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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Anna: Um Coração Entre Duas Terras



Anna: Um Coração Entre Duas Terras

Anna já tinha 19 anos quando embarcou com seus pais, Giuseppe e Maria, e seus dois irmãos mais novos, Carlo e Lucia, rumo ao desconhecido Brasil. A decisão de deixar Grignano Polesine, um pequeno e quase esquecido vilarejo na província de Rovigo, não foi fácil, mas tornou-se inevitável. O Vêneto, assolado por uma sequência de colheitas ruins e crises econômicas, já não oferecia sustento. A terra, dividida em pequenos lotes que mal rendiam o suficiente para alimentar uma família, não era capaz de acompanhar o crescimento populacional. 

Na casa modesta em que viviam, o frio do inverno entrava pelas frestas, e o calor do verão trazia consigo o cheiro agridoce do esforço agrícola que raramente era recompensado. Giuseppe, um homem de mãos calejadas e olhar esperançoso, passava as noites conversando com Maria sobre as cada vez mais frequentes histórias que corriam pelo vilarejo: terras vastas e férteis no Brasil, onde as famílias poderiam começar uma nova vida.

"Uma chance para os nossos filhos", ele dizia, olhando para Anna, Carlo e Lucia, enquanto Maria costurava, tentando esconder as lágrimas que escorriam silenciosamente. Apesar de suas reservas, ela sabia que permanecer significava assistir a família definhar lentamente. 

A viagem foi planejada às pressas, com os poucos recursos que tinham. Venderam os parcos pertences, guardaram as economias em um pequeno baú de madeira, e seguiram de trem até o porto de Gênova. Cada despedida no vilarejo era marcada por um misto de dor e esperança. Anna, embora jovem, já compreendia o peso daquela jornada. O olhar dela, fixo no horizonte, refletia uma mistura de ansiedade e determinação.

A bordo do navio, a realidade da decisão começou a se revelar. As condições eram precárias, com espaço limitado, alimentos racionados e o mar, imenso e intimidador, estendendo-se até onde os olhos podiam alcançar. Ainda assim, havia algo no brilho dos olhos de Giuseppe e na coragem silenciosa de Maria que mantinha a esperança viva. 

Anna sabia que aquela travessia era mais do que uma viagem física: era uma passagem para o desconhecido, uma ruptura com o passado e uma promessa de futuro. Enquanto o navio balançava ao ritmo das ondas, ela segurava firme a mão de Lucia, sussurrando histórias para distrair a irmã mais nova dos temores que também habitavam seu coração.

No silêncio da noite, deitada em um canto do convés, Anna olhava as estrelas e imaginava como seria a nova terra, com suas promessas de campos verdes, novos desafios e talvez... novas alegrias. Era uma partida dolorosa, mas também o primeiro passo em direção a um sonho que, mesmo distante, começava a tomar forma.

A travessia foi dura. Durante semanas confinados no porão do navio, enfrentaram o frio, a fome e as doenças. Anna ajudava a cuidar dos irmãos e dos outros pequenos que adoeciam durante a jornada. Finalmente, chegaram ao Brasil, onde foram levados para uma colônia agrícola em uma região isolada do interior do Paraná.

Os primeiros dias na colônia foram marcados pelo trabalho incessante. A terra, coberta por mata densa, precisava ser desbravada. Anna, ao lado de seus pais, trabalhava sem descanso, mas ainda encontrava tempo para organizar momentos de convivência com as outras famílias. Sabia que, em meio à dureza do novo lar, era importante cultivar a esperança.

Certo dia, durante uma celebração comunitária na pequena capela improvisada da colônia, Anna conheceu Pietro, um jovem com cerca de 25 anos, que havia chegado alguns meses antes com a mãe e três irmãos. Pietro era marceneiro, uma habilidade que aprendera com o pai, falecido a pouco tempo, e sua presença era valiosa na colônia, pois sabia construir móveis e ajudar a erguer as casas de madeira.

Anna e Pietro se aproximaram durante os encontros na capela e nas festas organizadas pela comunidade. Pietro era um jovem gentil e trabalhador, e seu jeito calmo conquistou Anna. Nas poucas horas de descanso, ele ensinava Anna e outras pessoas a usar ferramentas simples, o que ajudava na construção das casas. Pietro também era conhecido por sua habilidade em esculpir imagens religiosas, algo que o tornava querido pelo padre e pelas famílias da colônia.

Com o tempo, Pietro começou a ajudar a família de Anna na construção da sua casa. Durante esses dias, os dois trocavam confidências e risos. Ele contava histórias sobre sua terra natal, um pequeno comune próximo de Padova, enquanto Anna falava com saudade das noites tranquilas em Grignano Polesine.

A amizade logo se transformou em algo mais. Pietro, em suas visitas à casa da família de Anna, mostrava-se cada vez mais interessado na jovem. Giuseppe, o pai de Anna, aprovava o rapaz, vendo nele um homem digno e trabalhador, capaz de construir um futuro ao lado de sua filha.

O namoro entre Anna e Pietro trouxe alegria à vida dura da colônia. Eles sonhavam com um futuro juntos, mas sabiam que o caminho seria cheio de desafios. Anna, sempre determinada, encontrou na companhia de Pietro uma força renovada. Juntos, ajudaram a organizar a colônia, promoveram eventos comunitários e incentivaram a alfabetização entre os mais jovens.

Aos poucos, Anna e Pietro começaram a construir sua própria casa, um pequeno lar rodeado pelas plantações de milho e feijão que cultivavam com as próprias mãos. A casa, com móveis simples feitos por Pietro, tornou-se um símbolo de sua união e do sonho compartilhado de prosperidade em uma terra tão distante de suas origens.

A vida na colônia permanecia repleta de desafios. As saudades da terra natal se manifestavam como um vazio constante, ecoando nos silêncios das noites e nos suspiros que escapavam durante os dias de trabalho árduo. As doenças, implacáveis, ceifavam vidas e testavam os limites da resistência de cada colono. O isolamento, por sua vez, ampliava as dificuldades, tornando cada jornada até os vizinhos um esforço monumental e cada carta recebida da Itália uma preciosidade capaz de reacender tanto a alegria quanto a saudade.

Mas, em meio a esse cenário de provações, Anna e Pietro encontraram força no amor que os unia. Não eram apenas os campos que cultivavam; era também a esperança que se renovava a cada amanhecer, o sentimento de pertença que crescia ao redor de uma mesa compartilhada, e a solidariedade que florescia entre aqueles que enfrentavam as mesmas batalhas. Com cada colheita, por mais modesta que fosse, erguiam não apenas sustento para suas famílias, mas também a certeza de que suas raízes começavam a se fixar em terras antes desconhecidas. Com suas mãos calejadas e corações determinados, ajudaram a moldar uma comunidade onde antes havia apenas mata e incerteza. E assim, juntos, Anna e Pietro provaram que a força do espírito humano não apenas sobrevive às adversidades, mas as transcende, permitindo que a vida floresça mesmo onde parecia impossível. A colônia, com suas dificuldades e conquistas, tornou-se um testemunho vivo do poder da união, do trabalho e da fé em um futuro melhor.


Nota do Autor


O trecho apresentado aqui é um resumo do romance "Anna: Um Coração Entre Duas Terras", uma obra que mergulha nas complexas emoções e escolhas de uma jovem italiana, Anna, que enfrenta os desafios de deixar sua terra natal em busca de um novo começo no Brasil. Entrelaçando os laços da cultura, das tradições e das memórias, a narrativa reflete a luta interna de Anna, dividida entre o amor pela Itália que deixou para trás e a esperança em construir uma nova vida em terras desconhecidas. Este romance é um tributo aos imigrantes, às suas jornadas cheias de sonhos, sacrifícios e saudades, e uma celebração da força de um coração que aprende a pulsar entre duas terras, duas culturas e dois amores. Que cada leitor encontre, em Anna, um reflexo da coragem humana frente ao desconhecido e a beleza das raízes que nos conectam ao que somos.

Com carinho,

Piazzetta

domingo, 5 de outubro de 2025

Da Terra do Pó às Terras Vermelhas de Rio Claro – De Ramodipalo a Mombuca


 

Da Terra do Pó às Terras Vermelhas de Rio Claro 

De Ramodipalo a Mombuca


O ano de 1886 trouxe consigo um vento gelado sobre os campos alagadiços de Ramodipalo Rasa, pequena localidade do município de Lendinara, na província de Rovigo. Domenico Azzolino, nascido em 1º de novembro de 1861, sabia que sua vida já estava marcada pelas águas do Pó e pela miséria sem fim que assolava aquelas terras. Sua esposa, Giudite Osti, nascida em 8 de setembro de 1867, compartilhava da mesma resignação. O solo parecia fértil apenas para a fome: milho mirrado, trigo que se perdia com as chuvas, e os vastos arrozais de Ramodipalo, embora abundantes, raramente beneficiavam os camponeses, que trabalhavam neles apenas como diaristas, sem jamais provar da prosperidade que produziam. Nada havia para os filhos pequenos, e nada haveria no futuro. A emigração não era escolha, era a última esperança. A decisão foi tomada como se fosse sentença. Venderam o pouco que tinham, juntaram as moedas, despediram-se da antiga casa de pedra e barro que guardavam memórias e partiram. A travessia do Atlântico começava.

