida

´Ntel 1878, la pìcola vila de Montelupo, in Toscana, respirava ´na ària pesà de disperassion, anca se el sole continuava a iluminar le verde coline d’intorno. Giuseppe Bertolino, un agricultor de 22 ani, cognossea ben ogni toco de quela tera — ´na eredità ancestral che parea, ogni ano che passava, dar manco de quel che servìa par mantegner la so famèia. El teren, prima generoso, no gavea pì le racolte che podesse assicurar la sopravivensa; la povertà zera un’ombra che se alungava sui campi e su le tole par tuto el lato. El pupà de Giuseppe, Vittorio, inveciava con le man coerte de cali e con i oci pien de resignassion, mentre el fiol zòvene sentìa el peso del futuro cascar davanti ai so oci.

La Toscana che Giuseppe amava no la zera pì capase de contègner i so sòni né de ofrir seguressa. Le lètare, i conti e le ose de chi zera partì par l’Americhe contava de ´na tera lontan, ndove el teren i zera vasto e fèrtile, ndove el laor duro podea finalmente portar dignità. Stòrie che se mescolava con le imàsine che Giuseppe gavea in testa — campi sensa fin soto un ciel diverso, un futuro possìbile che no portava pì l’odor de misèria e disperassion.

Deciso a sercar un destin che no gavaria mai catà in Montelupo, Giuseppe el ga vendesto quel poco che gavea. Con el che gavea ricavà, se comprò un bilieto par un vapore che partìa dal porto de Gernova verso el Brasile. Quando che lassava la so vila, el portava con sé un pìcolo saco de semense de formento, un regalo del so pare, no solo par piantar in ´na tera nova, ma come sìmbolo de continuità e memòria, de le radise che no podea mai desmentegar.

La traversia del Atlàntico la ze sta un teste crudele par la so resistensa fìsica e mentale. El vapore, stracàrico, un casulo streto de corpi, speranse e paure, dondolava soto l’imensità del ossean, mentre l’ària pesà e la visinansa obligava Giuseppe a enfrentarse con la solitudine e el disagio con na forsa silensiosa. La dura rotina de quei zorni e noti a bordo no spegneva, però, el brilo de la so speransa — el sònio che, oltre mar, la tera l’avaria acoesto, e che da lì nassesse ´na vita nova.

Giuseppe sbarcò in Brasile con el steso sguardo fermo che gavea quando i ga lassà Montelupo, un zòvene plasmà dal passà, ma rivolto al futuro. ´Ntela so valisa no gavea pì che vestiti consumà e quele semense de formento, ma dentro de lù portea la promessa de un novo scomìnsio e la coraio de chi no se arende ai eventi. La vastità de quelo mondo novo el zera un desafio e ´na oportunità, e Giuseppe, come tanti altri emigranti, gavaria scrìto la so stòria soto un ciel sconossesto ma con le man ben ferme sul aratro e el cuor pien de speransa.

El Arivo ´ntel Novo Mondo

Dopo ´na longa e penosa traversia del Atlàntico, Giuseppe el ga rivà finalmente al porto de Santos, in un fin de tarde caloroso che preanunsiava el calor contínuo del interior paulista. L’agitassion del porto, con le so ose mescolà e l’aroma forte del cafè apena scaricà, contrastava fortemente con la quietù melancónica de le coline toscane che lu gavea lassà. Là, ´ntel porto rumoroso e al vai-vien dei scaricatori, Giuseppe sentì el peso de ´na nova realtà che se stava a impor.

Sùito lo ga portà via i rapresentanti de la grande piantaion de cafè verso l’interno de San Paolo, ndove vasti cafesai se distendea come un mar verde soto el sol abrasante. Le promesse fate prima de partir, che dipingea imàgini de laor digno, case confortàbili e na vita pròspera, se rivelea solo mirase davanti la duresa del quotidiano. La piantaion zera un impero soto el sol spietà, ma i laoradori zera tratà come pesi intercambiàbili in quela màchina.

Giuseppe lu el ga scominsià a enfrentar zornate che partiva prima del sorsér del sol e finia quando la scurità inghiotia l’orizonte, con le so man calesà strense sui rami del cafè, e el corpo sfinìo da la fatiga contìnua. El mangnar che ghe dava a malapena bastea par calmar la fame e el zera quase sempre scarso de nutrimento par ripristinar le forse perdù. Le piatanse, sovente rasionà e de qualità scarsa, gavea el gusto de resignassion e sete insasiàbile.

El alògio, un casot de assi male inchiodà, davea poca protession contro el fredo de le note ùmide o el calor sofocante del zorno. El pavimento de tera batuda, i muri finì e la mancansa de conforto rifletea la trascuransa verso i emigranti, visti solo come manodopera a bon mercà e temporánea.

Con el passar de le setimane, la salute de Giuseppe la ga scominsià a declinar. La tosse che gavea scominsià discretamente ´nte le prime note se fè sempre pì pesante, stracandoghe el peto con ´na sensassion de fogo e fredo insieme. La fatiga acumulà, somà a la mancanda de cure mèdiche, fàva che el corpo vigoroso de ‘na olta se sgretolasse soto i colpi de la desnutrission e del sforso contìnuo.

Epure ghe gera quel qualcosa d’indomàbile in quei oci maron che fissava l’orizonte lontan: la speransa. Era quela speransa che tegneva Giuseppe in piè, che ghe dava la forza de resister a la brutalità del laor e a le condission averse. Lù el savea che el sacrifìssio zera el pressio par costruir un futuro, par che un zorno podesse aver ´na tera sua e racoglier el fruto del so laor.

Ogni gota de sudor versà su la piantasson de cafè la zera come ´na semensa piantà no solo ´ntel teren straniero, ma anca ´ntel teren de la perseveransa umana. E cussì, anca indebolì, Giuseppe ndava avanti, come tanti altri emigranti prima de lù e tanti altri che sarebe vignesti dopo, a costruir, con le so man calesà e el so cuor fermo, el sònio silenssioso de ´na vita meliore.

Capìtolo 3: El Ritorno

Dopo ani segnà da un laor sena fin e da malatie che se gavea fate compagne costanti, Giuseppe Bertolino decise con grande dolore de tornar in Itàlia — un ritorno che parea pì ´na fuga, un gesto disperà de chi non gavea pì forse par continuar. El richiamo de casa, de la tera natia e de le memòrie, se mescolava con l’esaurimento profondo che ghe rodeva el corpo. La partensa dal Brasile ze sta silenssiosa, ma pesante, come se ogni passo verso el vapor portasse el peso de ´na vita intera de speranse deluse.

La travers che prima zera sta ´na promessa de novi orisonti adesso se presentava soto un velo oscuro. Giuseppe, mentre osservava i altri compagni de viaio, vardava visi segnà da la denutrission, corpi ridoti e curvati da le malatie, e oci persi che rivelava la strachesa estrema e, in certi casi, el desespero del delìrio. Quela moltitudine de emigranti sfinì pareva portar adosso el silénsio de le batàlie combatù contro la tera straniera, el laor pesante, le malatie che ghe cascava via la vitalità e rodea i soni.

Quando lu el ga rivà al porto de Genova, Giuseppe el ga sùito mandà in un ospedal pùblico, un posto fredo e impersonà, ndove el peso de la misèria e de la malatia se rispeciava ´nte le pareti consumà e ´ntei coridoi silenssiosi. Là, i dotori i ga diagnosticà quel che lù gavea zà sentì, ma che la paura rendea quasi impossìbile da acetar: la tubercolosi, la "peste bianca" che in quei tempi la zera sinónimo de sentensa, specialmente par chi no gavea né risorse né protession.

