quarta-feira, 20 de agosto de 2025

O Último Adeus a Feltre

 


O Último Adeus a Feltre

Memórias de um emigrante entre a partida e o silêncio

Feltre, no início do século XX, era uma pequena joia de pedra incrustada no coração agreste dos Dolomitas italianos. Cercada por montanhas que pareciam erguer muralhas contra o mundo exterior, a cidade vivia sob um ritmo próprio. As ruas estreitas, calçadas com pedras irregulares, guardavam um silêncio antigo, interrompido apenas pelo som grave das badaladas da torre da igreja, que marcavam as horas como se fossem capítulos de uma história imutável.

Aldo Bernardi nasceu e cresceu nesse cenário, filho de um lenhador. Desde cedo aprendeu a acompanhar o pai nos bosques que se estendiam como muralhas verdes ao redor da cidade. Os invernos eram longos e duros, cobrindo tudo de um branco silencioso; as manhãs de trabalho traziam o hálito gelado da montanha e o cheiro da madeira recém-cortada. A vida era dura, mas sólida. As casas de pedra, as colinas suaves, as feiras silenciosas onde mais se trocavam notícias que moedas — tudo construía um laço profundo com aquela terra.

Mas a juventude, ao contrário das montanhas, não é imóvel. Aldo cresceu num tempo em que o mundo parecia mudar rápido demais, mesmo para um lugar tão isolado. A Primeira Guerra Mundial levou rapazes conhecidos, vizinhos, primos — alguns não voltaram; outros regressaram mutilados, com um silêncio que pesava mais que qualquer relato. As fachadas da cidade carregavam marcas de estilhaços, mas eram as pessoas que traziam as cicatrizes mais fundas.

Quando a paz chegou, não trouxe alívio. Trouxe um silêncio inquietante. A guerra havia terminado, mas a pobreza permanecia. As pequenas indústrias, que haviam florescido para alimentar o conflito, fecharam suas portas. Os campos já não rendiam o suficiente para sustentar todas as famílias. Jovens circulavam sem destino, oferecendo braços fortes a quem já não tinha como pagá-los.

Foi nesse cenário que Aldo, ainda muito jovem, deixou Feltre pela primeira vez. Atravessou os Alpes rumo à França, onde trabalhou nas minas do Jura. Passava dias inteiros embaixo da terra, respirando poeira de rocha e convivendo com o silêncio sufocante das galerias. Três anos depois, regressou à sua cidade. Voltava com as mãos mais calejadas, os ombros mais curvados e um bolso quase vazio. A França dera sustento, mas não futuro.

1924: A hora da decisão

Naqueles anos, a Itália vivia sob as mudanças do regime de Mussolini, que consolidava o poder em Roma. O discurso fascista chegava às vilas mais distantes, prometendo ordem e unidade, mas também trazendo incerteza e tensão. Para muitos, a esperança passou a se depositar em lugares distantes — na América, onde cartas de parentes e conhecidos falavam de terras férteis, trabalho abundante e, talvez, um futuro digno.

Aldo começou a ouvir cada vez mais a palavra “Brasil” nos encontros de taberna e nas conversas baixas nas feiras. Em cozinhas modestas, enquanto o pão era repartido com parcimônia, famílias falavam de navios, portos, passagens e oportunidades. Aos poucos, o inevitável se impôs: o futuro não estava mais em Feltre.

A despedida

Na madrugada de 15 de julho de 1924, Feltre acordou antes do sol. Não havia festa na despedida, apenas um silêncio pesado. A mãe de Aldo mantinha os dedos entrelaçados, como se suas orações pudessem deter o inevitável. O pai, firme, olhava o filho sem palavras. A carroça de aluguel aguardava na praça para o levar até a estação de trem. Ao comando do cocheiro, as rodas começaram a girar, e Aldo permaneceu mudo, vendo as ruas se afastarem lentamente. Só depois de algumas curvas ousou virar-se para lançar o último olhar — o adeus às montanhas de sua infância.

Longarone foi apenas passagem: documentos, esperas, burocracia. Em Veneza, Aldo obteve o passaporte. Comprou pão, salame e vinho, alimento e memória comprimidos para a viagem até o porto de Gênova.

Gênova o recebeu com cheiro de sal e o barulho incessante do porto. Agentes de imigração o conduziram a um hotel barato, onde depositou bagagem e se misturou a centenas de outros viajantes. Em uma caminhada pelo cais, viu pela primeira vez o colosso metálico: o vapor Giulio Cesare, um gigante pronto para cortar o Atlântico.

Na manhã de 30 de julho, o porto fervilhava. Antes de embarcar, Aldo comprou limões — diziam que ajudavam contra o enjoo — e escreveu dois cartões para os familiares em Feltre. Ao som de três apitos longos, o navio começou a afastar-se lentamente. Em terra, centenas acenavam. Era um adeus carregado de dor e orgulho. O mar se abriu à frente como promessa e abismo.