No porto de Gênova, uma multidão de camponeses amontoava-se em filas desordenadas. Homens de mãos calejadas, mulheres de olhos cansados, crianças agarradas às saias das mães. Os navios eram fortalezas flutuantes, carregados não apenas de corpos, mas de ilusões. Domenico embarcou com Giudite e os dois filhos pequenos, levando na mala alguns utensílios, uma muda de roupas e um punhado de sementes de milho, como se pudesse, com aquilo, transportar um pedaço da pátria. A bordo, o tempo dissolvia-se em dias intermináveis. O espaço exíguo no porão cheirava a suor, maresia e doença. A comida, distribuída em porções miseráveis, misturava caldo ralo com pedaços de carne salgada. O mar, ora espelho, ora monstro, lembrava-os de que a viagem não tinha retorno. Crianças choravam noite adentro, velhos gemiam com febres. A cada enterro no oceano, quando um corpo era lançado às ondas envolto em lençóis brancos, o silêncio dos passageiros tornava-se mais pesado que o barulho das ondas.

Quando, finalmente, a silhueta do litoral brasileiro surgiu no horizonte, uma onda de alívio percorreu os emigrantes. Mas o desembarque em Santos trouxe mais medo que esperança: palmeiras se erguiam como sentinelas estranhas, o calor sufocava, os mosquitos zuniam em enxames. Dali, reunidos em um grande grupo, foram levados de trem para o interior de São Paulo, até Rio Claro, onde a Fazenda Bela Vista os aguardava.

A fazenda, propriedade dos irmãos Ribeiro, brasileiros de origem portuguesa, era um verdadeiro império de café. Fileiras intermináveis de pés verdes cobriam o horizonte, como um mar vegetal sem fim. Mas por trás da grandiosidade escondia-se a realidade brutal: trabalho incessante, dívidas no armazém da fazenda, alojamentos improvisados. Domenico e Giudite não tiveram escolha. Assinaram com as mãos trêmulas o contrato de colonos, sem entender cada cláusula, mas conscientes de que não havia outra saída.

A lida começava antes da luz da aurora, quando o sino da fazenda convocava os trabalhadores. Os colonos avançavam para o campo com enxadas, sacos e cestos, sob a vigilância dos feitores. O calor do meio-dia queimava a pele até abrir feridas; a chuva transformava o terreno em lama onde se afundava até os joelhos. O café exigia força, paciência e uma resistência quase sobre-humana.

Foi nesse ambiente que a tragédia se aprofundou. Domenico e Giudite já haviam perdido dois filhos na Itália, mas não imaginavam que as febres do Brasil arrancariam deles também os dois pequenos que haviam trazido. Enterraram as crianças em covas rasas, sob uma cruz improvisada, enquanto o trabalho não cessava. O luto era sufocado pelo toque do sino, que obrigava a todos a voltar ao campo.

A vida, porém, teimava em continuar. Vieram novos filhos: Guerino, Domingos, José, Albino e Teresa. Cada nascimento era uma vitória contra a terra hostil. Mas as dívidas cresciam no armazém da fazenda, onde cada saco de farinha, cada punhado de sal, era anotado com rigor no livro dos feitores. Para escapar à ruína, Domenico reduziu o sustento da família ao essencial. A polenta tornou-se o alimento de cada refeição, acompanhada apenas pelo suco das laranjas que apanhavam. O milho para a farinha ele conseguia trocando milhete no engenho de açúcar da Fazenda Itaúna.

Ainda assim, persistiam. Com permissão dos patrões, criavam dois porcos e algumas galinhas. Giudite enchia os quintais de vozes infantis e de canto de pássaros. O pouco transformava-se em muito, pela obstinação com que se agarravam à sobrevivência.

Anos de suor, silêncio e economia renderam frutos. Domenico e Giudite conseguiram juntar o suficiente para abandonar a condição de colonos assalariados. Compraram um terreno de terra fértil em Mombuca, não muito distante. Ali, pela primeira vez, respiraram o ar da liberdade. Construíram uma casa simples, cercada de lavouras próprias, e receberam de volta os filhos já casados, que ergueram suas famílias ao redor. Netos correram pelo pátio de terra batida, enchendo de risos o espaço que antes fora marcado pela morte.

Somente Teresa, a filha, não os acompanhou. Casada com Angelo Marino, também de origem italiana, fixou-se na Fazenda Santa Gertrudes, onde o marido trabalhava como um capataz. Ainda assim, a união familiar resistia à distância, como um fio invisível que mantinha todos ligados àquele núcleo fundado pelo sacrifício dos pais.

Em Mombuca, a vida encontrou um ritmo mais lento, sem, contudo, perder o peso da luta cotidiana. A pequena propriedade não lhes ofereceu riqueza, mas deu-lhes autonomia. Ali, já não eram obrigados a responder ao sino dos feitores, nem a comprar fiado no armazém da fazenda. Plantavam o que precisavam, criavam animais, e o que sobrava era trocado ou vendido nas feiras da região.

O tempo corria, trazendo casamentos dos filhos e o nascimento de netos que enchiam o terreiro com brincadeiras barulhentas. A casa, feita de madeira e barro, nunca foi grande, mas era suficiente para abrigar visitas frequentes. Ao redor, ergueram-se outras moradias simples, construídas pelos filhos, até que o pequeno núcleo familiar tomou ares de comunidade.

A velhice, porém, não trouxe apenas satisfação. Domenico carregava nos ossos o cansaço de décadas de trabalho duro, e seus silêncios prolongados denunciavam as lembranças que nunca se apagavam: a travessia pelo oceano, a fome dos primeiros anos e, sobretudo, os filhos perdidos ainda pequenos. Giudite, mais resistente, sustentava a rotina da casa, mas também se deixava vencer por recordações amargas, especialmente ao recordar os enterros apressados em solo estrangeiro.

As noites eram longas. Sentados sob o alpendre, ouviam os sons da mata misturados ao burburinho distante das vozes dos filhos. Às vezes, o silêncio pesava tanto quanto o trabalho dos tempos de colônia. Não falavam das dores, mas elas estavam presentes, invisíveis, em cada olhar cansado, em cada suspiro.

Aos poucos, Domenico e Giudite passaram a ser vistos como referências entre os filhos e vizinhos. Não porque fossem figuras grandiosas, mas porque haviam sobrevivido a tudo: ao desterro, à perda, ao trabalho sem fim. Tornaram-se testemunhas vivas de uma época em que milhares haviam cruzado o mar, e em cada ruga de seus rostos havia a marca dessa travessia.

Quando os anos avançaram ainda mais, e a vida começou a se esvair em silêncio, o casal já estava cercado por gerações que não haviam conhecido Rovigo, nem as águas do Pó, nem o medo dos primeiros dias no Brasil. Esses descendentes corriam livres pelos campos de Mombuca, alheios ao peso da história. Para Domenico e Giudite, essa era talvez a única vitória possível: deixar para os filhos e netos uma terra onde já não fosse preciso recomeçar do nada.

E assim se encerrou o percurso de dois imigrantes comuns, nem mais fortes nem mais fracos do que tantos outros, que viveram e morreram no interior paulista. A vida deles não foi marcada por glórias, mas por sobrevivência. E, no silêncio das suas memórias, encontrava-se a verdade mais dura e mais simples da grande imigração italiana: abandonar tudo, perder muito e, ainda assim, permanecer.