Giuseppe el zera solo. La famèia che gavea lassà a Montelupo, lontana e sofrente, no gavea meso par sostegnerlo. Senza schei e debilità, lu el ga afrontà i so ùltimi zorni su un leto fredo, sircondà dal rumore sofocà dei altri passienti e da l’austerità de ´na malatia che no risparmiava. Le memòrie de la so infánsia, de le coline verde e del sole dolse de la Toscana, diventava na presensa sempre pì viva e dolorosa ´ntela so mente, un contrasto crudel con la realtà scura che el ghe stava intorno.

In quei momenti finai, la speransa che prima l’avea spinto a traversar i ossean pariva svanir in silénsio. La stòria de Giuseppe, come quela de tanti altri emigranti desmentegà, no se concluse con la conquista de ´na tera promessa, ma con la resignassion davante i limiti umani, e la consapevolessa amarga che, a volte, i soni pì grandi se perde tra la lota e el dolor, soto el cielo lontan de ´na tera che no desmentegarà mai el sforso e el coraio de chi ze partì in serca de ´na vita meliore.

Nota del Autor

Sta narativa, anca se costruì intorno a personagi e eventi fitissi, la ze profondamente ancorà ´nte l'esperiensa vera de miliaio de vite che, come quela de Giuseppe Bertolino, i ga traversà l'Atlàntico in serca de speransa e dignità.

La saga de tanti emigranti italiani che ga lassà le so tere natìe par enfrentar i dificoltà del Brasile a la fine del XIX secolo e al principio del XX, la ze segnata da contrasti dolorosi: l'ìmpeto coraioso de ripartir e la realtà crua de le aversità che ga schiacià corpi e soni. Ze importante sotolinear che i nomi e i loghi che se trova qua ze sta inventà par dar forma literària a ´na stòria che ze comun a tanti, la cui verità se basa ´ntei raconti stòrici, le lètare, i documenti e le memòrie tramandà de generassion in generassion. Miliaia i ze partì forti e pien de vita, e non raramente i ze tornà fràsili, maladi, e a volte quasi invàlidi — o, tragicamente, no i ze mai tornà, lassando indrio no solo le tere foreste, ma anca la zoventù e la speransa de un futuro miliore.

Sta òpera vol, dunque, render omaio a tuti quei che, par sfortuna o destino, i ga vardà i so soni interoti e le so vite segnà da la duresa de l'emigrassion, del laor estenuante e de le malatie che li ga colpì lontan de casa. A traverso l'esémpio de Giuseppe, se serca de dar vose a quei miliaia de sconossiuti, la cui coraio e soferensa la ze sta le basi par formar le comunità brasilian che incòi ga ancora orgòlio de le so radisi italiane.

Che sto raconto serva par ricordar che l'emigrassion no ze solo na semplice movimentassion geogràfica: la ze ´na stòria umana de rinùnssie, pèrdite e, sora de tuto, de resistensa. E che el riconosser che sta stòria la ze un ato de giustìssia e gratitudine verso quei che, anca davante de le adversità pì estreme, no ga mai abandonà el sònio de ´na vita dignitosa.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta



terça-feira, 16 de setembro de 2025

A Saga de Vittorio Giordano


A Saga de Vittorio Giordano

Vittorio Giordano nasceu no dia 22 de março de 1884, em Calice Ligure, uma pitoresca vila da Ligúria, Itália, onde o céu azul parecia fundir-se com o mar Mediterrâneo e as colinas verdes abrigavam oliveiras e vinhedos que resistiam ao vento salgado. A vila, apesar de sua beleza natural, era marcada pela pobreza e pelas dificuldades impostas a seus habitantes, que viviam da agricultura em terras cada vez menos produtivas. Vittorio cresceu nesse cenário, ajudando os pais a cultivar a terra árida e aprendendo desde cedo o valor do trabalho duro, embora os frutos fossem insuficientes para sustentar a família.

Filho mais velho de quatro irmãos, Vittorio era frequentemente chamado a sacrificar seus próprios sonhos para ajudar os mais novos. No entanto, sua mente inquieta buscava algo além dos limites de Calice Ligure. Enquanto os dias passavam em um ciclo repetitivo de trabalho e escassez, a iminente convocação para o serviço militar pairava como uma sombra. Não era apenas a obrigatoriedade de lutar por uma causa que ele mal compreendia, mas o medo de perder a pouca liberdade que tinha e ser forçado a viver uma vida ainda mais limitada sob ordens que não escolheu seguir.

Determinou-se, então, a mudar o curso de sua história. Inspirado pelos relatos de outros jovens que haviam fugido para começar de novo em terras distantes, Vittorio decidiu emigrar. Porém, o caminho era repleto de obstáculos. Sem recursos para pagar uma passagem de navio, sua única saída era encontrar uma maneira alternativa e arriscada. Após ouvir histórias sobre portos menos rigorosos na França, ele embarcou em uma jornada por terra até Marselha, deixando para trás sua vila natal, os campos onde crescera, e a família que não sabia se veria novamente. Em Marselha, um porto vibrante e caótico, Vittorio enfrentou outro desafio: como embarcar sem ser identificado ou detido? Ele se misturou aos trabalhadores locais, observando atentamente os navios e buscando informações sobre quais deles aceitavam mão de obra em troca de passagem. Com sua coragem e um pouco de astúcia, ofereceu-se como ajudante em um navio de carga que seguia para o Brasil. Alegando experiência com tarefas manuais, convenceu o capitão de que seria útil durante a viagem. Assim, garantiu seu lugar, mas não sem o constante receio de ser descoberto antes da partida. As semanas a bordo foram duras. Vittorio enfrentou jornadas exaustivas, lidando com porões abafados, ventos fortes e o balanço incessante do navio. As noites, no entanto, eram o pior momento: sozinho, ele pensava na família que deixara e no futuro incerto que o aguardava. A esperança de uma nova vida no Brasil, porém, mantinha sua determinação intacta. Ele via cada onda como um passo em direção à liberdade.

Finalmente, em janeiro de 1903, após semanas de mar revolto e dias sob o calor escaldante do Atlântico, o navio chegou ao porto de Santos. Quando Vittorio desceu pela primeira vez na terra tropical, foi recebido por uma explosão de cores, cheiros e sons. O calor úmido parecia envolver cada fibra de seu corpo, e o burburinho das línguas estranhas o fez perceber que estava realmente em outro mundo. Carregando apenas uma pequena sacola com roupas surradas e algumas liras italianas, ele respirou fundo. A linha do horizonte à sua frente simbolizava tanto a promessa quanto o desafio. Com um misto de esperança e medo, Vittorio deu seu primeiro passo na construção de um novo destino.

Os Primeiros Passos em São Paulo

Vittorio seguiu para São Paulo, uma cidade em ebulição, onde a promessa de oportunidades atraía milhares de imigrantes e brasileiros de todas as partes. Naquele início de século, São Paulo era um mosaico de culturas, com ruas movimentadas por carroças, bondes e o constante vai e vem de pessoas à procura de trabalho. Com seus edifícios em construção e o cheiro de progresso no ar, a cidade parecia vibrar com a energia de um futuro promissor. Nos primeiros meses, Vittorio mergulhou de cabeça na luta por um sustento. Sem qualquer conhecimento da língua portuguesa, ele se comunicava com gestos e palavras improvisadas, conquistando pequenos trabalhos que garantiam apenas o suficiente para sobreviver. Começou como carregador no Mercado Municipal, onde empurrava pesados carrinhos cheios de mercadorias, enquanto tentava entender o fluxo caótico e o sotaque paulistano. Aos poucos, foi aprendendo o básico do idioma e se acostumando ao ritmo frenético da cidade. Com o passar das semanas, conseguiu outros serviços temporários. Trabalhou como pedreiro, ajudando a erguer os novos prédios que simbolizavam a modernização da cidade, e depois como vendedor ambulante, percorrendo ruas e vielas para oferecer bugigangas e pequenos utensílios. Nessas andanças, seu carisma começou a se destacar. Apesar das dificuldades, Vittorio tinha um sorriso fácil e um jeito cativante que o tornava querido por colegas e clientes. Seu esforço incansável e sua rápida adaptação ao novo ambiente o ajudaram a superar os desafios iniciais.