Travessia e chegada ao Brasil

Durante a travessia, o oceano tornou-se um espaço suspenso no tempo. No porão da terceira classe, os beliches eram estreitos e o ar rarefeito. A comida era pouca e sem sabor. No convés, quando o clima ou o capitão permitia, Aldo olhava o horizonte e imaginava a nova vida. As noites eram povoadas pelo som das ondas e pela saudade de Feltre.

Ao desembarcar no Porto de Santos, o calor do Brasil o envolveu como um muro invisível. A língua era outra, os sons diferentes, o cheiro carregado de café, frutas e maresia. Dali, seguiu de trem para o Rio Grande do Sul, acompanhando um grupo de vênetos que já tinham parentes estabelecidos desde as grandes levas de emigrantes do século anterior.

Nova vida no Sul

O destino final foi a região de Bento Gonçalves, uma terra de colinas verdes que, à distância, lembrava vagamente as encostas do Vêneto. Aldo começou trabalhando como empregado em vinhedos de outros imigrantes. A poda, o plantio, a vindima — tudo era trabalho duro, mas não havia patrão estrangeiro. Aqui, o suor poderia, um dia, se transformar em terra própria.

Com o tempo, juntou economias e comprou um pequeno lote. Casou-se com Lucia Morette, filha de imigrantes estabelecidos muitos anos antes. A casa era simples, feita de madeira e pedra, mas abrigava o som de crianças e o aroma de polenta. Os filhos cresceram entre as cantinas e os parreirais, aprendendo a língua dos pais e a nova língua da terra.

Aldo ajudou na construção de uma capela, participou de mutirões para abrir estradas e plantou parreiras que, décadas depois, dariam frutos para seus netos.

E, ainda que o Atlântico o separasse de Feltre, em cada parreira carregada de uvas, em cada laje de pedra que sustentava sua casa, havia o eco distante da cidade entre as montanhas. Um eco que não se apagaria nunca.

Epílogo

O tempo, com seu ritmo silencioso, seguiu desenrolando a vida sobre as colinas da Serra Gaúcha. Aldo Bernardi partiu em um inverno calmo, quando as videiras estavam despidas e o vento trazia o mesmo frio que ele conhecera nas montanhas de Feltre.

No dia do enterro, o cortejo percorreu a pequena estrada ladeada por parreiras já antigas, plantadas por suas mãos. Filhos, netos e vizinhos carregavam não apenas o caixão, mas a memória viva de um homem que, um dia, deixou tudo para cruzar o oceano.

Seu túmulo, simples, de pedra lavrada, tinha o nome gravado em letras firmes, e ao lado um pequeno ramo de uma parreira, trazida de Feltre anos antes por um conterrâneo. Era como se as duas terras finalmente repousassem juntas, unidas para sempre.

No silêncio daquela tarde, a Serra parecia suspensa, como se os vales, as parreiras e o céu carregassem a certeza de que o sangue e o suor dos que partiram jamais seriam esquecidos.

E, nas gerações seguintes, cada vindima, cada copo erguido e cada canção entoada em dialeto vêneto, agora chamado de talian, seriam, sem saber, um brinde ao homem que ousou atravessar o mar.

Nota do Autor

A história de Aldo Bernardi foi inspirada em um relato real, de um emigrante da província de Belluno, que deixou a Itália em 1924, após breve passagem pela França anos antes, para tentar a vida no Brasil.

Sua narrativa, preservada, revela não apenas o itinerário físico — de Feltre a Longarone, de Veneza a Gênova, do vapor Giulio Cesare até as terras do Rio Grande do Sul —, mas, sobretudo, a paisagem humana de um tempo: a despedida da pátria, a travessia incerta, a adaptação em uma nova terra. Nesta versão ficcional, os nomes foram alterados, mas a essência foi mantida. Busquei preservar o tom emocional e a atmosfera histórica, dando voz ao silêncio que tantas vezes se impôs aos emigrantes.

Dedico esta obra a todos os descendentes que, espalhados pelo Brasil, ainda carregam no sotaque, nos costumes e na memória o eco distante das colinas do Vêneto.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta



Radise e Resiliensa: La Zornada de le Done Italiane ´nte l'Emigrassion verso la Frància

 

Radise e Resiliensa

La Zornada de le Done Italiane ´nte l'Emigrassion verso la Frància


Par so visinansa geogràfica con l'Itàlia, la Frància la se ga presto fata un dei destin prinssipai par quei emigranti italiani che sercava mèio condission de vita. Sta via somente volea dir lassà la casa e la famèia par catar nove oportunità.

Ben che la participassion feminile in sto processo migratòrio sia sta importante, la ze sta en gran parte ignorà da la narativa ofissial de l'emigrassion italiana, che tradisionalmente se consentra su le esperiènse masculine. Tanti studi se focalisa su la traietòria de l'òmini che i ze partì soli, lassando in secondo piano el contributo de le fèmine. Ma ze fondamental ricognosser che le done ga svolto roli importantìssimi, sia come compagne dei marì che i ze se stabilì al'estero, sia come gestori de le responsabilità domèstiche e economiche mentre che i marì i zera lontan.