Nota do Autor

A trajetória de Domenico Azzolino e Giudite Osti não foi isolada. Entre 1870 e 1920, mais de um milhão e meio de italianos atravessaram o Atlântico em direção ao Brasil, muitos deles vindos do Vêneto, da Lombardia e do Piemonte. Assim como eles, deixaram para trás aldeias pobres, campos alagadiços ou montanhosos, e encontraram nas fazendas de café do interior paulista uma nova forma de sobrevivência. A vida dos Azzolino refletia a experiência de milhares: contratos mal compreendidos, dívidas no armazém, a fome vencida com polenta, a perda de filhos ceifados por doenças tropicais. Mas também revelava a lenta conquista da terra própria, a criação de novas gerações enraizadas no Brasil e a construção de pequenas comunidades familiares que se multiplicaram ao redor das antigas fazendas. Seus descendentes, espalhados hoje por diferentes cidades e regiões, carregam em silêncio essa herança feita de trabalho, sacrifício e persistência. E, na memória coletiva da imigração italiana, histórias como a de Domenico e Giudite são lembradas não como epopeias grandiosas, mas como a essência mesma da sobrevivência: homens e mulheres comuns que, ao abandonar sua terra natal, ajudaram a transformar o Brasil em um país de muitas pátrias.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta


segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Além do Piave, o Brasil: A Travessia de Matteo Pianaro

 


Além do Piave, o Brasil

A Travessia de Matteo Pianaro


O sino da pequena igreja da localidade de San Damiano di Piave bateu lento naquela manhã de dezembro de 1884. Matteo Pianaro ergueu os olhos, sem devoção, apenas por instinto. O inverno ainda não chegara com toda a força, mas o frio já corroía as juntas, e a geada dos campos era tão espessa quanto a fome de quem os arava. Com os dedos rachados e os olhos fundos, Matteo sabia que não havia mais como resistir à terra ingrata. A promessa do Brasil lhe parecia remota, quase ilusória — mas era a última que ainda podia acalentar.

O som grave e metálico do sino reverberava como um lamento, dissolvendo-se lentamente no ar gelado da planície vêneta, onde os campos jaziam imóveis, envoltos numa bruma que não se dissipava nem ao meio-dia. Ao redor da igrejinha, as poucas casas de pedra e cal exalavam fumaça cinzenta pelas chaminés, numa tentativa vã de aquecer corpos cansados e espíritos derrotados. Matteo, envolto num casaco puído herdado do pai, sentia o peso dos anos dobrado pela desesperança. Aos trinta e cinco, seus ombros já se curvavam como os dos velhos que viam seus filhos partir — ou seus netos morrerem — antes de tempo.

Cada sulco da terra congelada que se estendia diante dele parecia zombar de seu esforço, das madrugadas passadas com as mãos enfiadas na lama, dos domingos sem descanso. A vinha morria, o milho não vingava, e os filhos choravam à noite com os estômagos vazios. Nem mesmo os santos pareciam mais escutar as preces. A promessa do Brasil era mais que um boato entre camponeses: era o sussurro de um mundo desconhecido onde o trabalho ainda rendia pão, onde os filhos poderiam crescer sem carregar, tão cedo, o peso do fracasso.

Na véspera, Matteo ouvira de um forasteiro na taverna que uma nova leva de partidas estava sendo organizada em Treviso. Diziam que as passagens eram subsidiadas, que havia terras férteis à espera de braços dispostos. Não confiava em palavras soltas no vinho, mas sentira nelas algo que não sentia havia muito tempo: uma fagulha de direção. Ainda não havia falado com sua mulher, nem mesmo ousara escrever ao irmão em São Paulo — mas, no fundo, já sabia que a decisão estava tomada. O sino, naquela manhã, não chamava para a missa: anunciava o fim de um tempo, o fim da espera.

E enquanto os sons do bronze se apagavam entre os galhos nus das amoreiras, Matteo fechou os olhos por um instante e imaginou o cheiro da terra úmida sob o sol do outro lado do oceano. Não era fé, não era certeza. Era o último sopro de esperança que ainda lhe restava. E às vezes, sabia ele, era disso que nasciam os atos mais audaciosos dos homens.

Partiu com a esposa, três filhos pequenos e uma mala onde cabiam os restos do que fora sua vida. Embarcaram em Gênova num cargueiro saturado de corpos e esperanças. O porão escuro era úmido, fétido. O tempo ali passava como febre: indistinto, ardente, alucinante. Quarenta dias de travessia. Quarenta dias entre o enjoo, o medo e as orações. Quarenta dias vendo o mar apagar tudo o que ficava para trás.

Naquela embarcação enferrujada e rangente, o ar rarefeito misturava o cheiro da maresia com o suor ácido do desespero. As crianças choravam de fome ou de susto, às vezes sem motivo aparente — ou talvez por sentirem nos adultos uma inquietação que nem o balanço do navio conseguia disfarçar. Os colchões, quando existiam, eram fardos de palha úmida infestados de vermes. Ratos deslizavam por entre as frestas das tábuas, indiferentes às orações murmuradas em vários dialetos. Homens tossiam em cantos escuros, mulheres amamentavam sob o olhar da miséria, e cada amanhecer trazia consigo o medo de que alguém não despertasse mais.

Matteo, mesmo fraco e abatido, mantinha os olhos fixos na parede de madeira mofada à sua frente como quem tenta enxergar o outro lado do mundo através do casco. Cada noite parecia mais longa do que a anterior, e o som das ondas batendo contra o porão soava, ora como ameaça, ora como um apelo. O espaço, apertado e sufocante, fazia com que os dias se confundissem. A única certeza era o mar — uma presença constante, indiferente, imensa. Ele lavava, apagava, engolia.

Havia momentos em que Matteo se perguntava se havia cometido um erro fatal. Se não teria condenado a família a morrer ali mesmo, cercada de sal, de miséria e de silêncio. Mas então olhava para os filhos — magros, adormecidos em cima da mala que guardava suas origens — e se obrigava a crer que aquilo tudo fazia parte de uma travessia maior. Não apenas entre continentes, mas entre o passado e a promessa, entre a terra que o expulsara e o destino que ainda não ousava imaginar.

E assim seguiam, dia após dia, como sombras suspensas entre o céu e o abismo. Quarenta dias. Quarenta noites. Um tempo suspenso onde tudo o que tinham era a esperança — e um ao outro.

Desembarcaram em um porto escuro e barulhento no litoral brasileiro — a língua estranha, o calor pesado, a confusão de nomes e ordens lançadas aos gritos. Receberam instruções vagas e um destino longínquo: uma colônia chamada Santa Apolônia, situada no interior da Província do Espírito Santo. Mas não havia trem. Não havia carroça. Apenas trilhas, barro e mata fechada.

O cais fervilhava como uma colmeia desorganizada, onde o tropel de vozes misturava ordens dos funcionários da alfândega, lamentos de famílias perdidas e o estalido constante das carroças que vinham e iam carregadas de fardos e confusão. O sol pesava sobre as costas dos recém-chegados como uma punição, e o ar úmido e denso fazia o suor brotar antes mesmo de qualquer esforço. Matteo apertava a mão da esposa enquanto mantinha os olhos atentos às crianças, tentando não se perder naquele labirinto de sons e de rostos apressados.

A terra que os acolhia parecia, à primeira vista, tão hostil quanto a que haviam deixado. Não havia placas, não havia intérpretes, não havia qualquer traço do mundo que conheciam. Apenas promessas pronunciadas às pressas, dedos apontando para mapas improvisados e ordens gritadas em português, idioma que mais confundia do que guiava. A única coisa clara era que precisavam seguir rumo ao interior, atravessar serras e vales até alcançar a tal Santa Apolônia.

Mas não havia trem. Não havia carroça. Apenas trilhas, barro e mata fechada. Caminhos primitivos riscados por tropeiros, ladeados por árvores tão altas que pareciam tocar o céu. O mato denso engolia os sons, abafava os passos, ocultava perigos invisíveis. Sob os pés, o barro sugava as botas e o ânimo, tornando cada metro conquistado uma batalha. Mosquitos zumbiam incessantes, o silêncio da floresta era entrecortado por gritos de aves estranhas, e o tempo parecia ter parado numa eternidade verde e úmida.

Marcharam assim por dias, carregando crianças, mantimentos e lembranças. A cada curva da trilha, a esperança oscilava entre a exaustão e o impulso de continuar. Matteo sabia que a travessia ainda não havia terminado. O navio fora apenas o começo — agora começava a verdadeira luta para conquistar o chão prometido.

O sol tropical, implacável mesmo sob a sombra da mata, derretia os últimos vestígios do inverno europeu que ainda resistia nos corpos e nos pensamentos. Os pés afundavam no barro espesso, onde até os mais leves passos exigiam esforço dobrado. Às costas, Matteo carregava parte da bagagem; nos braços, a filha mais nova adormecida, a cabeça tombada de cansaço. A cada passo, um rangido nas costas, um latejar nos joelhos, um suspiro contido que não ousava se transformar em lamento.

A trilha era estreita, muitas vezes tomada por raízes retorcidas, pedras traiçoeiras ou pequenos riachos que surgiam como obstáculos imprevisíveis. Havia noites em que dormiam sob abrigos improvisados de folhas e galhos, ouvindo os sons inquietantes da floresta — ruídos que nenhum deles sabia nomear. Rugidos distantes, estalos secos, zumbidos incessantes. E havia manhãs em que acordavam encharcados por chuvas súbitas, espremendo as roupas molhadas antes de seguir adiante, pois parar era morrer um pouco.