O grande ponto de virada em sua trajetória veio quando conseguiu uma posição na prestigiosa Indústrias Matarazzo, um dos maiores conglomerados industriais do Brasil na época. Foi por intermédio de um conhecido, também italiano, que Vittorio soube da vaga no depósito da empresa. O trabalho era árduo, envolvendo a organização e transporte de mercadorias, mas ele o abraçou com entusiasmo, consciente de que aquela era sua chance de algo maior. No depósito, Vittorio mostrou-se mais do que um simples trabalhador. Sua atenção aos detalhes, aliada a uma habilidade inata para resolver problemas, logo chamou a atenção de seus superiores. Ele tinha uma inteligência prática inata que o destacava, além de uma facilidade para lidar com as pessoas ao seu redor, seja ajudando colegas ou sugerindo melhorias no fluxo de trabalho. Sua capacidade de comunicação e sua iniciativa abriram portas inesperadas. Não demorou para que fosse promovido a representante comercial. Nessa nova função, Vittorio passou a viajar pela cidade, visitando comerciantes e promovendo os produtos da Indústrias Matarazzo. Era um papel que combinava perfeitamente com sua personalidade extrovertida e seu desejo de crescer. Ele dominou rapidamente a língua portuguesa, aprendeu as sutilezas do mercado e desenvolveu uma rede de contatos que o colocava em vantagem. Enquanto percorria os bairros da cidade, carregando amostras e apresentando os produtos com entusiasmo, Vittorio começou a vislumbrar algo maior. Ele já não era mais o jovem assustado que desembarcara em Santos meses antes; agora era um homem confiante, com ambições crescentes. O trabalho duro estava começando a dar frutos, e pela primeira vez em muito tempo, ele sentia que o futuro estava em suas mãos.

Um Amor Transformador

Durante uma de suas visitas a uma loja de tecidos no bairro do Brás, Vittorio conheceu Rosália Esposito, uma jovem de olhos brilhantes e sorriso marcante que parecia iluminar o ambiente por onde passava. Rosália era filha única de Salvatore Esposito, um comerciante napolitano conhecido por sua habilidade nos negócios e por seu carisma no seio da comunidade italiana de São Paulo. Desde o primeiro momento em que seus olhares se cruzaram, Vittorio sentiu uma conexão especial, algo que transcendia as palavras e ia direto ao coração.

Rosália era diferente das mulheres que Vittorio conhecera até então. Educada e independente, ela crescera em um lar onde, embora o pai fosse a figura central nos negócios, sua mãe, Catarina, também desempenhava um papel importante na gestão da loja de tecidos da família. Rosália herdara esse espírito empreendedor, bem como uma mente aguçada e uma determinação que a destacavam. Ao mesmo tempo, seu jeito caloroso e afetuoso encantava aqueles ao seu redor, incluindo Vittorio, que se viu profundamente atraído por sua presença. Apesar de sua origem humilde, Vittorio mostrou uma autoconfiança e uma integridade que impressionaram Salvatore e Catarina. Ele não era apenas mais um representante comercial; era um homem de visão, trabalhador incansável e com uma ambição que ressoava com os valores de esforço e conquista tão caros à família Esposito. Rosália, por sua vez, ficou cativada pela inteligência e pelo carisma de Vittorio, além de admirar sua história de superação e coragem. Os dois começaram a se encontrar frequentemente, ora na loja de tecidos, ora em eventos da comunidade italiana, onde a convivência reforçou o vínculo que rapidamente crescia entre eles. Rosália encantava-se com as histórias de Vittorio sobre sua infância na Ligúria e sobre as lutas e desafios que enfrentara desde sua chegada ao Brasil. Por sua vez, Vittorio fascinava-se com as ideias inovadoras de Rosália e com sua visão sobre como modernizar o negócio da família.

Após dois anos de namoro, repletos de momentos de cumplicidade e aprendizados mútuos, eles decidiram oficializar a união. A cerimônia foi um dos eventos mais memoráveis da comunidade italiana de São Paulo. Realizada em uma das igrejas mais tradicionais do centro da cidade, contou com a presença de parentes, amigos e empresários italianos que viram naquele casamento não apenas a celebração de um amor genuíno, mas também a união simbólica de dois mundos diferentes: o da perseverança de Vittorio e o da prosperidade dos Esposito.

Rosália, vestida em um deslumbrante vestido de renda confeccionado à mão, entrou na igreja ao som de músicas italianas tradicionais, enquanto Vittorio, de terno impecável, mal conseguia conter a emoção ao vê-la caminhar em sua direção. O padre, também italiano, emocionou os presentes com suas palavras sobre a importância do amor e da união na construção de uma nova vida em terras estrangeiras.

Após o casamento, os dois passaram a viver em uma confortável casa no Bixiga, bairro que abrigava grande parte da comunidade italiana da época. A união não apenas solidificou a posição social de Vittorio, mas também abriu novas portas nos negócios. Salvatore, agora seu sogro, viu em Vittorio não apenas um genro, mas também um potencial sucessor e parceiro. Ele começou a introduzir Vittorio nos círculos de comerciantes influentes, oferecendo-lhe oportunidades de expandir seu alcance no mercado. Vittorio, com sua habilidade natural para lidar com pessoas e seu profundo desejo de crescer, agarrou cada oportunidade com determinação. Ele trabalhou ao lado de Salvatore, aprendendo os segredos do comércio de tecidos e trazendo ideias frescas que logo se refletiram em um aumento significativo nos lucros da loja. Rosália também desempenhou um papel crucial nesse processo, trabalhando ao lado do marido e demonstrando que, juntos, eram uma força imbatível. Com o tempo, Vittorio e Rosália não apenas prosperaram financeiramente, mas também se tornaram uma referência de união e sucesso dentro da comunidade italiana. O casal era frequentemente convidado para eventos e reuniões importantes, e sua casa tornou-se um ponto de encontro para amigos e familiares. A história de amor que começara em uma loja de tecidos no Brás agora se transformara em uma parceria sólida que moldaria o futuro de ambos, deixando um legado que ecoaria por gerações.

O Legado de Vittorio

Ao longo das décadas, Vittorio Giordano construiu uma vida que parecia impossível quando chegou ao Brasil com pouco mais que sonhos e determinação. Ele tornou-se um empresário respeitado, conhecido por sua integridade, visão e pela capacidade de transformar desafios em oportunidades. Mais do que isso, Vittorio se consolidou como um membro ativo e influente da comunidade italiana em São Paulo. Seu nome era citado com reverência nas reuniões da colônia, e ele era frequentemente chamado para aconselhar jovens imigrantes que buscavam orientação para trilhar seus próprios caminhos.

Mesmo com o sucesso, Vittorio nunca perdeu a conexão com suas origens humildes. Era comum encontrá-lo em eventos comunitários, sentado em uma roda de amigos ou familiares, contando histórias de sua juventude, da pequena vila de Calice Ligure, e da dura travessia no navio de carga que o trouxera ao Brasil. Suas narrativas eram cheias de detalhes vívidos e emoção, muitas vezes arrancando risos e lágrimas de quem as ouvia. Ele falava com orgulho de sua luta e das escolhas que o moldaram, mas também com uma certa melancolia que nunca o abandonou.