Durante el perìodo de l'emigrassion, le done italiane le ga fato rolo fondamentali, come ocuparse dei fiòi, dei veci e dei interessi econòmici de la famèia. Alcune, però, le ga deciso anca de partir, motivà da bisogni che ndava dal mantegner le so famèie fin al desidèrio de conquistar indipendensa económica. In Frància, ste done le ga dimostrà un'incredìbile capassità de adaptarse, laorando in campi diversi, dai servissi domèstici e atività stagionali in agricoltura fin ai posti int l'indùstria tèssile. El so rolo el ze sta fondamental par el benesser e la stabilità de le so famèie.

El contributo de le done italiane a la formassion de le comunità italo-francesi le ze stà marcante e duraturo. Studi stòrici e anàlisi documentai rivela l'impato de ste done su l'arichimento cultural e su la costrussion de sossietà pì inclusiva. In pì, le reti de suporto sossiai e fameiar le ga svolto un rolo fondamental int sto contesto, aiutando le migranti a trovar laoro e mantegner i lassi con le so origini.

Verso la fin del XIX sècolo e lo scomìnsio del XX, el senàrio económico in Frància el ga favorì la presensa de le done italiane, spessialmente in funssion che impieniva i buchi ´ntel mercato del laoro. Mentre l'Itàlia rural sofriva de crisi agràrie e mancansa de oportunità, la Francia gavea bisogno de manodopera, sopratuto dopo la Prima Guera Mondial, quando la scarsità de laoratori òmini la ze diventà un problema serìssimo.

Un altro aspeto relevante el ze l'emigrassion feminile indipendente. Ben che tante done emigrava con le so famèie, ghe zera anca quele che partiva sole par trovar laoro. Ste done, de sòito, laorava in servisi domèstici o indùstrie urbane, afrontando condission de laoro difìssili e vivendo in alogi speso precari. Ciononostante, la so presensa sfidava i standard tradisionai de génere, dimostrando coraio e resiliensa.

Durante la Seconda Guera Mondial, le done ìtalo-francesi le ga svolto un rolo significativo ´ntela resistensa contra l'ocupassion nazista. Lore le laorava come messagiere, colaboratrisi in reti clandestine e fornitrisi de rifùgio par perseguiti, riafermando el so rolo come agenti ative in momenti stòrici crussiai.

Le esperiense de ste done ga anca contribuìto a cambiar le percepsion sul rolo feminile ´ntela sossietà. Con le so nove responsabilità fora de casa, le ga influensà, anca se in maniera indireta, el pensiero sui diriti de le done e la parità de génere.

L'emigrassion feminile italiana verso la Frància la ze un capìtolo essensiae de la stòria de l'emigrassion europea. Lei sotolinea el rolo vitale de ste done ´ntela formassion de comunità italiane in Frància e ´ntela costrussion de una stòria pì inclusiva e plural. El so lassito mèrita de èsser ampiamente riconosù e studià, par esto un testimónio potente de la so contribussion a la diversità culturae e a le trasformassion sociai a scala global.

Nota de l´Autor

Sta òpera la nasse da un desidèrio sincero de dar vose a chi che, par tropi ani, ze restà in silénsio ´ntela stòria granda de l’emigrassion italiana. Le done, che ga fato de la resiliensa e del sacrifìssio la so bandera, no le ga scrito memòrie lunghe né lassà archivi riempi de documenti, ma el so passo discreto el ga segnà con profondità la vita de intere comunità.

´Ntei archivi e ´ntei studi che mi go consultà, le so presense apare sempre in secondo piano, come figure de contorno. Ma le cronache de famèia, le testimonianze orài e i ricordi tramandà ne conta un’altra verità: che sensa le done, le comunità italiane in Frància no la saria mai vegnù a esistar.

Le ga fato da ponte tra do mondi: cùstodi de le radise e, al stesso tempo, pioniere de nove vite. Lore le ga soportà la lontanansa dai marì, le ga portà avanti laoro e famèia, le ga sfidà prejudissi e povertà, e tante volte le ga trovà la forsa de partir sole. In guerra, le ga dimostrà un coraio silensioso ma decisivo, e ´ntela vita de ogni zorno, le ga insegnà che la resiliensa no ze altro che la capassità de continuar a viver, anche quando tuto intorno cámbia.

Scriver sta stòria ze stà, par mi, un ato de riconossensa. No se trata de colmar un vodo stòrico, ma de onorar un’eredità che, anca se invisìbile ai libri ofissiai, vive ancora ´ntel DNA culturale de tanti dissendenti. Che ste pàgine possa portar un poco de luse su le so vissende, e far capir che la stòria de l’emigrassion italiana no la se pol contar sensa le done.

Dr. Piazzetta