Os mantimentos escasseavam. Dividiam pedaços de pão seco com gestos solenes, como se fossem relíquias de um tempo mais generoso. A cada dia, Matteo via a expressão de sua esposa perder cor, os olhos se tornarem mais opacos, mas também mais firmes. Ela não reclamava. Carregava o que podia, segurava as mãos dos filhos, e avançava. Era como se, entre as raízes daquelas árvores estranhas, brotasse também uma fibra nova, feita de resistência e teimosia.

Ao longe, quando um colonizador veterano lhes falara da terra fértil, das sementes, das casas de madeira e do café que brotava como milagre da terra morna, Matteo acreditara apenas pela necessidade de crer. Mas agora, no interior daquela selva viva e sufocante, ele percebia que o sonho não se comprava com promessas — era preciso atravessar o inferno para alcançá-lo.

E ele marchava. Com os pés doendo, o corpo em frangalhos e os olhos voltados para a frente. Porque a esperança, mesmo combalida, era mais poderosa que o medo. E porque o chão prometido, embora ainda invisível, começava a existir em cada passo vencido com suor, silêncio e fé.

Sem dinheiro, como muitas outras famílias, seguiram a pé. Corta-mato. Homens, mulheres e crianças abrindo caminho à foice, dormindo sob folhas, comendo o que se podia cozinhar em panelas encardidas sobre o fogo. As crianças choravam de exaustão. As mulheres carregavam trouxas e filhos no colo. Os homens andavam calados, olhos fixos no horizonte que não chegava nunca.

As trilhas improvisadas sumiam sob a vegetação densa, obrigando os mais fortes a abrir caminho com golpes compassados, a lâmina da foice ressoando como um metrônomo de sobrevivência. Cada clareira conquistada era um alívio momentâneo antes da próxima parede verde. Os pés nus ou mal calçados sangravam sobre pedras e raízes, mas ninguém reclamava. A dor já era parte da marcha — assim como a fome, a sede e o cansaço que transformava até o silêncio em peso.

Dormiam onde a noite os alcançava. Às vezes sob árvores retorcidas, outras em barrancos encharcados, e quando a sorte ajudava, sob alguma saliência de pedra onde o vento não soprava tão forte. O fogo, quando conseguiam acendê-lo, era pequeno e tímido, cercado por olhares vigilantes. Em volta dele, panelas amassadas ferveram raízes desconhecidas, um pouco de farinha, às vezes uma casca de fruta ou um punhado de grãos resgatados da última parada.

As crianças, consumidas pela fadiga, choravam pouco e dormiam como se o sono fosse uma defesa contra o desespero. Algumas adoeceram. Outras perderam peso tão rápido que pareciam desaparecer entre os braços das mães. Mas mesmo assim seguiam. As mulheres, com os cabelos presos em nós desfeitos, os rostos cobertos de fuligem e pó, avançavam firmes, embalando os filhos no colo enquanto equilibravam trouxas amarradas em panos desbotados.

Os homens caminhavam calados, com os olhos fixos no horizonte que não chegava nunca. Eram olhares vazios, duros, talhados pelo instinto de proteger, de resistir — mesmo sem saber até quando. A esperança já não se dizia em palavras, mas nos passos que insistiam em avançar, um após o outro, como se cada metro vencido arrancasse do destino um fragmento de futuro.

E assim continuaram, dia após dia, como uma caravana de náufragos da terra, cruzando uma vastidão verde onde tudo era incerteza — menos a determinação de chegar.

Ao final de cada dia, paravam onde a floresta permitia. As mães acendiam o fogo, ferviam um punhado de milho, estendiam as mantas. Quando chovia, dormiam encolhidos, esperando a lama baixar. A viagem, que deveria durar três dias, estendeu-se por semanas. Cada passo era uma luta. Cada rio cruzado, uma prova. Cada árvore derrubada, uma conquista amarga.

Finalmente, encontraram o tio de Matteo — um velho emigrado anos antes, que os recebeu com lágrimas e pão seco. Estavam perto da colônia. Mas o pior ainda viria.

O terreno que lhes fora reservado era um fiapo de encosta pedregosa, voltado para o vento, difícil de domar. O solo cuspia enxadas, rejeitava sementes. Ainda assim, fincaram ali as estacas da vida nova. Construíram uma casa de barro e pau-a-pique. Plantaram milheto, criaram porcos e galinhas. Acordavam antes da luz, dormiam depois do cansaço. A floresta, aos poucos, cedia — não por respeito, mas por insistência.

O reencontro com o tio, encolhido pela idade e pelas décadas de lida solitária, trouxe um alívio breve, quase simbólico. A casa do velho era pouco mais que um abrigo, mas ali compartilharam o primeiro alimento quente em dias — caldo ralo e palavras entrecortadas pela emoção. O velho apertou Matteo contra o peito com a força de quem agarra o que pensava ter perdido para sempre. E então, no dia seguinte, apontou com a mão trêmula o rumo da terra que fora designada ao sobrinho. Seu olhar, sombrio, dizia mais do que os lábios permitiam.

A tal terra era dura, inclinada, coberta de pedra e mato bravo. Uma vertente ingrata, açoitada pelos ventos que uivavam à tarde e gelavam ao amanhecer. Os primeiros golpes de enxada ricocheteavam como se o solo zombasse da tentativa. Quando não era a pedra, era a raiz. Quando não era a raiz, era a erosão. O milheto crescia ralo, amarelecido, e os porcos escapavam pelas cercas frágeis feitas com o que a mata deixava arrancar. As galinhas eram mais teimosas que produtivas.

Mas não voltaram atrás. Ali fincaram as estacas, batendo-as com mais fé que força, porque força já não sobrava. A casa de barro e pau-a-pique nasceu como todas as coisas que realmente importam: de forma imperfeita, mas essencial. Um cômodo só, coberto de folhas e esperança. A fumaça do fogão de lenha subia torta pela telha solta, e os dias se marcavam pela luz que entrava entre as frestas.

As noites eram longas e ruidosas. O canto das cigarras, os estalos da mata, os gritos distantes de algum bicho noturno criavam um concerto que mantinha os sentidos em alerta. E mesmo assim dormiam — não porque o medo cessasse, mas porque o corpo exigia rendição. Cada manhã trazia uma tarefa nova, um problema novo, um desafio mais absurdo que o anterior.

A floresta, aos poucos, cedia — não por respeito, mas por insistência. Cada árvore tombada era uma conquista. Cada metro roçado, uma vitória. Não havia heroísmo naquilo, apenas sobrevivência. Mas, dia após dia, como soldados de uma guerra silenciosa, Matteo e os seus foram abrindo clareiras, construindo raízes, reinventando o destino com as próprias mãos.

A mulher de Matteo, Benedetta, passou a fiar algodão trazido por outros colonos. Os filhos cresceram com os pés descalços, os joelhos em sangue, os olhos já endurecidos pela luta. Um deles morreu de febre no terceiro ano — e Matteo o enterrou com as próprias mãos, sem padre, sem hino, apenas com uma cruz improvisada de bambu.

As noites, para Benedetta, tornaram-se longas jornadas diante da roca, os dedos calejados puxando o fio com a precisão de quem transformava a dor em trabalho. O algodão era bruto, cheio de sementes, mas suas mãos sabiam domá-lo. Com o tempo, trocava novelos por sal, por farinha, por pequenos favores entre vizinhos. Fiava como quem reza — não por piedade, mas por necessidade. Quando os filhos dormiam, ela ainda estava de pé, os cabelos presos de qualquer jeito, o corpo já exausto, mas os olhos fixos no movimento da roda.

As crianças aprendiam com a terra e com os tropeços. Cresceram selvagens, espertos, com a pele marcada de arranhões e picadas, os pulmões acostumados ao ar pesado do mato e os músculos moldados pelo trabalho precoce. Subiam em árvores, pescavam em riachos, aprendiam a distinguir os sons da floresta antes mesmo de saber escrever o próprio nome. A infância era curta — interrompida não por um rito de passagem, mas pela urgência da sobrevivência.

Foi no terceiro ano que a febre chegou. Veio como um sussurro quente, depois virou incêndio. Matteo observou o filho delirar por dois dias, os olhos vidrados no teto de palha, o corpo pequeno queimando como brasa viva. Não havia médico, nem farmácia, nem santo que acudisse. Os vizinhos apenas observavam à distância, impotentes, pois todos sabiam que a febre, quando tomava uma criança, raramente devolvia.

Quando o menino morreu, ao amanhecer, o silêncio na casa foi mais ensurdecedor que qualquer grito. Benedetta permaneceu sentada por horas, o rosto escondido nas mãos. Matteo saiu em silêncio, cavou a cova com uma enxada cega e enterrada pela ferrugem, num canto de terra onde o sol ainda batia com gentileza. Não houve padre, não houve hino. Apenas uma cruz improvisada de bambu, cortada às pressas, fincada com força no chão duro.