Essa melancolia estava estampada em seus olhos claros, mesmo nos momentos mais felizes. A saudade de sua terra natal era uma sombra constante. Vittorio nunca se conformou completamente com o fato de que nunca mais veria Calice Ligure nem os familiares que deixou para trás. Ele acompanhava com atenção as notícias da Itália, lia cartas enviadas por parentes distantes e, às vezes, deixava escorrer uma lágrima ao ouvir uma canção napolitana que o transportava de volta à Ligúria de sua infância. Na década de 1940, com o avanço da idade, Vittorio começou a desacelerar suas atividades comerciais, delegando a gestão dos negócios aos filhos, que seguiam seus passos com o mesmo zelo e ética que ele sempre demonstrara. Ainda assim, ele permanecia uma figura central, oferecendo conselhos sábios e sendo uma fonte de inspiração para a família. Suas histórias sobre os sacrifícios feitos e as lições aprendidas tornaram-se um alicerce para as gerações mais jovens, que viam nele um exemplo de coragem e resiliência.

Em 1953, quando completou 72 anos, Vittorio sentiu que sua jornada estava chegando ao fim. Ele passou seus últimos dias em sua casa no bairro de Higienópolis, rodeado pelo amor de sua esposa, Rosália, pelos filhos e pelos netos que tanto adorava. Mesmo debilitado, continuava a sorrir ao ouvir as risadas das crianças correndo pela casa ou ao relembrar episódios marcantes de sua trajetória com os amigos que o visitavam. No dia de sua partida, o sol parecia brilhar de forma diferente. Vittorio faleceu serenamente, em paz, cercado por aqueles que mais amava. Sua despedida foi marcada por um sentimento misto de tristeza e gratidão. A comunidade italiana se uniu em um tributo emocionante, relembrando a vida de um homem que personificava o espírito dos imigrantes que ajudaram a construir São Paulo. Durante o velório, muitos recontavam suas histórias, destacando como sua coragem e determinação haviam inspirado tantos outros a buscar um futuro melhor em terras estrangeiras. O legado de Vittorio foi muito além de seus empreendimentos ou realizações materiais. Ele deixou para sua família e para a comunidade um exemplo duradouro de que as adversidades podem ser superadas com esforço, honestidade e fé no futuro. Nas gerações seguintes, o nome Giordano tornou-se sinônimo de resiliência, e as memórias de Vittorio continuaram vivas nas histórias transmitidas de pais para filhos.

Até hoje, os descendentes de Vittorio e Rosália mantêm vivo o vínculo com suas raízes italianas, visitando Calice Ligure e honrando a memória de um homem que, com humildade e perseverança, cruzou o oceano e plantou as sementes de um novo começo. Seu túmulo, no cemitério da Consolação, tornou-se um local de peregrinação para aqueles que desejam homenagear um dos muitos heróis anônimos que moldaram a história do Brasil com suas próprias mãos e coração. Vittorio Giordano não apenas viveu uma vida extraordinária; ele deixou um exemplo eterno de como transformar sonhos em realidade, mesmo diante das maiores adversidades.


Nota do Autor

Os nomes e sobrenomes presentes nesta narrativa são inteiramente fictícios, escolhidos para dar vida aos personagens e permitir que o leitor se conecte com suas jornadas. No entanto, a história em si é baseada em fatos reais e reflete as experiências de inúmeros imigrantes italianos que deixaram sua terra natal no final do século XIX e início do século XX em busca de um futuro melhor no Brasil. As dificuldades enfrentadas durante a travessia, os desafios de adaptação em um país estrangeiro, a luta por oportunidades e a saudade de casa são elementos comuns a muitos relatos históricos. Este texto é uma homenagem à coragem, resiliência e sacrifício dessas pessoas, que, com determinação, ajudaram a moldar o Brasil como o conhecemos hoje.

Que esta história inspire empatia, gratidão e reconhecimento por aqueles que vieram antes de nós, abrindo caminho para um mundo de possibilidades.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



domingo, 14 de setembro de 2025

Raízes e Tempestades A Saga de Enrico e Marianna Bellò


Raízes e Tempestades 

A Saga de Enrico e Marianna Bellò


Raízes Rotas

Lendinara, Rovigo, Vêneto — Outubro de 1886.

As folhas amareladas dançavam ao vento como se soubessem o que estava por vir. Enrico Bellò passava o dedo pelas tábuas gastas da janela, enquanto observava o horizonte enevoado. Sua esposa, Marianna Zardini Bellò, dobrava silenciosamente as últimas peças de roupa dos filhos. Ela não respondeu. Apenas olhou os filhos — Ernesto e Giacomo — que dormiam lado a lado no catre de palha. A decisão já estava tomada havia dias, mas ali, diante da última manhã na pátria, o peso era quase insuportável. Venderam o pouco que tinham — o terreno herdado do pai de Enrico, duas vacas, e a prensa de uva que por gerações havia produzido o vinho da família. Trocaram tudo por passagens de terceira classe num navio com destino ao Brasil. A travessia foi um inferno de tosses, gemidos e náuseas. Marianna passava noites em claro, com os meninos febris no colo. Enrico cuidava do pouco que tinham com olhos de lobo: um baú com ferramentas, uma fotografia dos pais, e o caderno onde anotava sonhos e cálculos de futuro.

A Dor Verde

Desembarcaram em Santos com os corpos curvados, mas os olhos acesos. A viagem para o interior os levou a Piracicaba, onde a natureza parecia querer engolir tudo — até mesmo a esperança. Foram designados à fazenda do Barão de Alvarenga, uma imensidão de canaviais onde italianos, espanhóis e negros libertos se misturavam em silêncio e suor. O barraco de madeira cheirava a mofo e solidão. Enrico era hábil na terra, mas a lida ali era desumana. Marianna cuidava dos filhos durante o dia e cozinhava a polenta à noite, com farinha comprada a crédito no armazém da fazenda. As dívidas cresciam. A febre também. Em menos de seis meses, Giacomo faleceu. Três semanas depois, Ernesto o seguiu. Marianna não gritou. Nem chorou diante dos outros. Apenas cavou a cova com as próprias mãos. Enrico ficou três dias sem dizer palavra. Na noite do terceiro, rabiscou no caderno:

“Se ghe ze un Dio, el ghe de forsa a chi no la ga pì.”


Polenta, Suco e Sobrevivência

Depois da dor, veio o silêncio. E logo depois, o trabalho ainda mais duro. Enrico trocava milho por farinha no engenho da Fazenda São Benedito. Comia-se polenta e laranja. Era pouco, mas era constante. Os anos trouxeram três filhos: Guido, Rosina e Natale. Marianna voltava a sorrir, aos poucos. Nas noites de sábado, Enrico contava histórias aos filhos: de Veneza, de neve, de campos de papoula. Os meninos ouviam como se escutassem lendas de um outro mundo — e de fato, era. Rosina aprendeu a fazer queijo com a mãe. Guido alimentava os porcos. Natale, ainda pequeno, já se enfiava entre os canaviais como se fosse parte da terra. A esperança recomeçava a brotar.

La Terra Prometida

Com o pouco que economizaram em mais de vinte anos, Enrico arriscou tudo de novo. Compraram um terreno em Mombuca — terra escura, úmida, fértil como ventre de mulher nova. Era pequena, mas era deles. E isso mudava tudo. Construíram uma casa de madeira, sólida e aberta ao sol. Guido casou-se com uma moça de origem calabresa. Natale seguiu o irmão. Rosina, bela e decidida, ficou para cuidar dos pais. A cada novo neto que nascia, Marianna plantava uma árvore no quintal. A terra deu café, mandioca, milho e, aos poucos, também prosperidade. A família Bellò se espalhou pelos arredores como raízes subterrâneas.

A Lavoura da Memória

Os primeiros anos em Mombuca foram marcados por um silêncio novo — não mais o silêncio da dor, mas o silêncio do trabalho em terra própria. Ali, cada amanhecer era uma promessa. Enrico passava os dias examinando o solo, corrigindo falhas, construindo com paciência uma fazenda que pudesse resistir ao tempo. A vida na colônia era ainda rudimentar, mas o simples fato de não depender mais de ordens alheias era um luxo impensável em outros tempos.

Marianna reorganizava a casa com mãos firmes e uma serenidade adquirida nas perdas. Suas rotinas tinham agora um sentido mais profundo. A horta crescia como uma extensão de seu cuidado — alfaces, batatas, tomates, ervas. No quintal, as árvores plantadas em nome dos filhos cresciam altas, e ela as regava como se conversasse com o passado.

O pequeno celeiro virou centro de produção. O queijo feito por Rosina e os pães que Marianna assava em forno de barro passaram a ser trocados com vizinhos, criando laços com outras famílias de imigrantes: lombardos, piemonteses, alguns trentinos. A terra, antes estrangeira, agora tinha nomes italianos espalhados por cada curva de estrada.

Ciclos que se Repetem

Os netos chegaram como vindima farta depois de um verão generoso. As crianças corriam pelos canteiros, aprontavam nas cocheiras, escondiam-se entre os milharais. Enrico assistia de longe, em silêncio, com os olhos cansados e satisfeitos. Sentia o corpo pesar como nunca, mas a alma leve como não se lembrava de ter sido um dia.

Guido prosperava com o plantio de café e a criação de porcos. Natale seguiu para a cidade, atraído pela modernidade de Rio Claro, onde tornou-se marceneiro. Rosina permaneceu fiel à terra, cuidando dos pais e da pequena capela erguida sob uma figueira, onde se rezavam terços nas noites de sábado.

Com o tempo, os filhos construíram suas próprias casas ao redor da sede principal. Um núcleo familiar tomou forma como uma aldeia invisível, unida por sangue e por história. Nas festas de colheita, os tambores improvisados e os violinos dos imigrantes enchiam o ar de um entusiasmo quase ancestral. Marianna olhava para aquilo tudo com uma expressão que misturava gratidão e cansaço.

A Última Estação

Os últimos anos de Enrico foram silenciosos. Seus passos tornaram-se lentos, os olhos demoravam mais tempo observando o horizonte do que o necessário. Ele passava horas sentado sob o alpendre, com um caderno no colo e um lápis já tão pequeno quanto sua respiração. Anotava datas de nascimentos, mortes, safras, doenças, nomes. Era como se quisesse registrar cada detalhe para impedir que o tempo os engolisse.

Quando faleceu, em 1943, foi enterrado sob a mesma figueira onde Rosina mantinha as velas acesas. Não houve discurso, apenas o som das enxadas abrindo a terra para mais uma semente — não de planta, mas de permanência.

Marianna viveu ainda nove anos. Seus cabelos embranquecidos se tornaram símbolo da família, sua presença era reverenciada pelos netos como a de uma matriarca silenciosa. Já não costurava tanto, nem cuidava dos porcos, mas sua autoridade se manifestava em pequenos gestos — um olhar, um aceno, um gesto de aprovação ou correção.

No dia de sua morte, um verão abafado de 1952, a família se reuniu inteira no terreno. Ninguém chorou alto. Não era preciso. Sua ausência se impunha com uma solenidade silenciosa, como o fim de uma colheita abundante.

Herdeiros do Silêncio

Com a partida de Marianna, Rosina assumiu o centro da casa. Já velha, sabia que a sua missão era diferente: preservar. Os filhos e netos dos Bellò se espalharam pelo interior paulista, muitos se urbanizaram, alguns se tornaram professores, outros comerciantes. Mas o nome resistia.

Na casa original, as paredes foram reforçadas, o forno de barro mantido. As árvores frutíferas plantadas por Marianna ainda davam sombra às novas gerações. O velho caderno de Enrico foi descoberto por um bisneto curioso, que se tornaria historiador e usaria aquelas anotações como base para um livro sobre imigração italiana no Brasil.

Na lápide do casal, sob a figueira que crescia firme, uma frase gravada por Rosina resumia tudo o que haviam vivido:

“Radise che no se spaca — solo cámbia tera.”


Nota do Autor

A história que o leitor tem em mãos é uma obra de ficção histórica, construída com base em um fragmento autêntico da vida de emigrantes italianos que, como milhares de outros, cruzaram o oceano no final do século XIX em busca de terra, trabalho e um futuro menos incerto.

O texto se inspira livremente em uma carta escrita por um imigrante vêneto e preservada nos arquivos públicos do interior paulista. Nesse testemunho silencioso, revelam-se os traços de uma jornada marcada por perdas profundas, resistência cotidiana e uma fé obstinada no valor do esforço.

Embora os personagens desta narrativa — Enrico e Marianna Bellò, seus filhos e descendentes — sejam fictícios, suas vivências ecoam as experiências reais descritas na carta: a travessia atlântica, o luto por filhos perdidos, os anos de trabalho duro nas fazendas de café e, por fim, o triunfo discreto da terra conquistada com suor e perseverança.

A escolha por evitar diálogos é intencional. O silêncio, que permeia esta narrativa, busca refletir o modo como tantos desses homens e mulheres viveram: com dignidade contida, gestos firmes e palavras medidas. Suas histórias foram escritas mais com as mãos do que com a voz.

Esta obra é dedicada a todos os que partiram sem promessa de retorno, levando consigo apenas a memória dos que ficaram — e semeando, em solo estranho, as raízes do que viria a ser um novo lar.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta





sábado, 13 de setembro de 2025

Morte a Bordo

 

Morte a Bordo

Uma família de agricultores italianos da quase perdida localidade de Carmignano di Brenta, no interior da província de Padova, na Itália, no final do século XIX,  Giovanni e Antonella, viviam com muitas dificuldades. A vida no interior da Itália estava se tornando insustentável devido à fome, à falta de trabalho e à pobreza extrema que surgiu após as guerras pela unificação da Itália e a formação do reino italiano. O ônus maior da construção do Reino d'Itália recaiu sobre os mais pobres e desamparados da população. Os novos impostos e taxas criadas para a manutenção do estado, afetaram de forma desproporcional os camponeses e trabalhadores rurais, que constituíam a maioria da população italiana na época. Entre as medidas mais impopulares estava o imposto sobre a moagem, conhecido como la tassa sul macinato, introduzido em 1868, que taxava a moagem de grãos, um alimento básico para os italianos. Isso resultou em um encarecimento do pão e de outros produtos essenciais, agravando ainda mais as condições de vida das famílias rurais e urbanas mais pobres. A unificação trouxe também o serviço militar obrigatório, que retirava os jovens de suas famílias por longos períodos, prejudicando a economia familiar baseada na agricultura de subsistência. Além disso, a política de centralização do novo estado, inspirada no modelo piemontês, desconsiderou as especificidades regionais, exacerbando o descontentamento em muitas regiões, especialmente no sul da Itália, conhecido como Mezzogiorno. Aqui, a unificação foi percebida mais como uma conquista do que como uma libertação. A pobreza extrema, a concentração fundiária e a repressão estatal contribuíram para o surgimento de movimentos de resistência, como o brigantaggio - ou banditismo, que foi combatido com dureza pelo exército italiano. As promessas de redistribuição de terras e melhoria nas condições de vida para os camponeses não se concretizaram, ampliando a desigualdade social e o êxodo rural.

Esses fatores, somados às dificuldades econômicas e à ausência de oportunidades, levaram a uma emigração em massa, principalmente entre os finais do século XIX e início do XX. Milhões de italianos, especialmente do sul, deixaram sua terra natal em busca de uma vida melhor em países como os Estados Unidos, Argentina e Brasil. Essa diáspora teve um impacto profundo, tanto para as comunidades que partiram quanto para as que permaneceram, moldando a história italiana e mundial.

Foi nesse contexto, que Giovanni decidiu que também deveria tentar uma vida melhor na América, no Brasil, onde naqueles anos corriam notícias que havia promessas de terra e trabalho.

Antonella, apesar da dor de ficar longe de Giovanni e das crianças, concordou que a melhor oportunidade para a família seria a emigração. Mas, por questões financeiras, Antonella teve que ficar em casa, enquanto Giovanni embarcava sozinho na viagem para o Brasil. Ele prometeu que, assim que se estabelecesse, mandaria buscar Antonella e as crianças.