Depois, Matteo voltou para casa, lavou o rosto na bacia de alumínio, sentou-se ao lado da esposa e esperou a noite cair. O luto, como tudo ali, não tinha luxo — mas era profundo. E no dia seguinte, como sempre, o galo cantou, o mato cresceu e a vida recomeçou. Porque não havia escolha.

O tempo passou sem pressa. A colônia cresceu. Vieram mais famílias, abriram mais trilhas, construíram uma escola, um pequeno mercado, uma capela. Matteo envelheceu curvado, mas não amargurado. A vida nunca foi boa, mas deixou de ser impossível. Seu nome jamais foi registrado em livro algum, mas viveu o suficiente para ver o primeiro neto nascer sob um teto de telha, em vez de palha.

A lentidão dos dias esculpiu a colônia com o cinzel da persistência. A cada estação, as picadas viravam trilhas, as trilhas, estradas. As primeiras casas de pau-a-pique deram lugar a moradias de madeira lavrada, e os telhados de sapê, tão frágeis às chuvas, começaram a ser substituídos por telhas vermelhas trazidas por tropeiros vindos do sul. A escola nasceu de uma sala improvisada com bancos rústicos e uma professora que ensinava com a voz firme e a palma da mão, mas ali começou a germinar o futuro.

O pequeno mercado, instalado no anexo de uma casa de imigrantes bávaros, passou a vender sal, querosene, pregos e, com o tempo, até café moído em saco de pano. A capela, de madeira escura, erguia sua cruz simples contra o céu comovido das manhãs de domingo. Os sinos, quando enfim chegaram, foram içados por uma multidão de mãos calejadas — e tocavam não só por fé, mas também por memória.

Matteo assistia a tudo com o olhar de quem soube esperar. O corpo já dobrado, a barba encanecida como a palha madura do milheto, os olhos fundidos à paisagem. Já não lavrava a terra com a mesma força, mas ainda inspecionava cercas, afiava ferramentas, sentava-se ao entardecer no banco à sombra do galpão para observar os netos correrem descalços, como haviam feito seus filhos — mas agora sem fome nos olhos.

O passado não o deixava, mas também já não o feria. Tinha cicatrizes demais para se dar ao luxo de arrependimentos. Havia perdido, sofrido, enterrado, mas também resistido, construído, deixado raízes. Sua história, embora nunca registrada em livro algum, estava gravada nas paredes das casas que ajudou a levantar, nas estradas abertas à foice, nas sementes que fincaram o chão duro com esperança.

E quando segurou o primeiro neto nos braços — um menino rosado, de olhos escuros como os seus — e viu que ele nascia sob um teto de telha, em vez de palha, sentiu pela primeira vez algo próximo da paz. Não era glória, nem recompensa. Era apenas a confirmação de que tinha valido a pena.

E quando morreu, deitado em silêncio no chão de sua casa, foi velado por vizinhos que o chamavam de "fundador", embora ele jamais tenha se visto assim. Matteo Pianaro não descobriu nada, não venceu nada. Apenas chegou — e ficou.

Sua história, como a de tantos, é feita de lama, suor, perda e persistência. Não há glória. Há sobrevivência. E, com ela, um tipo raro de heroísmo: o dos que vieram a pé e, mesmo sem entender a língua dos céus tropicais, aprenderam a cultivar raízes em terra estranha.

Morreu como viveu: sem alarde, sem testemunhas ilustres, sem cerimônia. A respiração foi ficando rasa, o olhar, cada vez mais longe. Ninguém ouviu suas últimas palavras — talvez não tenham existido. Quando o neto o encontrou ao amanhecer, estendido sobre o esteiro de palha junto ao fogão de lenha já apagado, Matteo parecia apenas adormecido, o rosto sereno como raramente fora em vida.

O velório aconteceu ali mesmo, no pequeno cômodo onde vivera seus últimos anos. Os vizinhos vieram aos poucos, em silêncio, trazendo flores do mato, pão fresco, cachaça. Sentaram-se em bancos de madeira, contaram histórias antigas, algumas talvez inventadas, outras exageradas, como é de costume entre os que precisam manter viva a memória dos que partem. Chamavam-no de “fundador” com uma reverência tímida, quase envergonhada — porque sabiam que Matteo jamais se reconheceria nesse título.

Ele não fora pioneiro por vocação, nem líder por talento. Fora apenas um homem comum, empurrado pelo desespero, sustentado pela necessidade, endurecido pela vida. Alguém que, diante do infortúnio, escolheu não voltar — e com isso, sem perceber, abriu caminho para os outros. Não construiu monumentos, mas sua ausência deixava um vazio do tamanho de uma geração.

E assim, sob uma tarde morna, foi enterrado com a mesma simplicidade com que vivera: num pedaço de terra roçada à mão, entre dois pés de guabiroba, com uma cruz de madeira cravada firme no chão. Sem epitáfio. Sem discurso. Mas com o reconhecimento silencioso dos que sabiam que, se hoje havia telhas nos telhados, crianças na escola e pão na mesa, era porque homens como Matteo haviam suportado o peso dos primeiros dias.

A história dele — como a de tantos outros — não cabe nos livros de heróis. Mas se imprime na paisagem, se espalha no sangue dos descendentes e ressoa, ainda que sem palavras, no modo como as comunidades respiram. Um heroísmo sem medalhas, sem bustos, mas com raízes profundas: o dos que, mesmo vencidos pela terra, jamais deixaram de semeá-la.

Nota do Autor

Esta história nasce da voz silenciosa de tantos emigrantes do século XIX que deixaram suas terras, suas famílias e suas memórias em busca de um futuro incerto além do Atlântico. Embora os nomes e lugares aqui apresentados sejam fruto da ficção, eles carregam o peso e a verdade de experiências vividas por milhares de homens e mulheres que enfrentaram o desconhecido com coragem e perseverança.

A narrativa não pretende glorificar, mas revelar a dura realidade de quem atravessou florestas densas, abriu estradas com o facão e plantou raízes em solo estranho, muitas vezes sob condições adversas e promessas não cumpridas. É um tributo às jornadas anônimas que ajudaram a construir o Brasil interior, terra de conflitos, resistência e esperança.

Que esta obra sirva para lembrar que a história é feita não apenas pelos grandes feitos, mas principalmente pelo esforço cotidiano daqueles que, mesmo invisíveis nos grandes registros, imprimiram sua presença na terra e na memória.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta

Relação de Imigrantes Italianos Vapor Orenoque 1876

Vapor Comte Verde

 


Relação de Imigrantes Italianos

Vapor Orenoque


Porto de Gênova

ano 1876




Ambrosio

Basile

Berta

Borello

Calafiore

Cancale

Carnuvale

Catania

Cava

Cavalleri

Ciaciaroli

Cianci

Ciovero

Coitese

Curianello

Dangelo

De Angelis

De Brase

Debiasi

Debrasi

Desela

Desetta

Di Stefano

Diseta

Donadeo

Frosso

Garbo

Gelardo

Gentile

Giotto

Grosa

Grosso

Iolianelli

Ioni 

Liotti

Lonnice

Maddalena

Magnavita

Montana

Palmieri

Paterno

Perainolo

Pipolo

Prenza

Prospero

Reffani

Rocca

Salbato

Salitore

Sammarco

Seovini

Serra

Seta

Sicilia

Siciliano

Trala 

Vanni



sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Os Sonhos de Gianluca


 

Os Sonhos de Gianluca


Na Itália de 1887, Gianluca Pessina, um jovem agricultor em uma quase esquecida localidade de San Fiorenzo, na Toscana, vivia sob o peso insuportável da fome e da miséria. A terra que outrora pulsava vida, colorida com as tonalidades vibrantes de vinhedos e olivais, havia sido transformada por anos de estiagem implacável. O solo, antes fértil e generoso, agora não passava de um manto de pó estéril, rachado sob o sol abrasador. As colheitas, que em tempos passados garantiam sustento e alguma dignidade, tornaram-se um simulacro miserável de subsistência, mal permitindo à sua família enfrentar os dias.

A modesta propriedade dos Pessina, com seus campos ressequidos e muros de pedra gastas pelo tempo, recobertos por musgos espessos que delineavam os contornos das terras, erguia-se como um silencioso testemunho da decadência, um relicário da luta constante entre a esperança e a ruína. Gianluca percorria os campos diariamente, os olhos fixos no horizonte como se o próprio ato de encarar a vastidão pudesse trazer uma solução mágica para os problemas que os cercavam. Mas os dias se sucediam sem trégua, e o vazio em seus bolsos começava a refletir o vazio crescente no espírito.

Era nesse cenário que os rumores de uma terra distante, a América, ecoavam pelas ruas estreitas de San Fiorenzo. Sussurros escapavam das tabernas e dos mercados, carregados de uma promessa quase sobrenatural. Falavam de um continente onde os campos eram vastos e a terra tão fértil que o esforço humano era recompensado com fartura. Relatavam histórias de camponeses como ele, que deixaram para trás os grilhões da pobreza para se tornarem donos de suas próprias terras, senhores de um destino que parecia inalcançável em solo italiano.

Essas histórias, ora exaltadas com fervor, ora recebidas com ceticismo, chegavam a Gianluca como ventos inesperados, alternando entre a esperança e a dúvida. Ele não sabia ao certo se deveria confiar nessas promessas. Elas soavam como miragens que surgem no deserto, oferecendo um refúgio ilusório. Contudo, havia algo nelas que tocava um fio profundo em seu coração. Era uma esperança que não podia ser ignorada, uma força que se agarrava à alma mesmo quando a mente tentava resistir. Gianluca não sabia se a América era real, se era de fato um Éden ou apenas um sonho coletivo de um povo exausto. Mas a ideia de que poderia haver algo além da miséria cotidiana era poderosa demais para ser sufocada.

Em meio ao pó e à desolação, Gianluca sentia que a esperança era a única coisa que o mantinha em pé. Ela não alimentava seu corpo, mas sustentava sua alma.

Numa manhã de outono, envolta por uma neblina que pairava sobre as colinas de San Fiorenzo, Gianluca tomou a decisão irrevogável que alteraria o curso da história de sua família. Ao lado da esposa, Bianca, ele anunciou que a América não seria apenas um sonho distante, mas um destino concreto. Era uma escolha tanto de coragem quanto de desespero, movida pela necessidade de escapar de uma terra que já não lhes oferecia mais do que privações.

Com determinação silenciosa, Gianluca começou a vender os poucos bens que possuíam. A velha carroça, com seus eixos desgastados e tábuas rangentes, encontrou um comprador na vila vizinha, enquanto as duas galinhas, magras mas ainda valiosas, foram trocadas por algumas moedas e um saco de farinha para sustentar a família até a partida. Cada transação era acompanhada por um misto de alívio e melancolia. Esses objetos, por mais modestos que fossem, representavam anos de esforço e sacrifício, fragmentos de uma vida que agora ficaria para trás.

Com o dinheiro arrecadado, Gianluca caminhou até a agência de emigração mais próxima, localizada em uma cidade a quilômetros de distância. O trajeto foi longo e exaustivo, mas ele voltou com as passagens para o vapor La Spezia, um dos muitos navios que transportavam multidões de italianos em busca de um novo começo. O nome do navio parecia carregar uma promessa silenciosa de esperança e destino, uma ponte entre dois mundos.

Os dias que antecederam a partida foram marcados por uma mistura de ansiedade e nostalgia. Bianca, enquanto organizava os parcos pertences que levariam consigo, lutava contra a angústia de deixar para trás tudo o que conhecia. As paredes simples de sua casa, o cheiro familiar das oliveiras que cercavam o vilarejo, os vizinhos, que eram a sua família estendida e com quem compartilhavam os momentos de alegria e dor — tudo parecia ganhar um peso emocional insuportável. Ao mesmo tempo, o pensamento de um futuro melhor para os dois filhos, Matteo e Sofia, trazia-lhe forças para seguir adiante.

No dia da partida, o pequeno grupo seguiu em silêncio pela estrada de terra que levava à estação ferroviária. Matteo, de cinco anos, carregava uma trouxa contendo seus poucos brinquedos de madeira, enquanto Sofia, ainda no colo de Bianca, olhava ao redor com a curiosidade inocente de quem não entendia o significado daquela jornada. Gianluca, com o semblante marcado pela gravidade da responsabilidade, caminhava à frente, como um líder conduzindo sua família em uma travessia que era ao mesmo tempo física e espiritual.

O embarque no La Spezia, no porto de Gênova, foi um espetáculo caótico de despedidas e esperança. As docas fervilhavam de gente — famílias inteiras, carregando baús, sacos de comida e memórias. O navio, com seu casco escuro e chaminés altas, parecia tanto uma promessa de salvação quanto uma ameaça desconhecida. Gianluca segurava firme a mão de Matteo enquanto ajudava Bianca a subir a rampa de embarque. Cada passo parecia um adeus definitivo à velha vida e um salto para o desconhecido.

Ao cruzar o limiar do navio, o casal sentiu o coração dividido. A dor da partida era uma ferida aberta, alimentada pelo último vislumbre para o local onde possivelmente estavam as colinas de San Fiorenzo, agora apenas uma lembrança difusa nas suas mentes. Mas, à medida que o La Spezia começava a se mover, a promessa de um futuro distante — onde Matteo e Sofia pudessem crescer sem as sombras da fome e da miséria — tornou-se a única âncora de esperança a que podiam se agarrar.

O som das ondas contra o casco do navio misturava-se ao murmúrio constante dos passageiros, criando uma melodia de incerteza e expectativa. Gianluca e Bianca, de mãos dadas, mantinham-se juntos no convés, encarando o vasto mar que os separava de seu destino. A América ainda era um mistério, mas naquele momento, era também a única possibilidade de redenção.


A Travessia

A viagem no porão do La Spezia revelou-se uma verdadeira prova de resistência física e emocional. A escuridão era quase palpável, iluminada apenas por algumas lamparinas trêmulas que lançavam sombras distorcidas nas paredes de madeira. O espaço, exíguo e abafado, abrigava centenas de famílias que dividiam o chão frio com ratos e insetos. O ar era saturado pelo cheiro penetrante de sal, suor e comida estragada, uma mistura que parecia grudar na pele e nos pulmões.

Gianluca se esforçava para manter a sanidade e a esperança. Entre os gemidos de crianças doentes e o murmúrio incessante de preces em vários dialetos, ele concentrava-se em um único objetivo: proteger sua família. Matteo e Sofia, seus filhos, encontraram algum consolo nas histórias que ele contava sobre a nova terra. Mesmo que as palavras fossem pronunciadas em um tom baixo e hesitante, elas criavam um mundo de possibilidades para as crianças. Gianluca falava sobre campos verdejantes e uma colheita generosa, enquanto os olhos atentos de Matteo brilhavam com curiosidade, e Sofia, aninhada nos braços de Bianca, parecia momentaneamente tranquila.

Bianca, por sua vez, dedicava-se a preservar a dignidade da família em meio ao caos. Com uma pequena bacia de lata, ela lavava o rosto das crianças sempre que conseguia reservar um pouco de água limpa. Era um gesto simples, mas carregado de significado: um esforço para relembrar que, apesar das circunstâncias degradantes, ainda eram humanos, ainda possuíam um traço de orgulho que o oceano e a miséria não podiam apagar.

As noites no Atlântico, no entanto, eram implacáveis. Tempestades surgiam sem aviso, trazendo ondas que pareciam erguer o navio apenas para lançá-lo com violência contra o vazio do abismo. Dentro do porão, as pessoas agarravam-se umas às outras, tentando se equilibrar enquanto o navio balançava descontroladamente. O som das águas quebrando contra o casco misturava-se aos gritos de medo e às orações desesperadas.

Certa noite, enquanto o La Spezia enfrentava uma tormenta particularmente feroz, Gianluca ergueu os olhos para o teto de madeira, onde a água infiltrava-se em gotas geladas. O som das ondas parecia ecoar por todo o navio, um rugido constante que deixava claro o poder indomável do oceano. Ele sentia o peso da responsabilidade esmagando seus ombros. Naquele momento, porém, era impossível pensar no futuro — cada minuto exigia toda a sua energia apenas para sobreviver.

Os dias seguintes trouxeram uma calmaria inquietante, como se o mar houvesse exaurido sua fúria. Mesmo assim, a tensão no porão não diminuía. A escassez de comida e água tornava as pessoas mais agitadas. Crianças choravam de fome, e os adultos, com olhares vazios, sentavam-se em silêncio, poupando forças. Gianluca começou a se perguntar se a América realmente existia ou se era apenas uma miragem coletiva que mantinha aqueles passageiros de pé.

Então, um dia, a monotonia da paisagem azul foi quebrada. Um grito veio do convés superior, e logo o rumor se espalhou: terra à vista. Gianluca subiu até o convés com Bianca e os filhos. O vento frio do mar golpeava seus rostos, mas eles mal perceberam. No horizonte, uma linha de terra se desenhava contra o céu cinzento. Não era a imagem idílica que Gianluca imaginara, mas, para ele, representava a sobrevivência, a promessa de que aquela jornada absurda e cruel não fora em vão.

No convés, a atmosfera mudou instantaneamente. Homens choravam em silêncio, as lágrimas traçando linhas claras em rostos encardidos pela fuligem e pela salmoura. Mulheres ajoelhavam-se para rezar, algumas beijando as tábuas do chão como se agradecessem ao próprio navio por tê-las trazido até ali. As crianças, com a curiosidade característica da infância, empurravam-se para tentar ver mais da terra que agora parecia tão próxima, mas ainda inalcançável.

Enquanto o La Spezia avançava lentamente em direção à costa, Gianluca sentiu um alívio que mal conseguia expressar. Ele segurou a mão de Bianca, sentindo a pele áspera e fria contra a sua. Não era a vitória que ele imaginara, mas era um começo. A América os esperava — e, com ela, todas as incertezas e promessas que o futuro podia oferecer.

O Novo Mundo

Nova York era uma colisão de mundos, um vórtice onde esperança e desespero coexistiam. Quando Gianluca e sua família desembarcaram em Ellis Island, foram imediatamente envolvidos por uma atmosfera de tensão e expectativa. As longas filas serpentinas eram um mosaico de rostos exaustos e ansiosos, cada um carregando o peso de um passado difícil e os sonhos de um futuro incerto. Funcionários uniformizados, com olhares clínicos e impassíveis, conduziam os imigrantes por uma série de inspeções. Gianluca sentiu o estômago apertar ao perceber que, para os recém-chegados, a América começava não com acolhimento, mas com um escrutínio implacável.

Os exames médicos foram meticulosos e desumanizantes. Homens, mulheres e crianças eram examinados como mercadorias. Matteo, o filho mais velho, foi retido por um médico que desconfiava de sua febre alta. Bianca apertou os braços do menino com força, os olhos fixos no semblante indiferente do examinador. Cada segundo parecia eterno, até que um aceno brusco permitiu que a família avançasse. Gianluca, aliviado, evitou olhar para os outros imigrantes que não tiveram a mesma sorte, conduzidos para longe com destinos incertos.

A travessia para o continente trouxe um misto de alívio e inquietação. Nova York, com suas ruas movimentadas e arranha-céus em construção, era um espetáculo vertiginoso. Mas não havia tempo para admiração. Gianluca soube, quase imediatamente, que as promessas que haviam alimentado sua jornada eram em grande parte ilusórias. A realidade era crua: empregos eram escassos e mal pagos, e as condições de vida, precárias.

Em Pittsburgh, ele encontrou trabalho como operário em uma fábrica de aço, onde o ambiente era brutal. As fornalhas cuspiam um calor insuportável, e a fuligem enegrecia tudo ao redor, inclusive os pulmões dos trabalhadores. Gianluca suportava jornadas extenuantes, seus músculos protestando sob o peso de barras de metal e ferramentas. O suor escorria em rios por seu rosto, misturando-se com a poeira, e o som incessante de martelos e máquinas era ensurdecedor. Não havia espaço para fraqueza; um ritmo constante era exigido, sob o olhar vigilante de supervisores que tratavam os homens como engrenagens descartáveis de uma máquina gigantesca.

Bianca, por sua vez, encontrou trabalho em um pequeno ateliê de costura, onde mãos habilidosas transformavam tecidos ásperos em roupas finas destinadas a uma elite que ela jamais conheceria. O pagamento era uma miséria, e o trabalho, incessante. Ela costurava até os dedos ficarem dormentes, sentindo cada ponto como uma luta contra o tempo e a fome. A comida era racionada com cuidado, e mesmo assim parecia insuficiente. A escassez, que esperavam deixar para trás na Itália, agora os acompanhava no novo continente.

As noites eram momentos de silêncio pesado, em que os dois raramente trocavam palavras. O cansaço físico e emocional era um fardo que os unia e, ao mesmo tempo, os isolava. Gianluca sentia uma ironia amarga ao refletir sobre sua situação: na Itália, haviam sonhado com a América como uma terra de fartura; agora, lutavam para sobreviver em um lugar onde o trabalho os esmagava e a promessa de abundância se mostrava distante.

Aos domingos, o único dia de folga, Gianluca observava Matteo e Sofia brincando em uma viela atrás da pensão em que viviam. As risadas infantis, embora raras, ofereciam um breve consolo. Mas o barulho de um trem passando ao longe, carregando carvão e aço, era um lembrete constante de que, para eles, o sonho americano ainda não passava de um horizonte inalcançável. Bianca, com o olhar perdido, fazia pães improvisados com farinha barata, sua mente dividida entre a lembrança dos campos de San Fiorenzo e a dura realidade da cidade industrial.

A América, percebeu Gianluca, não era o paraíso prometido, mas um campo de batalha. Cada dia era uma luta para preservar a dignidade, manter a esperança e resistir à tentação de desistir. Enquanto ele olhava para as chaminés da fábrica que se estendiam até o céu, cobertas de fuligem, uma determinação silenciosa crescia dentro dele. Se a América os recebera com portas estreitas, ele estava disposto a forçá-las abertas, um esforço de cada vez.

A Virada

Após dois anos de trabalho implacável e sonhos desvanecidos, a monotonia da luta diária foi rompida por um vislumbre de possibilidade. Gianluca cruzou o caminho de Enrico, um homem cuja presença trazia uma energia peculiar em meio à desolação. Enrico era um imigrante italiano como ele, mas suas palavras eram carregadas de algo raro naquele ambiente opressivo: otimismo. Ele falava sobre o Brasil, um lugar que soava quase mítico. Enrico mencionava as colônias italianas no interior, especialmente na Serra Gaúcha, com um fervor que fazia Gianluca se agarrar a cada detalhe.

Os relatos eram vívidos. Enrico descrevia extensões de terra fértil onde os imigrantes cultivavam vinhedos que prosperavam sob um clima generoso, reminiscente das encostas ensolaradas da Itália. Era uma vida difícil, mas cheia de propósito. Ele falava de famílias que haviam começado do zero e, com o tempo, construíram não apenas sustento, mas também comunidades inteiras, onde o idioma, os costumes e a culinária italianos eram preservados como um tesouro compartilhado. Naquele pedaço de terra distante, parecia possível resgatar algo perdido, algo que o próprio Gianluca mal se permitia sonhar: dignidade.

As palavras de Enrico plantaram uma semente no coração de Gianluca. Ele retornou à pensão carregando consigo uma inquietação crescente. Naquela noite, enquanto a fumaça de uma lamparina tremeluzia no pequeno quarto que compartilhavam, o pensamento não o abandonou. Ele revivia a descrição da Serra Gaúcha, as fileiras de vinhas verdejantes contrastando com o azul do céu, como um eco da Itália, mas em um cenário onde o futuro parecia, enfim, tangível.

A decisão de partir novamente não foi imediata. Gianluca ponderou os riscos com cuidado, pois agora carregava não apenas os próprios sonhos, mas também as esperanças de Bianca, Matteo e Sofia. Ele sabia que a jornada para o Brasil seria tão incerta quanto a que os trouxera à América. O oceano, com suas tempestades impiedosas, precisaria ser cruzado mais uma vez. Além disso, havia o custo. Após anos de trabalho árduo, os dólares economizados eram escassos e valiam cada gota de suor derramado nas fábricas de Pittsburgh e nas horas intermináveis no ateliê de Bianca.

Apesar de tudo, a ideia de permanecer nos Estados Unidos, presos a um ciclo exaustivo que pouco recompensava seus esforços, era insuportável. O desgaste físico e emocional não era apenas uma sombra em seus rostos; era uma presença constante que ameaçava apagar qualquer fagulha de esperança. Gianluca sabia que, se continuassem naquele caminho, a chama que os mantinha em movimento poderia se extinguir.

Com os poucos recursos que tinham, começaram a planejar. Gianluca vendeu os modestos móveis da pensão, enquanto Bianca, determinada, economizava até o último centavo no mercado e nas costuras. O processo era lento e doloroso, cada moeda guardada simbolizando um sacrifício que parecia mais pesado por causa do incerto futuro.

Enfim, o dia chegou. As passagens para o Brasil foram compradas, cada bilhete representando não apenas uma nova jornada, mas um novo capítulo. Quando o vapor que os levaria ao sul atracou no porto, Gianluca sentiu um misto de ansiedade e expectativa. Na plataforma, segurando firmemente a mão de Bianca, ele olhou para o navio. Não era apenas um meio de transporte; era a ponte entre o desespero e a esperança.

Embora a América tivesse lhes ensinado lições duras, Gianluca partia com algo mais valioso: a resiliência que apenas a adversidade pode cultivar. Desta vez, ele prometeu a si mesmo, não deixaria a promessa de um novo mundo permanecer apenas no horizonte.

O Recomeço

Em 1884, após semanas de uma travessia extenuante e dias de estrada por terra, Gianluca e sua família chegaram ao Rio Grande do Sul, ao coração das colônias italianas. A paisagem que os recebia era ao mesmo tempo assustadora e inspiradora: uma vasta extensão de mata fechada, densa e quase impenetrável, que parecia guardar segredos antigos. Para os recém-chegados, no entanto, ela representava algo mais tangível — a promessa de uma nova vida, embora o custo fosse o suor e o sangue derramados na tarefa de transformá-la.

A realidade nas colônias revelou-se rapidamente. Gianluca trocou o calor das fornalhas das fábricas americanas pelo trabalho árduo de abrir caminho em uma terra selvagem. Com o machado em mãos, ele desferia golpes na madeira maciça, cada um reverberando como um desafio à natureza que parecia relutante em ceder. Os cortes nas mãos eram inevitáveis, os calos se multiplicavam, e o cansaço nunca o abandonava. Ainda assim, havia algo de diferente naquele esforço. Pela primeira vez em anos, Gianluca sentia que estava construindo algo que realmente lhe pertencia.

Bianca não ficava atrás. Entre a costura incessante e os cuidados com os filhos, agora três — o pequeno Giuseppe nascera durante a viagem —, ela equilibrava as obrigações domésticas e o apoio ao marido. Seus dias começavam antes do amanhecer, com o fogo aceso no fogão à lenha, e terminavam à luz trêmula de uma lamparina, com agulha e linha em mãos. Embora a carga fosse imensa, Bianca encontrava força no sorriso dos filhos e na visão de Gianluca voltando do trabalho, exausto, mas determinado.

A luta diária era compartilhada por todos na colônia. Os vizinhos, igualmente imigrantes, formavam uma rede de apoio e solidariedade, trocando conhecimentos e ajudando uns aos outros nos momentos mais difíceis. A construção de um sentido de comunidade ajudava a aliviar a saudade da Itália, embora esta nunca abandonasse completamente seus corações. Aos poucos, os italianos transformavam a paisagem, substituindo a floresta por campos cultivados e pequenas vinhas que pareciam promessas verdes contra o fundo marrom da terra revolvida.

O primeiro ano foi o mais árduo, mas também o mais transformador. Sob os cuidados atenciosos de Gianluca, as videiras começaram a brotar, frágeis a princípio, mas resistentes como os que as plantavam. Cada pequena folha que despontava era motivo de celebração discreta, um símbolo de que o esforço não era em vão. A paciência tornou-se a maior virtude, pois a terra, embora generosa, exigia tempo para retribuir o trabalho investido nela.

Quando a primeira colheita finalmente chegou, a emoção tomou conta de Gianluca. Ele observava as uvas penduradas nas vinhas com um misto de orgulho e gratidão, como se cada cacho fosse um testemunho das batalhas que havia enfrentado. O processo de transformação das uvas em vinho foi rudimentar, mas carregado de significado. Enquanto esmagava as frutas com cuidado, Gianluca não pôde deixar de se lembrar das vinícolas da Toscana, de sua infância em San Fiorenzo, onde o aroma do mosto fazia parte da memória coletiva.

O momento culminante chegou ao provar o primeiro vinho. Bianca, segurando um copo simples, levou-o aos lábios com hesitação e, ao sentir o sabor, seus olhos brilharam. Aquele vinho, ainda jovem e imperfeito, carregava algo que nenhuma safra americana ou qualquer terra estrangeira poderia oferecer: a essência de casa, o retorno simbólico a uma identidade que haviam temido perder. Aquele sabor era mais do que um prazer — era uma vitória, um sinal de que haviam começado a reconstruir o que a vida lhes roubara.

Embora a estrada à frente continuasse cheia de desafios, Gianluca e Bianca, pela primeira vez em muitos anos, sentiam que estavam no caminho certo. A colônia tornava-se um reflexo de sua resiliência, e a cada safra, a cada passo adiante, eles se aproximavam de um futuro que, finalmente, parecia estar ao seu alcance.

Epílogo

Os Pessina se consolidaram como pilares de uma nova colônia italiana, onde a terra, embora bruta e indomável, oferecia aos seus habitantes uma chance de renascimento. Gianluca, com o tempo, tornou-se uma figura central na comunidade. Sua experiência nas lutas iniciais fez dele uma fonte de sabedoria para outros imigrantes, que chegavam em busca de orientação e coragem. Ele ensinava a arte de preparar o solo, de cuidar das vinhas jovens, de persistir mesmo diante de frustrações inevitáveis. Em suas mãos calejadas, os novatos encontravam confiança, e em seus olhos, a determinação de quem já atravessara os mais difíceis mares.

Bianca, por sua vez, tornou-se o coração pulsante da colônia. Ela liderava as mulheres na criação de uma rede de apoio que transcendia as barreiras linguísticas e culturais. Costuravam juntas, trocavam receitas, cuidavam das crianças umas das outras, transformando as dificuldades diárias em laços que fortaleciam a comunidade. O pequeno Giuseppe, junto com Matteo e Sofia, cresceu testemunhando o esforço incansável dos pais, absorvendo, quase por osmose, a noção de que o trabalho e a solidariedade eram os pilares de qualquer conquista.

Os anos passaram, e o progresso chegou à colônia. A mata cedeu espaço a vilarejos ordenados, e os vinhedos tornaram-se um marco de prosperidade. As festas comunitárias celebravam não apenas as colheitas, mas a vitória coletiva sobre as adversidades. Gianluca e Bianca viam, com orgulho silencioso, as crianças que antes corriam entre as vinhas se tornarem adultos responsáveis, integrando-se ao ciclo de crescimento da comunidade. As sementes que haviam plantado, tanto no solo quanto no espírito daqueles que os rodeavam, floresceram de formas que eles jamais poderiam imaginar.

Mesmo na velhice, Gianluca nunca abandonou o campo. Embora o corpo já não tivesse a mesma força de outrora, ele se recusava a ser apenas um espectador da vida. Caminhava entre as fileiras de videiras, inspecionando os frutos, orientando com palavras precisas aqueles que agora assumiam as rédeas do trabalho. Ele compreendia que seu legado ia além do vinho ou da terra cultivada; estava na perseverança que havia inspirado, na coragem que ajudara a cultivar.

Bianca, ao seu lado, envelheceu com a mesma graça resiliente que sempre a caracterizara. Mesmo enquanto os cabelos embranqueciam e os passos se tornavam mais lentos, sua presença irradiava a força tranquila de quem nunca se curvou diante das tempestades da vida. As noites eram frequentemente passadas ao redor da lareira, com os netos atentos às histórias que os avós contavam, fascinados pelos relatos de travessias oceânicas, batalhas contra a floresta e a construção de uma nova vida.

Quando o ciclo da vida se completou para Gianluca, ele partiu em paz, cercado por sua família, sua obra mais grandiosa. Os campos que uma vez foram selva agora prosperavam, e as gerações que o sucederam mantinham viva a chama do sonho que ele e Bianca haviam perseguido. As videiras, com suas raízes profundas e galhos robustos, tornaram-se o símbolo duradouro de uma jornada de sacrifício e redenção. A colônia que os Pessina ajudaram a construir tornou-se uma comunidade vibrante, marcada pelo espírito de união e pela força de seus pioneiros.

Nos anos que se seguiram, os descendentes de Gianluca mantiveram viva sua memória. Os vinhos produzidos na terra que ele cultivou eram mais do que uma bebida; eram uma celebração de uma história de coragem, de escolhas difíceis e de sonhos realizados. A cada taça, as pessoas brindavam não apenas à colheita, mas à prova viva de que, mesmo nos momentos mais sombrios, há sempre uma luz para aqueles que ousam acreditar.


Nota do Autor


Embora os personagens e suas histórias sejam frutos da imaginação criativa deste autor, o enredo de Os Sonhos de Gianluca está profundamente enraizado em eventos e contextos históricos rigorosamente pesquisados. A trajetória da imigração italiana no século XIX, as condições duras da vida rural na Itália, a árdua travessia pelo Atlântico, e os desafios enfrentados nas colônias do sul do Brasil refletem a realidade vivida por milhares de famílias.

Este romance busca dar voz e forma à experiência humana por trás dos registros históricos, transformando dados e fatos em uma narrativa vívida que pretende honrar a coragem, a esperança e a resiliência daqueles que ousaram buscar um futuro melhor. Através de uma pesquisa cuidadosa em arquivos, relatos e documentos da época, o autor procurou recriar o ambiente, o espírito e os dilemas que marcaram a vida dos imigrantes, conferindo à ficção uma base sólida na verdade histórica.

Assim, Os Sonhos de Gianluca convida o leitor a mergulhar não apenas em uma saga familiar, mas também no amplo cenário das transformações sociais e humanas que moldaram uma era, preservando a memória daqueles que, mesmo diante das adversidades, nunca desistiram de sonhar.

Dr. Piazzetta