Giovanni partiu para o Brasil com grandes esperanças. A viagem, no entanto, foi marcada por dificuldades, mas, ao chegar ele logo encontrou trabalho em terras de cafeicultores. Ele enviava cartas a Antonella, contando-lhe as dificuldades do início, mas também lhe dando esperança de um futuro melhor.

Antonella, por sua vez, esperava ansiosamente o dia em que poderia reunir sua família. Com as crianças em casa, ela estava cheia de saudades de Giovanni, mas sabia que a decisão dele fora tomada por um bem maior, e que logo se reuniriam. Ela mantinha a esperança e a fé de que, em breve, faria a viagem ao Brasil com os filhos, reunindo-se com Giovanni para começar uma nova vida.

Finalmente, o dia chegou. Antonella conseguiu economizar o suficiente para pagar sua viagem. Com seus filhos Pietro e Maria ao seu lado, ela embarcou rumo ao Brasil. A longa viagem foi cheia de dificuldades, mas Antonella estava determinada a reunir-se com seu marido.

Entretanto, o destino se mostrou cruel. Durante a travessia, uma epidemia de sarampo se espalhou rapidamente entre as crianças a bordo. Pietro, seu filho de 8 meses, foi uma das vítimas da doença. Antonella, desesperada, viu seu filho sofrer e falecer antes que pudesse chegar ao Brasil. A dor de perder Pietro foi insuportável, e ela mal conseguia processar a tragédia enquanto a viagem continuava.

Finalmente, depois de muitas semanas no mar, o navio chegou ao Brasil. Antonella, com Maria ainda ao seu lado, desembarcou em solo brasileiro, mas com o coração partido pela perda de Pietro. Ela agora tinha de enfrentar a dura realidade de começar sua vida no Brasil, em um novo país, mas também sabia que a promessa de uma nova vida com Giovanni era a única coisa que poderia lhe dar forças.

Quando Antonella finalmente se reencontrou com Giovanni, ele a acolheu com carinho, mas o luto pela perda de Pietro nunca desaparecerá. O Brasil era vasto e promissor, mas para Antonella, cada dia estava marcado pela ausência do pequeno Pietro. A saudade de sua terra natal, da Itália, e a dor da perda de um filho eram pesadas, mas ela tinha Maria e Giovanni para seguir em frente.

Juntos, tentaram reconstruir suas vidas no Brasil, mas a memória de Pietro nunca seria apagada. Antonella, embora marcada pela dor, sabia que o melhor que podia fazer por sua família era seguir em frente, pois o amor de Giovanni e Maria era o que a fazia ter forças para continuar.


Nota do Autor

Este trecho é um resumo do livro Morte a Bordo, escrito com a intenção de não deixar cair no esquecimento os dramas e as vicissitudes enfrentadas por milhares de homens e mulheres que, forçados pela fome e pela ausência de perspectivas em sua terra natal, viram-se obrigados a abandonar as aldeias, os campos e até mesmo as famílias que os sustentavam em suas raízes mais profundas.

A travessia do Atlântico não foi apenas uma mudança geográfica, mas sobretudo uma ruptura dolorosa e definitiva com o mundo conhecido. Os emigrantes, expulsos pela miséria e pelo desespero, lançaram-se ao mar na esperança de encontrar no Brasil uma terra nova e promissora, onde o trabalho e o sacrifício pudessem transformar-se em futuro.

Este livro é, portanto, um testemunho de memória e resistência: uma forma de dar voz aos que viveram – e muitas vezes morreram – nesse caminho entre o abandono e a esperança. Cada página busca resgatar a dignidade de quem ousou sonhar com um amanhã melhor, mesmo à custa do maior dos sofrimentos.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta



segunda-feira, 7 de julho de 2025

A Carta de Chamada

 


A Carta de Chamada

Albino Contin sentou-se no banco de madeira ao lado da lareira acesa. Era uma noite fria em 1881, e a pequena casa de pedra, nos arredores de Treviso, oferecia pouco conforto contra o inverno rigoroso. Em suas mãos, um envelope amarelado trazido pelo carteiro da vila. Era uma carta de seu irmão mais velho, Matteo, que havia emigrado para o Brasil três anos antes.

Matteo tinha partido cheio de promessas de prosperidade, incentivado por agentes de companhias de navegação, do governo brasileiro e por histórias de fazendas exuberantes e terras férteis do outro lado do Atlântico. Albino não tinha notícias concretas dele há meses e, enquanto desfazia o selo, seu coração acelerava.

"Caro fratello Albino," começava a carta. "Espero que estas palavras te encontrem bem. Aqui na Colônia Caxias, a vida não é fácil, mas há oportunidade para quem trabalha duro. As terras são vastas e selvagens, e precisamos desbravar cada pedaço com o suor do nosso rosto. Mas, diferente de nossa terra natal, aqui há esperança."

Matteo descrevia as dificuldades enfrentadas: o isolamento, a saudade, a luta contra a mata fechada e as doenças tropicais. Mas também falava de conquistas: a pequena casa de madeira que ele havia construído com suas próprias mãos, o pedaço de terra que começava a cultivar, e, acima de tudo, o sonho de uma vida melhor.

"Albino, precisamos de você aqui. Traga a nossa força de família, traga as memórias de nossa mãe e o som da nossa língua. Eu já organizei tudo: o navio partirá de Gênova em abril. Estarei esperando por você na colônia. Aqui, você terá a chance de construir algo que nunca poderíamos alcançar em Treviso."

A Decisão Difícil

Albino releu a carta várias vezes. Matteo era o mais velho dos Contin, e sempre havia sido o líder da família após a morte de seu pai. Mas deixar Treviso não era uma decisão fácil. Havia a casa que pertencia à família havia gerações, as vinhas plantadas por seus antepassados, e, mais doloroso que tudo, a promessa feita à mãe de nunca abandonar a terra natal.

No entanto, a Itália do final do século XIX não oferecia muitas opções para um jovem como Albino. As terras estavam concentradas nas mãos de poucos, e a unificação do país havia trazido mais tribulações do que benefícios. Os impostos aumentavam, o emprego era escasso, e a fome rondava as comunidades rurais.

Nos dias seguintes, Albino começou a se preparar. Vendeu o pouco que possuía: um par de bois, algumas ferramentas e a última safra de vinho. Levava consigo apenas o essencial: roupas, sementes de uva que prometera plantar no Brasil e a medalha de prata da Virgem Maria, que sua mãe lhe dera antes de morrer.

A Longa Travessia

A viagem de navio foi longa e exaustiva. No porão, Albino dividiu espaço com dezenas de outros imigrantes, todos ansiosos e temerosos pelo que os aguardava no Brasil. As condições eram insalubres, o ar, pesado, e muitos adoeceram durante a travessia. Albino passava o tempo rezando e pensando nas palavras de Matteo: "Aqui há esperança."

Quando finalmente desembarcou no porto de Rio Grande, foi encaminhado para uma hospedaria improvisada e de lá embarcou em uma longa e desconfortável viagem de carroça até a Colônia Caxias. A paisagem tropical era completamente diferente da que conhecia na Itália: montanhas cobertas de mata virgem, rios caudalosos e uma terra que parecia infinita.

Reencontro e Reconstrução

Matteo o esperava na entrada da colônia, com um sorriso cansado, mas sincero. Abraçaram-se como irmãos que haviam sobrevivido a guerras invisíveis. Matteo mostrou a Albino a pequena casa que havia construído e o terreno que começava a produzir milho e feijão.

"Bem-vindo ao nosso novo lar," disse Matteo. "Aqui começamos do zero, mas começamos como homens livres."

Albino rapidamente se juntou à rotina da colônia. A vida era dura: derrubar árvores, plantar em solo virgem, lidar com a distância e a saudade da Itália. No entanto, ao lado de Matteo e de outros italianos que compartilhavam a mesma língua e cultura, sentiu-se parte de algo maior.

Nos anos seguintes, Albino cultivou uvas com as sementes que trouxera de Treviso e começou a produzir vinho. Aos poucos, a colônia se transformou em uma comunidade próspera, com escolas, igrejas e festas típicas italianas. Matteo se casou com uma jovem da colônia, e Albino seguiu o mesmo caminho, formando uma família que carregaria, por gerações, as histórias de sacrifício e resiliência.

Raízes que Cruzam Oceanos

Albino nunca voltou a Treviso, mas sua memória da Itália permaneceu viva em cada vinhedo plantado, em cada canção cantada durante as festas e na língua que ensinou aos filhos. No coração da Colônia Caxias, construiu uma nova vida, sem nunca esquecer de onde veio.

E, sempre que olhava para o horizonte ao entardecer, Albino se lembrava da carta de chamada de Matteo — o início de uma jornada que transformara o sonho de dois irmãos em uma herança para gerações futuras.


Nota do Autor


"A Carta de Chamada" é uma narrativa ficcional inspirada nos acontecimentos históricos da imigração italiana para o Brasil no final do século XIX. Embora os personagens e eventos desta história sejam frutos da imaginação, o pano de fundo em que se desenvolvem reflete fielmente a realidade enfrentada por milhares de italianos que deixaram sua terra natal em busca de um novo começo nas terras brasileiras.

A prática da "carta de chamada" foi um fenômeno real e crucial para a imigração italiana no Brasil. Ela consistia em uma correspondência enviada por um parente ou amigo já estabelecido em solo brasileiro, oferecendo apoio financeiro e moral para aqueles que ainda permaneciam na Itália, presos às dificuldades econômicas e sociais da época. Essas cartas simbolizavam não apenas uma oportunidade de mudança, mas também a promessa de reencontrar familiares e de alcançar uma vida mais digna, ainda que à custa de sacrifícios imensuráveis.

A história se passa no contexto da Colônia Caxias, localizada no atual estado do Rio Grande do Sul, um dos principais destinos para os imigrantes italianos. Estabelecida oficialmente em 1875, essa região recebeu milhares de famílias italianas, que enfrentaram condições precárias, o isolamento cultural e linguístico, além do desafio de transformar a mata virgem em terras produtivas. Esse cenário desafiador, permeado por dificuldades, também foi palco de grandes demonstrações de resiliência, solidariedade e realização, que contribuíram significativamente para a formação cultural, social e econômica da região.

Com "A Carta de Chamada", busco homenagear as histórias de luta, amor e esperança daqueles que, movidos pela força do sonho, enfrentaram o desconhecido. Este livro é também uma celebração da herança imigrante, da coragem de um povo que, apesar de todas as adversidades, construiu um novo lar sem esquecer suas raízes. Que a jornada de Giuseppe e seus familiares inspire reflexão sobre os sacrifícios e conquistas de tantos que, como eles, ousaram atravessar o oceano em busca de um futuro melhor.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Além do Mar

 


Além do Mar

O ano era 1885. Vittorio Mancoretti, um homem de constituição robusta e com olhos escuros e profundos que refletiam tanto a dureza da vida quanto a obstinação de quem nunca desiste, nascera e crescera na pequena e quase esquecida aldeia de San Daniele, ainda agarrada às montanhas do Friuli. Essa aldeia era um lugar onde o vento trazia histórias de gerações marcadas pelo trabalho árduo e pela resignação diante de uma terra ingrata. Vittorio era o filho mais velho de uma família de pobres camponeses, onde a única herança era o saber como arrancar de uma terra árida o pouco que bastava para viver.

Desde menino, ele compreendera que o nascer do sol trazia consigo o peso do trabalho, e que as noites eram feitas de esperanças silenciosas, muitas vezes esquecidas pelas promessas de uma Itália unificada há pouco. Aos trinta e cinco anos, seus ombros já estavam curvados pelos mesmos gestos repetidos: arar, plantar, colher – uma dança infinita que retornava apenas cansaço.

A seca, uma companheira cruel das colheitas, e a pobreza, sempre à espreita, haviam transformado a vida dos Mancoretti em um ciclo amargo de escassez. A pequena faixa de terra herdada, exausta por anos de exploração, não era mais capaz de sustentar sua esposa Bianca, uma mulher forte com olhos azuis desbotados pelo tempo, e seus dois filhos pequenos, Matteo, de sete anos, e Rosa, que tinha apenas quatro anos. Matteo já havia começado a ajudar o pai nos campos, mas seu espírito ainda estava cheio da inocência dos jogos. Rosa, por outro lado, frágil e frequentemente doente, necessitava de cuidados que muitas vezes eram mais do que podiam oferecer.

Vittorio sentia o peso de suas responsabilidades como uma corrente que o mantinha preso a um destino que parecia nunca mudar. Cada dia passado naquela terra lhe roubava um pedaço de força, mas nunca sua determinação. Dentro dele, ardia uma chama viva – uma inquietação que o levava a olhar além das montanhas de Valdorsi, sonhando com uma vida onde o trabalho não fosse apenas sobrevivência, mas uma promessa de algo mais.

As notícias de uma nova terra, rica e generosa no sul do Brasil, chegavam devagar pelos vizinhos que haviam lido cartas de parentes emigrados. Falavam de florestas vastas, rios caudalosos e promessas de terras próprias, longe dos patrões que lhes tiravam tudo. Vittorio, inicialmente cético, não podia mais ignorar a miséria crescente ao redor de sua casa.

Bianca, prática e decidida, disse ao marido:

“Se ficarmos aqui, morreremos. Se partirmos, ao menos teremos uma esperança.”

Com o coração pesado, Vittorio decidiu vender tudo o que possuíam — o velho arado, uma vaca magra e até mesmo a aliança de casamento de sua esposa.

O Vapor Umberto I

A jornada até o porto de Gênova foi uma verdadeira odisseia, cheia de dificuldades e sacrifícios. A família percorreu estradas empoeiradas e acidentadas, viajando por dias em uma carroça carregada de pertences, depois em vagões apertados de trem e, finalmente, a pé, atravessando povoados e colinas com os poucos bens que possuíam bem embrulhados.

No cais, o ambiente era uma mistura de névoa e expectativa, cheio de vozes em dialetos diferentes, carregadas de esperança e desespero. Foram agrupados com dezenas de outros emigrantes, todos com destino ao Brasil, formando uma massa de rostos ansiosos e olhares perdidos.

Umberto I, ancorado, imponente diante deles, parecia uma cidade flutuante, com suas enormes chaminés e os conveses lotados de pessoas. Para quem nunca tinha visto o mar, a visão do colosso de ferro era tão fascinante quanto assustadora. Mas o cheiro de óleo e sal, misturado ao burburinho dos passageiros já embarcados, criava uma sensação sufocante antes mesmo de entrarem no vapor.

No porão do navio, escuro, úmido e abafado, as condições eram ainda mais opressivas. Famílias inteiras estavam amontoadas em redes penduradas no teto, enquanto outras improvisavam camas com trapos e malas. A travessia do Atlântico era um verdadeiro tormento: a fome corroía os estômagos, doenças se espalhavam como fogo, e a saudade dos entes queridos deixados para trás parecia pesar mais a cada dia, com cada onda que o navio enfrentava.

Matteo, o menino de sete anos, era um raio de sol no meio da escuridão do porão. Com sua energia infinita, organizava jogos e brincadeiras, arrancando sorrisos das outras crianças e aliviando, ainda que por um momento, o peso da viagem. Rosa, sua irmã menor, porém, era frágil e, dia após dia, parecia definhar, arrancando lágrimas silenciosas de seus pais.

Certa noite, especialmente longa, enquanto o vapor deslizava sob um céu sem estrelas, Vittorio, o patriarca, estava no convés, segurando a mão de Bianca, sua esposa. Olhava para o mar escuro como se buscasse respostas na vastidão desconhecida. O peso de sua decisão apertava seu peito. E se tivesse cometido um erro irreparável? E se sua busca por uma vida melhor condenasse sua família à miséria ou, pior, à morte?

Mas Bianca, com sua força inabalável e seu olhar sereno, apertou sua mão e sussurrou:
“Mantenha a fé, meu amor. A terra que encontrarmos será a promessa de um novo começo. Basta resistirmos.”

Essas palavras ecoaram no coração de Vittorio, uma centelha de esperança no meio de uma escuridão que parecia infinita.

Os Primeiros Anos na Colônia

Quando desembarcaram no porto de Rio Grande, os Mancoretti sentiram uma mistura de alívio e incerteza. A longa travessia do Atlântico havia terminado, mas a verdadeira jornada estava apenas começando. Foram enviados para a Colônia Conde d’Eu, situada entre as verdes encostas da Serra Gaúcha.

Ao chegarem ao destino, encontraram uma terra vastíssima, mas de uma beleza selvagem: cheia de florestas densas e habitada apenas pelo silêncio das árvores e pelo canto distante dos pássaros.

Os primeiros dias foram marcados por novos desafios a cada instante. A família construiu um abrigo improvisado com troncos e folhas, um barraco rudimentar que mal os protegia das chuvas incessantes e do frio das noites. Mas, para os Mancoretti, aquele refúgio simples representava o primeiro passo para um lar. Vittorio, com o machado nas mãos, passava as manhãs derrubando árvores gigantescas e lutando contra os espinhos, enquanto Bianca, com maestria e paciência, limpava pedaços de terra para plantar repolhos e legumes.

As dificuldades pareciam insuperáveis. A comida era escassa, os braços não bastavam para todo o trabalho, e a solidão pesava como um fardo invisível. Rosa, ainda fraca após a viagem, contraiu uma febre alta que rapidamente drenou suas forças. Sem médicos ou remédios, Bianca cuidou da menina com compressas de ervas e orações todas as noites. Milagrosamente, Rosa se recuperou, mas aqueles dias de medo deixaram marcas profundas em todos os corações da família.

Foi a solidariedade dos outros colonos que trouxe algum alívio e esperança. Os recém-chegados logo entenderam que sobreviver era possível apenas com o esforço coletivo. Juntos, homens e mulheres trabalhavam para abrir trilhas na floresta, erguer casas simples e compartilhar a pouca comida que tinham. Vittorio, com sua determinação calma e talento natural para liderar, tornou-se uma referência para a comunidade. Sua voz firme e serena era como uma âncora em meio às tempestades da vida.

O Florescer da Esperança

Após cinco anos de luta contínua contra a terra, o tempo e suas próprias incertezas, a vida dos Mancoretti começou a mudar de forma. As terras, antes uma extensão selvagem de floresta densa, agora exibiam fileiras ordenadas de trigo dourado, pés de feijão verde e vinhedos carregados de uvas suculentas. O cheiro da terra fértil, conquistada com suor e perseverança, permanecia como um lembrete do que o esforço humano podia alcançar.

Vittorio, incansável, dedicou cada minuto de seus dias a construir uma casa digna para sua família. A nova casa de madeira, erguida com tábuas robustas cortadas por suas próprias mãos, era um símbolo de vitória. Na sala principal, pendurou com reverência o crucifixo que haviam trazido da Itália, um lembrete de fé e esperança que os sustentou nos anos mais difíceis. A casa, embora simples, tinha um calor humano que nenhuma mansão poderia replicar.

Matteo, agora um jovem forte e curioso, tornara-se o braço direito do pai nos campos. Mas, enquanto suas mãos calejadas trabalhavam a terra, sua mente sonhava mais alto. Ele desejava mais do que uma vida de trabalho agrícola; sonhava em criar uma escola para as crianças da colônia, oferecendo-lhes um futuro onde pudessem escrever, ler e sonhar como ele fazia. Rosa, por sua vez, havia se transformado de uma menina frágil em uma jovem cheia de vida. Sua saúde agora florescia, e sua voz, melodiosa e cheia de emoção, conquistava os corações dos colonos durante as missas na capela improvisada, um pequeno barraco decorado com flores e devoção.

Na primavera de 1890, a primeira colheita de vinho da família Mancoretti foi realizada, marcando um momento de grande satisfação. O aroma doce do mosto invadiu a casa, e os barris, armazenados no recém-construído celeiro, simbolizavam mais do que trabalho árduo: eram a promessa de um futuro próspero.

Naquela noite, sob um céu estrelado, os Mancoretti e seus vizinhos permitiram-se sonhar. Eles não estavam apenas sobrevivendo; estavam criando raízes profundas, tão sólidas quanto os vinhedos que começavam a dar frutos.

Naquele tempo, ele pensava, troquei a comodidade pelo risco, o hábito pelo desafio. E a liberdade, esta terra generosa, nos retribuiu com raízes que jamais imaginei que pudessem se aprofundar tanto.” Às vezes, ele sussurrava ao vento, como se conversasse com Bianca: “Conseguimos. Não apenas por nós, mas por todos aqueles que vieram depois.”

Com o som distante das risadas dos seus netos, que se divertiam entre as fileiras de videiras, Vittorio fechava os olhos por um momento, sentindo-se em paz. Ele sabia que havia cumprido seu dever e que o legado dos Mancoretti não era apenas a terra que ele havia cultivado, mas também os sonhos que havia plantado e as vidas que havia tocado. No coração da Serra Gaúcha, sob um céu que parecia mais luminoso do que nunca, a história de Vittorio tornava-se parte desta terra que ele tanto amava.

Nota do Autor

A história da família Mancoretti é uma ficção inspirada em muitos relatos de imigrantes italianos que chegaram ao Brasil no final do século XIX. Assim como Vittorio e Bianca, centenas de milhares de famílias deixaram suas terras natais, especialmente das regiões do Vêneto, Lombardia e Trentino-Alto Ádige, em busca de uma vida melhor. Fugiam da miséria, das crises econômicas e da falta de perspectivas que assolavam a Itália após a unificação, encontrando no Brasil um novo lar, embora cheio de desafios.

As colônias italianas no Rio Grande do Sul, como Caxias, Dona Isabel (atual Bento Gonçalves) e Conde d’Eu (hoje Garibaldi), foram fundadas em meio à mata virgem da Serra Gaúcha. Os primeiros anos desses imigrantes foram marcados por um profundo isolamento, condições de trabalho adversas e a falta de infraestrutura básica, como estradas, médicos e escolas. Muitos enfrentaram doenças, perdas pessoais e uma saudade profunda, mas, ao mesmo tempo, construíram comunidades vivas e resilientes, que moldaram a identidade cultural e econômica dessa região.

O personagem de Vittorio representa o espírito de liderança e perseverança que emergiu entre os colonos, enquanto Bianca simboliza a força e a fé que sustentavam tantas famílias. Matteo e Rosa refletem as gerações seguintes, que sonhavam e trabalhavam para ampliar os horizontes conquistados por seus pais.

A inclusão do vinho como parte do legado da família Mancoretti é uma homenagem à introdução da viticultura pelos italianos no Brasil, um feito que transformou a Serra Gaúcha em um dos principais centros vinícolas do país. Ainda hoje, as festas da colheita e as celebrações comunitárias são ricas em tradições trazidas da Itália, repletas de música, dança e gratidão pela terra que os acolheu.

Esta história é uma ode à resiliência humana, ao poder dos sonhos e à força de um legado que transcende fronteiras. Que os Mancoretti sejam um espelho para todos aqueles que, em momentos difíceis, tiveram a coragem de recomeçar e criar raízes em terras distantes, transformando o desconhecido em lar.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta