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sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Os Sonhos de Gianluca


 

Os Sonhos de Gianluca


Na Itália de 1887, Gianluca Pessina, um jovem agricultor em uma quase esquecida localidade de San Fiorenzo, na Toscana, vivia sob o peso insuportável da fome e da miséria. A terra que outrora pulsava vida, colorida com as tonalidades vibrantes de vinhedos e olivais, havia sido transformada por anos de estiagem implacável. O solo, antes fértil e generoso, agora não passava de um manto de pó estéril, rachado sob o sol abrasador. As colheitas, que em tempos passados garantiam sustento e alguma dignidade, tornaram-se um simulacro miserável de subsistência, mal permitindo à sua família enfrentar os dias.

A modesta propriedade dos Pessina, com seus campos ressequidos e muros de pedra gastas pelo tempo, recobertos por musgos espessos que delineavam os contornos das terras, erguia-se como um silencioso testemunho da decadência, um relicário da luta constante entre a esperança e a ruína. Gianluca percorria os campos diariamente, os olhos fixos no horizonte como se o próprio ato de encarar a vastidão pudesse trazer uma solução mágica para os problemas que os cercavam. Mas os dias se sucediam sem trégua, e o vazio em seus bolsos começava a refletir o vazio crescente no espírito.

Era nesse cenário que os rumores de uma terra distante, a América, ecoavam pelas ruas estreitas de San Fiorenzo. Sussurros escapavam das tabernas e dos mercados, carregados de uma promessa quase sobrenatural. Falavam de um continente onde os campos eram vastos e a terra tão fértil que o esforço humano era recompensado com fartura. Relatavam histórias de camponeses como ele, que deixaram para trás os grilhões da pobreza para se tornarem donos de suas próprias terras, senhores de um destino que parecia inalcançável em solo italiano.

Essas histórias, ora exaltadas com fervor, ora recebidas com ceticismo, chegavam a Gianluca como ventos inesperados, alternando entre a esperança e a dúvida. Ele não sabia ao certo se deveria confiar nessas promessas. Elas soavam como miragens que surgem no deserto, oferecendo um refúgio ilusório. Contudo, havia algo nelas que tocava um fio profundo em seu coração. Era uma esperança que não podia ser ignorada, uma força que se agarrava à alma mesmo quando a mente tentava resistir. Gianluca não sabia se a América era real, se era de fato um Éden ou apenas um sonho coletivo de um povo exausto. Mas a ideia de que poderia haver algo além da miséria cotidiana era poderosa demais para ser sufocada.

Em meio ao pó e à desolação, Gianluca sentia que a esperança era a única coisa que o mantinha em pé. Ela não alimentava seu corpo, mas sustentava sua alma.

Numa manhã de outono, envolta por uma neblina que pairava sobre as colinas de San Fiorenzo, Gianluca tomou a decisão irrevogável que alteraria o curso da história de sua família. Ao lado da esposa, Bianca, ele anunciou que a América não seria apenas um sonho distante, mas um destino concreto. Era uma escolha tanto de coragem quanto de desespero, movida pela necessidade de escapar de uma terra que já não lhes oferecia mais do que privações.

Com determinação silenciosa, Gianluca começou a vender os poucos bens que possuíam. A velha carroça, com seus eixos desgastados e tábuas rangentes, encontrou um comprador na vila vizinha, enquanto as duas galinhas, magras mas ainda valiosas, foram trocadas por algumas moedas e um saco de farinha para sustentar a família até a partida. Cada transação era acompanhada por um misto de alívio e melancolia. Esses objetos, por mais modestos que fossem, representavam anos de esforço e sacrifício, fragmentos de uma vida que agora ficaria para trás.

Com o dinheiro arrecadado, Gianluca caminhou até a agência de emigração mais próxima, localizada em uma cidade a quilômetros de distância. O trajeto foi longo e exaustivo, mas ele voltou com as passagens para o vapor La Spezia, um dos muitos navios que transportavam multidões de italianos em busca de um novo começo. O nome do navio parecia carregar uma promessa silenciosa de esperança e destino, uma ponte entre dois mundos.

Os dias que antecederam a partida foram marcados por uma mistura de ansiedade e nostalgia. Bianca, enquanto organizava os parcos pertences que levariam consigo, lutava contra a angústia de deixar para trás tudo o que conhecia. As paredes simples de sua casa, o cheiro familiar das oliveiras que cercavam o vilarejo, os vizinhos, que eram a sua família estendida e com quem compartilhavam os momentos de alegria e dor — tudo parecia ganhar um peso emocional insuportável. Ao mesmo tempo, o pensamento de um futuro melhor para os dois filhos, Matteo e Sofia, trazia-lhe forças para seguir adiante.

No dia da partida, o pequeno grupo seguiu em silêncio pela estrada de terra que levava à estação ferroviária. Matteo, de cinco anos, carregava uma trouxa contendo seus poucos brinquedos de madeira, enquanto Sofia, ainda no colo de Bianca, olhava ao redor com a curiosidade inocente de quem não entendia o significado daquela jornada. Gianluca, com o semblante marcado pela gravidade da responsabilidade, caminhava à frente, como um líder conduzindo sua família em uma travessia que era ao mesmo tempo física e espiritual.

O embarque no La Spezia, no porto de Gênova, foi um espetáculo caótico de despedidas e esperança. As docas fervilhavam de gente — famílias inteiras, carregando baús, sacos de comida e memórias. O navio, com seu casco escuro e chaminés altas, parecia tanto uma promessa de salvação quanto uma ameaça desconhecida. Gianluca segurava firme a mão de Matteo enquanto ajudava Bianca a subir a rampa de embarque. Cada passo parecia um adeus definitivo à velha vida e um salto para o desconhecido.

Ao cruzar o limiar do navio, o casal sentiu o coração dividido. A dor da partida era uma ferida aberta, alimentada pelo último vislumbre para o local onde possivelmente estavam as colinas de San Fiorenzo, agora apenas uma lembrança difusa nas suas mentes. Mas, à medida que o La Spezia começava a se mover, a promessa de um futuro distante — onde Matteo e Sofia pudessem crescer sem as sombras da fome e da miséria — tornou-se a única âncora de esperança a que podiam se agarrar.

O som das ondas contra o casco do navio misturava-se ao murmúrio constante dos passageiros, criando uma melodia de incerteza e expectativa. Gianluca e Bianca, de mãos dadas, mantinham-se juntos no convés, encarando o vasto mar que os separava de seu destino. A América ainda era um mistério, mas naquele momento, era também a única possibilidade de redenção.


A Travessia

A viagem no porão do La Spezia revelou-se uma verdadeira prova de resistência física e emocional. A escuridão era quase palpável, iluminada apenas por algumas lamparinas trêmulas que lançavam sombras distorcidas nas paredes de madeira. O espaço, exíguo e abafado, abrigava centenas de famílias que dividiam o chão frio com ratos e insetos. O ar era saturado pelo cheiro penetrante de sal, suor e comida estragada, uma mistura que parecia grudar na pele e nos pulmões.

Gianluca se esforçava para manter a sanidade e a esperança. Entre os gemidos de crianças doentes e o murmúrio incessante de preces em vários dialetos, ele concentrava-se em um único objetivo: proteger sua família. Matteo e Sofia, seus filhos, encontraram algum consolo nas histórias que ele contava sobre a nova terra. Mesmo que as palavras fossem pronunciadas em um tom baixo e hesitante, elas criavam um mundo de possibilidades para as crianças. Gianluca falava sobre campos verdejantes e uma colheita generosa, enquanto os olhos atentos de Matteo brilhavam com curiosidade, e Sofia, aninhada nos braços de Bianca, parecia momentaneamente tranquila.

Bianca, por sua vez, dedicava-se a preservar a dignidade da família em meio ao caos. Com uma pequena bacia de lata, ela lavava o rosto das crianças sempre que conseguia reservar um pouco de água limpa. Era um gesto simples, mas carregado de significado: um esforço para relembrar que, apesar das circunstâncias degradantes, ainda eram humanos, ainda possuíam um traço de orgulho que o oceano e a miséria não podiam apagar.

As noites no Atlântico, no entanto, eram implacáveis. Tempestades surgiam sem aviso, trazendo ondas que pareciam erguer o navio apenas para lançá-lo com violência contra o vazio do abismo. Dentro do porão, as pessoas agarravam-se umas às outras, tentando se equilibrar enquanto o navio balançava descontroladamente. O som das águas quebrando contra o casco misturava-se aos gritos de medo e às orações desesperadas.

Certa noite, enquanto o La Spezia enfrentava uma tormenta particularmente feroz, Gianluca ergueu os olhos para o teto de madeira, onde a água infiltrava-se em gotas geladas. O som das ondas parecia ecoar por todo o navio, um rugido constante que deixava claro o poder indomável do oceano. Ele sentia o peso da responsabilidade esmagando seus ombros. Naquele momento, porém, era impossível pensar no futuro — cada minuto exigia toda a sua energia apenas para sobreviver.

Os dias seguintes trouxeram uma calmaria inquietante, como se o mar houvesse exaurido sua fúria. Mesmo assim, a tensão no porão não diminuía. A escassez de comida e água tornava as pessoas mais agitadas. Crianças choravam de fome, e os adultos, com olhares vazios, sentavam-se em silêncio, poupando forças. Gianluca começou a se perguntar se a América realmente existia ou se era apenas uma miragem coletiva que mantinha aqueles passageiros de pé.

Então, um dia, a monotonia da paisagem azul foi quebrada. Um grito veio do convés superior, e logo o rumor se espalhou: terra à vista. Gianluca subiu até o convés com Bianca e os filhos. O vento frio do mar golpeava seus rostos, mas eles mal perceberam. No horizonte, uma linha de terra se desenhava contra o céu cinzento. Não era a imagem idílica que Gianluca imaginara, mas, para ele, representava a sobrevivência, a promessa de que aquela jornada absurda e cruel não fora em vão.

No convés, a atmosfera mudou instantaneamente. Homens choravam em silêncio, as lágrimas traçando linhas claras em rostos encardidos pela fuligem e pela salmoura. Mulheres ajoelhavam-se para rezar, algumas beijando as tábuas do chão como se agradecessem ao próprio navio por tê-las trazido até ali. As crianças, com a curiosidade característica da infância, empurravam-se para tentar ver mais da terra que agora parecia tão próxima, mas ainda inalcançável.

Enquanto o La Spezia avançava lentamente em direção à costa, Gianluca sentiu um alívio que mal conseguia expressar. Ele segurou a mão de Bianca, sentindo a pele áspera e fria contra a sua. Não era a vitória que ele imaginara, mas era um começo. A América os esperava — e, com ela, todas as incertezas e promessas que o futuro podia oferecer.

O Novo Mundo

Nova York era uma colisão de mundos, um vórtice onde esperança e desespero coexistiam. Quando Gianluca e sua família desembarcaram em Ellis Island, foram imediatamente envolvidos por uma atmosfera de tensão e expectativa. As longas filas serpentinas eram um mosaico de rostos exaustos e ansiosos, cada um carregando o peso de um passado difícil e os sonhos de um futuro incerto. Funcionários uniformizados, com olhares clínicos e impassíveis, conduziam os imigrantes por uma série de inspeções. Gianluca sentiu o estômago apertar ao perceber que, para os recém-chegados, a América começava não com acolhimento, mas com um escrutínio implacável.

Os exames médicos foram meticulosos e desumanizantes. Homens, mulheres e crianças eram examinados como mercadorias. Matteo, o filho mais velho, foi retido por um médico que desconfiava de sua febre alta. Bianca apertou os braços do menino com força, os olhos fixos no semblante indiferente do examinador. Cada segundo parecia eterno, até que um aceno brusco permitiu que a família avançasse. Gianluca, aliviado, evitou olhar para os outros imigrantes que não tiveram a mesma sorte, conduzidos para longe com destinos incertos.

A travessia para o continente trouxe um misto de alívio e inquietação. Nova York, com suas ruas movimentadas e arranha-céus em construção, era um espetáculo vertiginoso. Mas não havia tempo para admiração. Gianluca soube, quase imediatamente, que as promessas que haviam alimentado sua jornada eram em grande parte ilusórias. A realidade era crua: empregos eram escassos e mal pagos, e as condições de vida, precárias.

Em Pittsburgh, ele encontrou trabalho como operário em uma fábrica de aço, onde o ambiente era brutal. As fornalhas cuspiam um calor insuportável, e a fuligem enegrecia tudo ao redor, inclusive os pulmões dos trabalhadores. Gianluca suportava jornadas extenuantes, seus músculos protestando sob o peso de barras de metal e ferramentas. O suor escorria em rios por seu rosto, misturando-se com a poeira, e o som incessante de martelos e máquinas era ensurdecedor. Não havia espaço para fraqueza; um ritmo constante era exigido, sob o olhar vigilante de supervisores que tratavam os homens como engrenagens descartáveis de uma máquina gigantesca.

Bianca, por sua vez, encontrou trabalho em um pequeno ateliê de costura, onde mãos habilidosas transformavam tecidos ásperos em roupas finas destinadas a uma elite que ela jamais conheceria. O pagamento era uma miséria, e o trabalho, incessante. Ela costurava até os dedos ficarem dormentes, sentindo cada ponto como uma luta contra o tempo e a fome. A comida era racionada com cuidado, e mesmo assim parecia insuficiente. A escassez, que esperavam deixar para trás na Itália, agora os acompanhava no novo continente.

As noites eram momentos de silêncio pesado, em que os dois raramente trocavam palavras. O cansaço físico e emocional era um fardo que os unia e, ao mesmo tempo, os isolava. Gianluca sentia uma ironia amarga ao refletir sobre sua situação: na Itália, haviam sonhado com a América como uma terra de fartura; agora, lutavam para sobreviver em um lugar onde o trabalho os esmagava e a promessa de abundância se mostrava distante.

Aos domingos, o único dia de folga, Gianluca observava Matteo e Sofia brincando em uma viela atrás da pensão em que viviam. As risadas infantis, embora raras, ofereciam um breve consolo. Mas o barulho de um trem passando ao longe, carregando carvão e aço, era um lembrete constante de que, para eles, o sonho americano ainda não passava de um horizonte inalcançável. Bianca, com o olhar perdido, fazia pães improvisados com farinha barata, sua mente dividida entre a lembrança dos campos de San Fiorenzo e a dura realidade da cidade industrial.

A América, percebeu Gianluca, não era o paraíso prometido, mas um campo de batalha. Cada dia era uma luta para preservar a dignidade, manter a esperança e resistir à tentação de desistir. Enquanto ele olhava para as chaminés da fábrica que se estendiam até o céu, cobertas de fuligem, uma determinação silenciosa crescia dentro dele. Se a América os recebera com portas estreitas, ele estava disposto a forçá-las abertas, um esforço de cada vez.

A Virada

Após dois anos de trabalho implacável e sonhos desvanecidos, a monotonia da luta diária foi rompida por um vislumbre de possibilidade. Gianluca cruzou o caminho de Enrico, um homem cuja presença trazia uma energia peculiar em meio à desolação. Enrico era um imigrante italiano como ele, mas suas palavras eram carregadas de algo raro naquele ambiente opressivo: otimismo. Ele falava sobre o Brasil, um lugar que soava quase mítico. Enrico mencionava as colônias italianas no interior, especialmente na Serra Gaúcha, com um fervor que fazia Gianluca se agarrar a cada detalhe.

Os relatos eram vívidos. Enrico descrevia extensões de terra fértil onde os imigrantes cultivavam vinhedos que prosperavam sob um clima generoso, reminiscente das encostas ensolaradas da Itália. Era uma vida difícil, mas cheia de propósito. Ele falava de famílias que haviam começado do zero e, com o tempo, construíram não apenas sustento, mas também comunidades inteiras, onde o idioma, os costumes e a culinária italianos eram preservados como um tesouro compartilhado. Naquele pedaço de terra distante, parecia possível resgatar algo perdido, algo que o próprio Gianluca mal se permitia sonhar: dignidade.

As palavras de Enrico plantaram uma semente no coração de Gianluca. Ele retornou à pensão carregando consigo uma inquietação crescente. Naquela noite, enquanto a fumaça de uma lamparina tremeluzia no pequeno quarto que compartilhavam, o pensamento não o abandonou. Ele revivia a descrição da Serra Gaúcha, as fileiras de vinhas verdejantes contrastando com o azul do céu, como um eco da Itália, mas em um cenário onde o futuro parecia, enfim, tangível.

A decisão de partir novamente não foi imediata. Gianluca ponderou os riscos com cuidado, pois agora carregava não apenas os próprios sonhos, mas também as esperanças de Bianca, Matteo e Sofia. Ele sabia que a jornada para o Brasil seria tão incerta quanto a que os trouxera à América. O oceano, com suas tempestades impiedosas, precisaria ser cruzado mais uma vez. Além disso, havia o custo. Após anos de trabalho árduo, os dólares economizados eram escassos e valiam cada gota de suor derramado nas fábricas de Pittsburgh e nas horas intermináveis no ateliê de Bianca.

Apesar de tudo, a ideia de permanecer nos Estados Unidos, presos a um ciclo exaustivo que pouco recompensava seus esforços, era insuportável. O desgaste físico e emocional não era apenas uma sombra em seus rostos; era uma presença constante que ameaçava apagar qualquer fagulha de esperança. Gianluca sabia que, se continuassem naquele caminho, a chama que os mantinha em movimento poderia se extinguir.

Com os poucos recursos que tinham, começaram a planejar. Gianluca vendeu os modestos móveis da pensão, enquanto Bianca, determinada, economizava até o último centavo no mercado e nas costuras. O processo era lento e doloroso, cada moeda guardada simbolizando um sacrifício que parecia mais pesado por causa do incerto futuro.

Enfim, o dia chegou. As passagens para o Brasil foram compradas, cada bilhete representando não apenas uma nova jornada, mas um novo capítulo. Quando o vapor que os levaria ao sul atracou no porto, Gianluca sentiu um misto de ansiedade e expectativa. Na plataforma, segurando firmemente a mão de Bianca, ele olhou para o navio. Não era apenas um meio de transporte; era a ponte entre o desespero e a esperança.

Embora a América tivesse lhes ensinado lições duras, Gianluca partia com algo mais valioso: a resiliência que apenas a adversidade pode cultivar. Desta vez, ele prometeu a si mesmo, não deixaria a promessa de um novo mundo permanecer apenas no horizonte.

O Recomeço

Em 1884, após semanas de uma travessia extenuante e dias de estrada por terra, Gianluca e sua família chegaram ao Rio Grande do Sul, ao coração das colônias italianas. A paisagem que os recebia era ao mesmo tempo assustadora e inspiradora: uma vasta extensão de mata fechada, densa e quase impenetrável, que parecia guardar segredos antigos. Para os recém-chegados, no entanto, ela representava algo mais tangível — a promessa de uma nova vida, embora o custo fosse o suor e o sangue derramados na tarefa de transformá-la.

A realidade nas colônias revelou-se rapidamente. Gianluca trocou o calor das fornalhas das fábricas americanas pelo trabalho árduo de abrir caminho em uma terra selvagem. Com o machado em mãos, ele desferia golpes na madeira maciça, cada um reverberando como um desafio à natureza que parecia relutante em ceder. Os cortes nas mãos eram inevitáveis, os calos se multiplicavam, e o cansaço nunca o abandonava. Ainda assim, havia algo de diferente naquele esforço. Pela primeira vez em anos, Gianluca sentia que estava construindo algo que realmente lhe pertencia.

Bianca não ficava atrás. Entre a costura incessante e os cuidados com os filhos, agora três — o pequeno Giuseppe nascera durante a viagem —, ela equilibrava as obrigações domésticas e o apoio ao marido. Seus dias começavam antes do amanhecer, com o fogo aceso no fogão à lenha, e terminavam à luz trêmula de uma lamparina, com agulha e linha em mãos. Embora a carga fosse imensa, Bianca encontrava força no sorriso dos filhos e na visão de Gianluca voltando do trabalho, exausto, mas determinado.

A luta diária era compartilhada por todos na colônia. Os vizinhos, igualmente imigrantes, formavam uma rede de apoio e solidariedade, trocando conhecimentos e ajudando uns aos outros nos momentos mais difíceis. A construção de um sentido de comunidade ajudava a aliviar a saudade da Itália, embora esta nunca abandonasse completamente seus corações. Aos poucos, os italianos transformavam a paisagem, substituindo a floresta por campos cultivados e pequenas vinhas que pareciam promessas verdes contra o fundo marrom da terra revolvida.

O primeiro ano foi o mais árduo, mas também o mais transformador. Sob os cuidados atenciosos de Gianluca, as videiras começaram a brotar, frágeis a princípio, mas resistentes como os que as plantavam. Cada pequena folha que despontava era motivo de celebração discreta, um símbolo de que o esforço não era em vão. A paciência tornou-se a maior virtude, pois a terra, embora generosa, exigia tempo para retribuir o trabalho investido nela.

Quando a primeira colheita finalmente chegou, a emoção tomou conta de Gianluca. Ele observava as uvas penduradas nas vinhas com um misto de orgulho e gratidão, como se cada cacho fosse um testemunho das batalhas que havia enfrentado. O processo de transformação das uvas em vinho foi rudimentar, mas carregado de significado. Enquanto esmagava as frutas com cuidado, Gianluca não pôde deixar de se lembrar das vinícolas da Toscana, de sua infância em San Fiorenzo, onde o aroma do mosto fazia parte da memória coletiva.

O momento culminante chegou ao provar o primeiro vinho. Bianca, segurando um copo simples, levou-o aos lábios com hesitação e, ao sentir o sabor, seus olhos brilharam. Aquele vinho, ainda jovem e imperfeito, carregava algo que nenhuma safra americana ou qualquer terra estrangeira poderia oferecer: a essência de casa, o retorno simbólico a uma identidade que haviam temido perder. Aquele sabor era mais do que um prazer — era uma vitória, um sinal de que haviam começado a reconstruir o que a vida lhes roubara.

Embora a estrada à frente continuasse cheia de desafios, Gianluca e Bianca, pela primeira vez em muitos anos, sentiam que estavam no caminho certo. A colônia tornava-se um reflexo de sua resiliência, e a cada safra, a cada passo adiante, eles se aproximavam de um futuro que, finalmente, parecia estar ao seu alcance.

Epílogo

Os Pessina se consolidaram como pilares de uma nova colônia italiana, onde a terra, embora bruta e indomável, oferecia aos seus habitantes uma chance de renascimento. Gianluca, com o tempo, tornou-se uma figura central na comunidade. Sua experiência nas lutas iniciais fez dele uma fonte de sabedoria para outros imigrantes, que chegavam em busca de orientação e coragem. Ele ensinava a arte de preparar o solo, de cuidar das vinhas jovens, de persistir mesmo diante de frustrações inevitáveis. Em suas mãos calejadas, os novatos encontravam confiança, e em seus olhos, a determinação de quem já atravessara os mais difíceis mares.

Bianca, por sua vez, tornou-se o coração pulsante da colônia. Ela liderava as mulheres na criação de uma rede de apoio que transcendia as barreiras linguísticas e culturais. Costuravam juntas, trocavam receitas, cuidavam das crianças umas das outras, transformando as dificuldades diárias em laços que fortaleciam a comunidade. O pequeno Giuseppe, junto com Matteo e Sofia, cresceu testemunhando o esforço incansável dos pais, absorvendo, quase por osmose, a noção de que o trabalho e a solidariedade eram os pilares de qualquer conquista.

Os anos passaram, e o progresso chegou à colônia. A mata cedeu espaço a vilarejos ordenados, e os vinhedos tornaram-se um marco de prosperidade. As festas comunitárias celebravam não apenas as colheitas, mas a vitória coletiva sobre as adversidades. Gianluca e Bianca viam, com orgulho silencioso, as crianças que antes corriam entre as vinhas se tornarem adultos responsáveis, integrando-se ao ciclo de crescimento da comunidade. As sementes que haviam plantado, tanto no solo quanto no espírito daqueles que os rodeavam, floresceram de formas que eles jamais poderiam imaginar.

Mesmo na velhice, Gianluca nunca abandonou o campo. Embora o corpo já não tivesse a mesma força de outrora, ele se recusava a ser apenas um espectador da vida. Caminhava entre as fileiras de videiras, inspecionando os frutos, orientando com palavras precisas aqueles que agora assumiam as rédeas do trabalho. Ele compreendia que seu legado ia além do vinho ou da terra cultivada; estava na perseverança que havia inspirado, na coragem que ajudara a cultivar.

Bianca, ao seu lado, envelheceu com a mesma graça resiliente que sempre a caracterizara. Mesmo enquanto os cabelos embranqueciam e os passos se tornavam mais lentos, sua presença irradiava a força tranquila de quem nunca se curvou diante das tempestades da vida. As noites eram frequentemente passadas ao redor da lareira, com os netos atentos às histórias que os avós contavam, fascinados pelos relatos de travessias oceânicas, batalhas contra a floresta e a construção de uma nova vida.

Quando o ciclo da vida se completou para Gianluca, ele partiu em paz, cercado por sua família, sua obra mais grandiosa. Os campos que uma vez foram selva agora prosperavam, e as gerações que o sucederam mantinham viva a chama do sonho que ele e Bianca haviam perseguido. As videiras, com suas raízes profundas e galhos robustos, tornaram-se o símbolo duradouro de uma jornada de sacrifício e redenção. A colônia que os Pessina ajudaram a construir tornou-se uma comunidade vibrante, marcada pelo espírito de união e pela força de seus pioneiros.

Nos anos que se seguiram, os descendentes de Gianluca mantiveram viva sua memória. Os vinhos produzidos na terra que ele cultivou eram mais do que uma bebida; eram uma celebração de uma história de coragem, de escolhas difíceis e de sonhos realizados. A cada taça, as pessoas brindavam não apenas à colheita, mas à prova viva de que, mesmo nos momentos mais sombrios, há sempre uma luz para aqueles que ousam acreditar.


Nota do Autor


Embora os personagens e suas histórias sejam frutos da imaginação criativa deste autor, o enredo de Os Sonhos de Gianluca está profundamente enraizado em eventos e contextos históricos rigorosamente pesquisados. A trajetória da imigração italiana no século XIX, as condições duras da vida rural na Itália, a árdua travessia pelo Atlântico, e os desafios enfrentados nas colônias do sul do Brasil refletem a realidade vivida por milhares de famílias.

Este romance busca dar voz e forma à experiência humana por trás dos registros históricos, transformando dados e fatos em uma narrativa vívida que pretende honrar a coragem, a esperança e a resiliência daqueles que ousaram buscar um futuro melhor. Através de uma pesquisa cuidadosa em arquivos, relatos e documentos da época, o autor procurou recriar o ambiente, o espírito e os dilemas que marcaram a vida dos imigrantes, conferindo à ficção uma base sólida na verdade histórica.

Assim, Os Sonhos de Gianluca convida o leitor a mergulhar não apenas em uma saga familiar, mas também no amplo cenário das transformações sociais e humanas que moldaram uma era, preservando a memória daqueles que, mesmo diante das adversidades, nunca desistiram de sonhar.

Dr. Piazzetta

sábado, 9 de agosto de 2025

Achille Scapinetto – Entre Dois Mundos e Duas Guerras


 

Achille Scapinetto – Entre Dois Mundos e Duas Guerras

Entre a terra que o viu nascer e a que lhe deu abrigo, ele aprendeu que o verdadeiro campo de batalha é o coração.

O cheiro da terra vermelha e quente da região de Piracicaba nunca abandonou Achille Scapinetto, mesmo décadas depois de ter deixado o Brasil. Ele nascera ali, num pedaço de chão que não pertencia à sua família, sob o sol inclemente que queimava tanto a pele quanto as esperanças. Seu pai, Vittorio Scapinetto, e sua mãe, Luigia Sacaron, tinham atravessado o Atlântico em 1890, vindos de Rozzampia, no comune de Thiene, província de Vicenza.

Não vieram sozinhos. Trouxeram a filha mais velha, Santina, e o segundo filho, Giacomo, ambos ainda pequenos. No Brasil, nasceriam os outros: Francesco, Mansuetto, Umberto, Vittoria e, por último, Achille. A promessa que os trouxera da Itália era sedutora: trabalho remunerado, vida melhor, futuro para os filhos. Mas as promessas, tão abundantes no cais de Gênova, evaporaram no calor dos cafezais paulistas.

O latifundiário que os contratara ainda na Itália tinha as próprias dívidas e, com o café em queda no mercado, não havia generosidade para com os colonos. O pagamento vinha minguado, corroído por débitos constantes: a compra de mantimentos, as ferramentas de trabalho, a doença de Santina que, durante um parto difícil, precisou de uma cesariana no hospital de Piracicaba — tudo pago pelo patrão e cobrado, com juros, no acerto.

As dívidas eram uma prisão invisível. Fugir não era opção; a liberdade só viria com a quitação total, e isso parecia inalcançável. Os anos se arrastaram em meio ao calor sufocante, aos gritos de comando nos cafezais e à rotina exaustiva.

Quando finalmente retornaram a Rozzampia, em 1920, estavam um pouco menos pobres que antes, mas muito mais velhos do que a idade sugeria. Vittorio, obstinado, apesar da idade, investiu as economias de três décadas de suor na abertura de uma pequena casa de comércio, onde vendia mantimentos além de tabaco e licores. O comércio, situado em uma das esquinas mais movimentadas de Thiene, tornou-se ponto de encontro e sobrevivência para a família.

Mas a Itália não ofereceria tranquilidade por muito tempo. O avanço do regime fascista instalou-se como uma sombra espessa sobre as ruas, as praças e até sobre as conversas familiares. Cartazes de propaganda, desfiles militares e discursos inflamados tentavam disfarçar a crescente falta de liberdade. Nas casas, a prudência passou a ser lei: portas fechadas, janelas semiabertas, olhares desconfiados para cada passo na calçada. O silêncio tornou-se refúgio, pois qualquer palavra mal interpretada poderia atrair vigilância, interrogatórios e humilhações.

O clima era sufocante, como se o ar estivesse carregado de chumbo. Pequenos gestos — uma carta recebida do exterior, um comentário sussurrado no mercado, um livro escondido no fundo do armário — podiam se tornar perigosos. A incerteza pairava como neblina que não se dissipa.

Quando a Segunda Guerra Mundial explodiu, a tensão atingiu o ponto máximo. O som distante das rádios transmitindo notícias do front parecia ecoar dentro das paredes, misturando-se ao peso de um medo que não ousava se mostrar em voz alta. Foi então que a casa de Vittorio mergulhou no silêncio mais denso de sua história. As conversas rarearam, as refeições tornaram-se breves, e os olhares evitavam se encontrar, como se a troca de sentimentos fosse abrir fissuras por onde o pavor pudesse escapar.

A convocação chegou como um golpe seco, sem espaço para apelos ou despedidas prolongadas. Três de seus filhos — Mansuetto, Umberto e Achille — receberam a ordem de apresentar-se. As mãos de Vittorio tremeram ao segurar aquelas cartas oficiais, seladas com o brasão do Estado, pois sabia que não eram apenas folhas de papel: eram bilhetes de entrada para um destino incerto, talvez sem volta.

A guerra não teve piedade. Mansuetto encontrou a morte a cinquenta graus abaixo de zero, congelado nas trincheiras da Rússia, em Nikolayevka, no Oblast de Belgorod. Umberto tombou sob um sol implacável, a cinquenta graus acima de zero, nos desertos do norte da África. E Achille, o mais jovem dos três combatentes, foi ferido na Grécia.

Capturado numa manhã cinzenta, quando o frio parecia morder até os ossos, Achille foi empurrado para dentro de um vagão de carga. O ar era denso, carregado do cheiro agridoce de suor, palha úmida e medo. Amontoado entre homens que tremiam mais pela incerteza do que pela temperatura, não sabia se o destino seria o trabalho forçado ou um campo de extermínio.

O Lager onde foi confinado parecia ter sido erguido para apagar lentamente qualquer vestígio de humanidade. Barracões de madeira mal vedados, chão de terra batida, e um vento gelado que atravessava cada fresta, arrancando o calor dos corpos como se quisesse lembrar que até o ar estava sob domínio dos guardas.

A comida chegava em formas quase irônicas: uma tigela de caldo ralo com um fiapo de repolho, um pão escuro e duro como pedra, algumas cascas de batata que, se não fossem devoradas, serviriam de alimento para os ratos. Beber água significava abaixar-se sobre um barril onde a superfície estava coberta por um fino véu de sujeira. A fome não era apenas física — era um peso constante na mente, que tornava cada pensamento mais lento, cada movimento mais custoso.

Ainda assim, Achille se agarrou a algo que nenhum regime ou campo de prisioneiros podia confiscar: a esperança. À noite, deitado sobre a palha infestada de piolhos, fechava os olhos e se transportava para Thiene. Sentia o calor de um forno aceso, o cheiro do pão recém-assado, o som ritmado de passos conhecidos na rua de pedra. Na penumbra, recordava o rosto da mãe como quem segura uma fotografia desbotada — frágil, mas indispensável para sobreviver.

Meses se arrastaram. Dias e noites misturavam-se, e a contagem do tempo era feita não pelo calendário, mas pelo número de companheiros que não resistiam. Alguns partiam sem um som, apenas fechando os olhos e entregando o corpo ao frio.

Quando a guerra finalmente afrouxou suas garras e Achille foi libertado, ele já não era o mesmo homem. Caminhou durante dias até reconhecer, no horizonte, os contornos familiares das montanhas que cercavam Thiene. A cada passo, a paisagem despertava lembranças adormecidas: o sino da igreja que ecoava ao longe, o cheiro de terra molhada após a chuva, a curva da estrada onde, em tempos de paz, ele brincava quando menino.

Parou diante do portão da casa. O ferro estava frio ao toque, e por um momento, Achille temeu que ninguém abrisse. Quando finalmente a porta se escancarou, ele ficou imóvel. Carregava no corpo as marcas profundas das balas — cicatrizes que riscavam a pele como mapas de batalhas que ninguém queria recordar — e, na alma, feridas invisíveis. Trazia nos olhos a memória de um abismo que não devorou apenas homens, mas também futuros inteiros.

Achille viveu ainda longas décadas, resistindo como um velho tronco de oliveira que, retorcido e marcado pelo tempo, permanece de pé apesar das tempestades que lhe arrancaram galhos e folhas. Os anos não lhe pouparam o corpo — os passos tornaram-se lentos, as mãos carregavam o tremor discreto da idade, e os olhos, antes vivos como brasas, agora guardavam um brilho calmo, quase crepuscular.

Chegou aos noventa anos como quem atravessa um continente inteiro: com o cansaço estampado no rosto, mas com a dignidade intacta. Dentro de si, conservava dois mundos que se misturavam como águas de rios diferentes. Havia o Brasil ardente da infância — os dias de sol que queimava a pele, o cheiro doce da terra molhada após as chuvas tropicais, o riso fácil das gentes que acolhem com braços abertos. E havia a Itália sofrida da maturidade — o frio cortante dos invernos, o som dos sinos ecoando entre as colinas, as ruas estreitas onde a vida corria devagar, mas onde a guerra deixou marcas que o tempo jamais apagou.

Carregava também a lembrança de duas guerras, que haviam moldado não apenas o seu destino, mas o de toda a sua família. Foram guerras que roubaram amigos, dispersaram parentes e transformaram sonhos em silêncio. E, no entanto, ele também guardava memórias de coragem — dos que se ergueram apesar da fome, dos que partilharam o pouco que tinham, dos que mantiveram acesa a chama de um futuro melhor mesmo quando tudo parecia perdido.

Nos últimos anos, gostava de se sentar à sombra da velha oliveira no quintal. Passava horas ali, olhando para o horizonte como se ainda pudesse ver, ao mesmo tempo, o céu claro do Brasil e o entardecer dourado da Itália. Talvez soubesse que, quando chegasse a sua hora, levaria consigo não apenas as lembranças, mas o peso e o orgulho de ter vivido entre dois mundos e sobrevivido a duas guerras — uma herança invisível, destinada a permanecer no sangue e na memória de todos que vieram depois dele.

Nota do Autor

O que o leitor encontrará nestas páginas não é pura ficção, mas a recriação de uma história real, preservada ao longo de décadas por memórias familiares, relatos orais e fragmentos de registros históricos. Por respeito à privacidade dos descendentes e para preservar a liberdade narrativa, todos os nomes e alguns detalhes geográficos foram modificados.

Achille Scapinetto é, portanto, um nome escolhido. Mas por trás dele viveu um homem de carne e osso, que atravessou a vida dividido entre dois países, dois idiomas, dois afetos — e que carregou no corpo e na alma as marcas de duas guerras. Ele não foi herói perfeito nem mártir imaculado: foi humano, e justamente por isso sua história fala tão fundo ao coração.

Escrevi este livro como quem recolhe e costura retalhos de um manto antigo: cada linha busca unir as tramas da dor e da esperança, da coragem e da renúncia, para que não se perca a lembrança daqueles que construíram nossas raízes longe de sua terra natal. Não é apenas o retrato de um homem. É o eco da jornada de milhares de imigrantes que viveram na encruzilhada entre a saudade e o recomeço, entre o dever e o sonho.

Que estas páginas sejam, para o leitor, um abraço através do tempo — e um tributo àqueles que viveram entre dois mundos e sobreviveram a duas guerras.

Dr. Piazzetta



quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Raízes que Cruzaram o Oceano: do Veneto ao Novo Mundo



Raízes que Cruzaram o Oceano 
do Veneto ao Novo Mundo

Na frazione de Miane, um pequeno agrupamento de casas incrustada nas colinas ondulantes do comune de Valdobbiadene, na província de Treviso, o final do século XIX marcou o fim de uma era e o início de mudanças irreversíveis. A paisagem bucólica, com suas vinhas enfileiradas e olivais centenários, escondia uma realidade dura e implacável. O Vêneto, assim como grande parte da Itália, vivia um período de profunda crise econômica e social.

As reformas implementadas pelo recém-unificado Reino da Itália haviam trazido um peso inesperado às comunidades rurais. As terras, que durante séculos haviam passado de geração em geração, tornaram-se cada vez mais fragmentadas devido às partilhas entre os herdeiros. O resultado era um mosaico de pequenos lotes insuficientes para sustentar uma família. As colheitas, outrora abundantes, já não conseguiam competir com os produtos mais baratos que chegavam de outras regiões e países, impulsionados pela crescente globalização do comércio agrícola.

Como se não bastasse, o novo governo italiano impôs uma carga tributária pesada, alegando a necessidade de financiar o desenvolvimento da jovem nação. Os agricultores, como os Casagrande, sentiam o impacto diretamente em seus bolsos, vendo a maior parte de seus magros rendimentos escoar em taxas e impostos. Ao mesmo tempo, os preços dos insumos agrícolas subiam, enquanto o valor dos produtos finais permanecia estagnado, esmagando ainda mais os pequenos produtores.

A família Casagrande era um exemplo típico dessa luta diária. Patriarca da família, Giovanni Casagrande era um homem de mãos calejadas e olhar resiliente, acostumado a enfrentar a terra dura e as intempéries para sustentar sua esposa Maria e seus três filhos. Maria, por sua vez, equilibrava o papel de mãe e trabalhadora, mantendo a casa em ordem enquanto ajudava no cultivo de trigo, sorgo e videiras. Apesar de todo o esforço, o retorno financeiro era cada vez mais insuficiente, e o futuro parecia sombrio.

Entre os moradores de Miane, crescia um sentimento de frustração e desolação. Reuniões na praça da igreja ou nas tavernas locais eram tomadas por discussões sobre a falta de perspectiva, a desigualdade e o êxodo de jovens em busca de trabalho nas cidades mais industrializadas. Mas não era apenas para as grandes cidades italianas que os olhares se voltavam. Sussurros de oportunidades além-mar começavam a ganhar força. Histórias de terras férteis e generosas no Brasil, ainda que muitas vezes exageradas ou romantizadas, plantavam sementes de esperança em corações desgastados pela miséria.

Foi nesse cenário de incertezas que os Casagrande, após muita reflexão e debate, chegaram à conclusão de que permanecer em Miane significaria um futuro de privações sem fim. Partir parecia a única alternativa, ainda que envolvesse o abandono de tudo o que conheciam – a casa onde nasceram, os campos que araram, e os parentes e amigos que ficariam para trás. A decisão, tão dura quanto inevitável, seria a que definiria os rumos da família e dos descendentes que viriam depois.

Pietro Casagrande, aos 35 anos, era um homem moldado pela terra áspera e generosa das colinas de Miane, onde nascera e passara toda a vida. Desde menino, seu aprendizado fora íntimo e constante, absorvendo os segredos da viticultura que seu pai lhe transmitira com paciência: o momento exato da poda, a escolha das mudas, o cuidado meticuloso com o solo para preservar sua fertilidade. Cada videira, cada cacho, carregava o peso de uma tradição secular que Pietro honrava com dedicação quase religiosa.

Mas o mundo à sua volta já não era o mesmo de outrora. A agricultura familiar, que sustentara gerações, agora se via esmagada por forças que escapavam ao controle dos pequenos produtores. O mercado do vinho, antes local e simples, tornara-se um terreno disputado por grandes negociantes e industriais que podiam ditar preços e impor condições desfavoráveis aos agricultores. Pietro via, com angústia, seus esforços esmorecerem diante da impossibilidade de competir com esses gigantes. A produção familiar mal cobria os custos, e a incerteza tornava-se companheira constante.

Ao seu lado, Anna representava a força silenciosa que sustentava a família. Mulher de fibra e praticidade, ela dividia seu tempo entre as tarefas domésticas e o cuidado incessante com os filhos pequenos — Luigi, que já tinha 10 anos e ajudava no campo sempre que possível; Teresa, de 7, que começava a entender as responsabilidades que a vida lhes impunha; e o bebê Marco, que mal engatinhava e trazia ao lar uma luz tênue de esperança. Anna sabia que a sobrevivência da família dependia não apenas do trabalho árduo de Pietro, mas também da organização e do equilíbrio que mantinha dentro de casa.

Juntos, enfrentavam dias marcados pelo suor e pela incerteza, mas também pela esperança teimosa de que um futuro melhor pudesse existir — seja nas vinhas que resistiam, seja além das colinas que já não pareciam promissoras como antes.

Os dias em Miane pareciam se arrastar sob um céu cinzento, onde o sol raramente conseguia aquecer o corpo cansado dos agricultores. O trabalho no campo consumia cada gota de energia, e as noites, em vez de trazerem descanso, eram marcadas por inquietação e sonhos perturbadores. A fome pairava como uma sombra silenciosa sobre a casa dos Casagrande, apertando o peito e corroendo as forças de todos. Os invernos, antes amenos e familiares, tornavam-se cada vez mais rigorosos, castigando as colinas com ventos cortantes e geadas que destruíam as últimas esperanças de uma colheita digna.

Em meio a esse cenário de desespero, começaram a se espalhar rumores vindos de além-mar. Um nome estranho e distante ganhava vida nas conversas sussurradas: Brasil. Palavras sobre um país gigantesco, onde as terras eram vastas, férteis e, sobretudo, oferecidas gratuitamente a quem estivesse disposto a arar o solo e construir uma nova vida. Essas histórias chegavam através de cartas, viajantes e alguns poucos imigrantes retornados, carregadas de promessas que pareciam quase inacreditáveis.

As notícias falavam de oportunidades reais, mas não escondiam os perigos. A travessia do oceano Atlântico era longa e traiçoeira, marcada por condições precárias a bordo dos navios, onde doenças como tifo, colera e sarampo ceifavam vidas. O medo do desconhecido e das dificuldades não era pequeno, mas, para aqueles que sofriam com a escassez e o desespero, essa promessa de um recomeço valia qualquer risco.

Assim, mesmo diante das dificuldades incontestáveis, a luz de esperança que essas histórias carregavam começava a iluminar os corações endurecidos pela luta diária. O Brasil, com suas terras generosas e futuro incerto, surgia como um farol distante, uma possibilidade de escapar das correntes que prendiam as famílias vênetas a uma vida de privações sem fim. Foi nesse momento que muitos, como os Casagrande, começaram a sonhar com uma vida além das colinas que haviam conhecido, dispostos a arriscar tudo para garantir um amanhã melhor para seus filhos.

Pietro e Anna enfrentaram uma angústia profunda diante da decisão que lhes pesava no coração. A ideia de abandonar a terra natal, com suas colinas verdes, os vinhedos que tinham cuidado por gerações, e o vilarejo onde cada pedra parecia conter memórias de antepassados, era uma dor quase insuportável. O Vêneto não era apenas um lugar no mapa; era a essência da sua identidade, o palco das alegrias e tristezas que moldaram suas vidas. Cada aroma do solo, cada som do vento entre as folhas, carregava um pedaço da história da família.

Porém, as condições se tornavam cada vez mais insustentáveis. O trabalho árduo, os sacrifícios diários e as esperanças cada vez mais tênues haviam mostrado que permanecer significava aceitar a pobreza, a fome e a insegurança perpetuamente. A perspectiva de um futuro onde os filhos sofreriam as mesmas privações que eles já enfrentavam não lhes dava paz.

Depois de longas noites em claro e conversas silenciosas, tomaram a decisão que, embora carregada de incertezas, representava uma faísca de esperança. Venderam tudo o que podiam: a única vaca da família, que lhes dava leite e ajudava nas tarefas do campo; a velha carroça de madeira, que carregava não apenas cargas, mas também histórias de muitos anos; e os poucos utensílios de valor que possuíam, acumulados com sacrifício e cuidado ao longo do tempo.

Com o dinheiro obtido, procuraram um agente de emigração que trabalhava para uma grande companhia de navegação sediada em Veneza. Esse homem, com sua pasta cheia de papéis e promessas, ofereceu-lhes passagens para o Brasil — um destino distante, quase mítico, mas que carregava a esperança de terras férteis e vida digna. Embora temerosos diante do desconhecido, Pietro e Anna inscreveram-se para a viagem, conscientes de que dali em diante nada seria como antes. O peso da despedida se misturava à promessa de um recomeço, enquanto o horizonte do velho mundo se fechava para dar lugar ao mistério e à oportunidade do novo.

A travessia foi uma prova de resistência física e emocional para Pietro, Anna e seus filhos. O navio, um antigo cargueiro adaptado às pressas para o transporte de imigrantes, estava longe de ser adequado para a viagem transatlântica. Projetado para levar mercadorias, agora transportava centenas de pessoas empilhadas em condições sub-humanas, abarrotando os porões e os estreitos compartimentos da terceira classe.

Os alojamentos, pouco mais que cubículos improvisados, eram escuros e abafados. Não havia ventilação adequada, e o ar rapidamente tornava-se pesado e insalubre, impregnado pelo odor de corpos exaustos, comida deteriorada e dejetos humanos. Não havia privacidade nem descanso, e a constante proximidade forçada criava tensões e atritos entre os passageiros.

A comida, racionada e muitas vezes estragada, era composta de pão duro, sopas ralas e, ocasionalmente, pedaços de carne que raramente estavam frescos. A água, armazenada em tonéis sujos, não era suficiente para todos, e muitos sofriam de sede. Crianças e idosos, mais frágeis, adoeciam rapidamente. Entre as doenças mais comuns estavam o tifo e o escorbuto, que se espalhavam como fogo em um campo seco.

Pietro passava noites em claro, ouvindo os gemidos dos doentes e tentando acalmar o choro de seus filhos. Luigi, o mais velho, suportava a situação com bravura, mas os olhos cansados de Teresa e o choro constante do pequeno Marco perfuravam o coração de Pietro como facas. Ele temia pelo bem-estar da família e rezava para que o navio alcançasse o destino antes que uma tragédia maior acontecesse.

Anna, apesar de debilitada, mostrava uma resiliência admirável. Ela se esforçava para manter a dignidade e o conforto dos filhos dentro do possível. Inventava histórias para distraí-los e, com mãos trêmulas, dividia as pequenas porções de comida, garantindo que cada um recebesse pelo menos um pouco. Mesmo quando sua própria saúde começava a vacilar, seu foco permanecia nas crianças.

O balanço constante do navio, agravado por tempestades que tornavam o mar traiçoeiro, fazia muitos sucumbirem ao enjoo. As ondas gigantes lançavam o cargueiro de um lado para outro, e, em noites mais severas, os passageiros agarravam-se ao que podiam, rezando para que o navio não fosse engolido pelas águas revoltas.

Apesar de tudo, a esperança teimava em resistir. Nos momentos mais sombrios, os imigrantes se uniam, compartilhando palavras de conforto, alimentos ou mesmo preces conjuntas. Pietro encontrava força ao olhar para Anna e os filhos, determinado a fazer com que aquele sacrifício não fosse em vão. A promessa de uma nova vida, ainda que distante, era a chama que os mantinha vivos em meio à escuridão e ao sofrimento.

Após semanas intermináveis no mar, o navio finalmente atracou no movimentado porto do Rio de Janeiro. Era um espetáculo de cores e sons que contrastava fortemente com os dias sombrios e silenciosos da travessia. Para Pietro e Anna, o alívio de tocar terra firme misturava-se à apreensão pelo que ainda estava por vir. O Brasil, com seu calor sufocante e uma língua desconhecida, era um mundo novo e estranho.

No entanto, esse desembarque era apenas uma breve pausa na longa jornada. Após dois dias de espera no porto, tempo que usaram para recuperar um pouco das forças abrigados na grande Hospedaria dos Imigrantes onde recebiam alimento e camas para descansar se adaptar ao ritmo frenético do novo país, os Casagrande foram embarcados novamente, desta vez em um navio menor, destinado ao sul do país. A viagem prosseguia, agora rumo à província de São Pedro do Rio Grande do Sul, onde as promessas de terra e uma nova vida ainda eram apenas ideias distantes.

Quando finalmente chegaram ao porto de Rio Grande, a família estava exausta, mas Pietro sentia que o destino final estava ao alcance. Ainda assim, o desafio não terminava ali. Embarcaram em barcos fluviais lotados, navegando lentamente pelo rio Caí que cruza as vastas planícies da província. A vegetação exuberante, os sons das aves tropicais e o calor úmido criavam uma atmosfera completamente diferente das colinas familiares do Vêneto. Anna, com os filhos nos braços, observava a paisagem com um misto de fascínio e inquietação, enquanto Pietro mantinha os olhos fixos na água, pensando no futuro incerto que os aguardava.

Ao chegar ao destino, foram encaminhados por funcionários do governo para uma colônia recém-criada, chamada Caxias do Sul. O lugar, apesar de promissor, era marcado por uma rudeza que não deixava dúvidas sobre os desafios que enfrentariam. A paisagem, dominada por matas densas e terras ainda por desbravar, parecia indomada. As autoridades entregaram à família Casagrande um pedaço de terra coberto de vegetação cerrada, que deveria ser desmatado e cultivado com suas próprias mãos.

Pietro encarou aquele pedaço de terra como um campo de batalha. Ele sabia que cada árvore derrubada, cada pedaço de solo revolvido seria uma conquista para sua família. Anna, mesmo cansada, arregaçou as mangas para ajudar no que podia. As crianças, embora ainda jovens, absorviam o ambiente com curiosidade e esperança.

A colônia era formada por outras famílias italianas, vindas de diferentes partes do norte da Itália. Isso trouxe algum alívio: podiam falar sua língua, compartilhar tradições e formar uma comunidade que os conectava às raízes deixadas no Vêneto. Apesar das condições iniciais difíceis, a promessa de uma vida melhor alimentava seus esforços. Caxias do Sul, ainda rudimentar, tornava-se um símbolo de recomeço, onde cada dia de trabalho árduo representava um passo para transformar a promessa em realidade.

O pedaço de terra que a família Casagrande recebeu por meio do contrato com o governo era vasto e imponente, abrangendo cerca de 250 mil metros quadrados. Para uma família de agricultores habituada às pequenas parcelas fragmentadas do Vêneto, aquela extensão parecia tanto uma bênção quanto um desafio colossal. No entanto, o terreno estava completamente coberto por mata fechada, uma selva densa e inexplorada, com árvores altas, raízes profundas e uma fauna desconhecida que muitas vezes os assustava à noite.

Pietro, sem experiência com desmatamento, logo percebeu que enfrentar sozinho aquela tarefa monumental seria impossível. Ele se uniu a outros colonos recém-chegados, formando uma rede de apoio que misturava trabalho árduo e aprendizado coletivo. Com ferramentas rudimentares, como machados, foices e serras de arco, os homens enfrentavam a floresta, abrindo clareiras a cada dia, muitas vezes ao custo de bolhas nas mãos e músculos exaustos.

Os dias começavam ao amanhecer ainda escuro, com Pietro liderando sua família e dividindo tarefas com outros colonos. O som das árvores sendo derrubadas ecoava pela colônia, acompanhado pelos gritos de encorajamento entre os trabalhadores e pelo estalar da madeira ao ceder. Era um trabalho árduo e perigoso, com troncos caindo em direções inesperadas e ferramentas que exigiam precisão para evitar acidentes. Pietro, sempre cauteloso, mantinha os filhos longe das áreas mais perigosas, mas sua mente não descansava enquanto trabalhava, sabendo que ainda havia muito a fazer para tornar aquele pedaço de terra um lar.

Enquanto isso, Anna mostrava uma determinação extraordinária. Apesar da precariedade inicial, ela começou a plantar as primeiras sementes de feijão, mandioca e milho em pequenos espaços que Pietro e os outros conseguiam abrir no solo. Usando um enxadão que trouxera consigo, Anna misturava o solo fértil com as sementes, rezando silenciosamente por uma colheita que alimentasse seus filhos.

As crianças, ainda pequenas, faziam o que podiam para ajudar. Luigi, o mais velho, assumia responsabilidades maiores, carregando baldes de água do riacho próximo e ajudando o pai a recolher galhos e raízes. Teresa, com sua energia juvenil, recolhia lenha para as fogueiras, enquanto Marco, apesar de ainda ser um bebê, brincava sob a sombra das árvores, sua presença lembrando a Pietro e Anna o motivo pelo qual enfrentavam tamanha adversidade.

O progresso era lento, mas visível. A cada árvore derrubada e a cada metro de solo cultivado, a floresta dava lugar a um campo que prometia se tornar fértil. Pietro e Anna viam naquelas clareiras não apenas o resultado de seu trabalho, mas também a possibilidade de um futuro, onde a terra que antes parecia indomável pudesse sustentar sua família. A solidariedade entre os colonos reforçava o senso de comunidade, e o esforço conjunto transformava o sonho de sobrevivência em um objetivo compartilhado: construir uma nova vida, um sulco de cada vez.

Os primeiros anos na nova terra foram uma verdadeira prova de resiliência para os Casagrande. Acostumados ao clima ameno das colinas do Vêneto, enfrentar o calor sufocante e a umidade constante do clima tropical era um desafio diário. As chuvas torrenciais, que muitas vezes transformavam o solo em lama e faziam os riachos transbordarem, destruíam plantações inteiras em questão de horas. O sol escaldante, por sua vez, secava as folhas das culturas recém-plantadas e tornava o trabalho no campo extenuante.

Além disso, as pragas agrícolas, desconhecidas para Pietro e Anna, tornavam-se uma batalha constante. Gafanhotos, lagartas e outros insetos atacavam as plantações de milho e mandioca, e não havia conhecimento ou recursos suficientes para combatê-los. No entanto, Pietro era persistente, aprendendo com outros colonos e experimentando métodos rudimentares para proteger as culturas. Ele usava cinzas das fogueiras como repelente natural e criava barreiras simples para evitar que os insetos se alastrassem.

A saudade do Vêneto também pesava. As memórias das colinas verdes, do cheiro das videiras e do som dos sinos das igrejas eram como fantasmas que os acompanhavam. À noite, enquanto descansavam em seu abrigo improvisado, Pietro e Anna falavam em sussurros sobre a terra natal, temendo que mencionar suas saudades em voz alta pudesse enfraquecer o ânimo das crianças.

Apesar das dificuldades, os Casagrande começaram a ver o fruto de seus esforços. O pedaço de mata densa que haviam recebido transformava-se gradualmente em campos cultivados. Pietro, com as mãos calejadas e um espírito incansável, concentrou-se primeiro em construir um abrigo rudimentar, feito de troncos e folhas, para proteger a família da chuva e dos animais selvagens. Era precário, mas servia de refúgio enquanto ele planejava algo mais duradouro.

Com o tempo, e à medida que os campos davam suas primeiras colheitas, Pietro iniciou a construção de uma casa simples de madeira. Ele cortava as tábuas com cuidado, ajustando cada peça com paciência, mesmo sem ter ferramentas adequadas. A casa era pequena, com um único cômodo que servia de cozinha, sala e dormitório, mas era o suficiente para dar à família um senso de segurança e estabilidade.

Anna, com sua dedicação inabalável, transformou a estrutura básica em um verdadeiro lar. Ela pendurava ervas secas nas vigas de madeira, costurava cortinas com retalhos de tecido que trouxera da Itália e cuidava para que o pequeno jardim ao redor da casa estivesse sempre florescendo. À noite, quando a família se reunia ao redor da mesa improvisada, Anna preparava refeições simples, mas feitas com carinho, e suas histórias sobre o Vêneto ajudavam a manter vivas as raízes culturais dos Casagrande.

Pouco a pouco, a nova vida começava a tomar forma. Embora o caminho fosse longo e os desafios constantes, os Casagrande viam na transformação da terra e no lar que estavam construindo um sinal de que a coragem de deixar sua terra natal não havia sido em vão.

Com o passar dos anos, os frutos do árduo trabalho começaram a se manifestar de maneira mais evidente. As colheitas, antes tímidas e incertas, tornaram-se progressivamente mais abundantes, fruto de um aprendizado contínuo sobre a terra e suas peculiaridades. Com isso, a família finalmente pôde negociar o excedente da produção por outros bens essenciais, como ferramentas, tecidos e até pequenos luxos que antes pareciam inalcançáveis.

Luigi, agora na adolescência, emergia como um jovem forte e dedicado, assumindo com seriedade muitas das responsabilidades no campo. Ele não apenas auxiliava no plantio e na colheita, mas também começou a se interessar por técnicas agrícolas mais eficientes, que ouviu de outros colonos ou leu em antigos manuais trazidos da Itália. Sob sua liderança discreta, a produtividade da pequena propriedade deu novos saltos.

Teresa, por sua vez, encontrou na costura não apenas uma forma de complementar a renda da família, mas também um caminho para expressar sua criatividade e talento. Seus bordados, conhecidos por detalhes delicados e motivos tradicionais italianos, começaram a ser procurados por outras famílias da colônia. Logo, ela se tornara uma figura reconhecida pela comunidade, recebendo encomendas que lhe permitiram comprar materiais de melhor qualidade e até sonhar com uma máquina de costura moderna.

O crescimento econômico trouxe não só alívio, mas também uma nova esperança para a família. Aos poucos, começaram a planejar melhorias na casa de madeira, incluindo um novo quarto para Luigi e sua irmã mais nova, Rosa, que também crescia rapidamente e já ajudava a mãe em pequenos afazeres. Com cada conquista, sentiam-se mais enraizados naquele solo, que, embora distante de sua terra natal, começava a se parecer com um verdadeiro lar.

Os Casagrande encontraram nos outros colonos italianos não apenas vizinhos, mas uma verdadeira extensão de sua família. A solidariedade mútua era o alicerce daquela pequena comunidade, onde cada gesto de apoio fazia a diferença. Em momentos de necessidade, fosse para levantar um novo galpão, colher uma safra antes da chegada da chuva ou enfrentar os desafios impostos pelo clima tropical, os colonos estavam sempre prontos a ajudar uns aos outros, criando laços que iam além do sangue.

Aos domingos, as reuniões na igreja da colônia eram um ponto alto na semana. A pequena capela, construída em mutirão, era mais do que um espaço de oração; era um local onde a alma da comunidade se fortalecia. Ali, ao som de cânticos entoados no dialeto vêneto, os Casagrande sentiam a conexão com sua herança cultural e espiritual. As missas, simples, mas carregadas de emoção, eram seguidas por longas conversas e risadas ao redor de mesas improvisadas, repletas de pratos típicos como polenta, salame e pão caseiro.

Entre histórias sobre as dificuldades da travessia do oceano e as vitórias na terra nova, a saudade da Itália era constantemente compartilhada, mas, com o tempo, também transformada. Embora a nostalgia da pátria nunca desaparecesse por completo, os Casagrande perceberam que, naquele novo lar, haviam plantado raízes profundas. O solo que antes parecia tão estranho agora produzia os frutos de seus esforços. E, na companhia de seus conterrâneos, descobriram que o sentido de pertencimento não dependia apenas do lugar, mas das pessoas que os cercavam.

Com cada colheita bem-sucedida e cada celebração comunitária, ficou claro para os Casagrande que haviam encontrado mais do que um espaço para sobreviver: haviam construído um lugar onde poderiam sonhar, crescer e, acima de tudo, prosperar.

Décadas mais tarde, os Casagrande haviam se tornado uma referência em toda a região. Reconhecidos por sua incansável dedicação ao trabalho e pela visão inovadora, a família não apenas prosperou, mas também deixou um legado que ecoava além das fronteiras de suas terras. Seus descendentes expandiram a propriedade original, transformando-a em um complexo agrícola diversificado, que ia muito além do cultivo inicial de uvas e cereais. Vinhedos cuidadosamente cultivados deram origem a premiados vinhos regionais, enquanto plantações de frutas e hortaliças abasteciam mercados locais e contribuíam para o desenvolvimento da economia da jovem cidade de Caxias do Sul.

A participação da família não se restringiu à esfera econômica. Os Casagrande desempenharam papéis importantes na vida comunitária, ajudando a fundar escolas, associações culturais e até uma cooperativa agrícola que impulsionou o progresso de muitas outras famílias imigrantes. O espírito de união, que fora vital nos primeiros anos de luta, permaneceu uma característica marcante da família, transmitido de geração em geração.

Na Itália, na pequena frazione de Miane, a história dos Casagrande que partiram em busca de uma nova vida era contada com reverência e orgulho. Cartas enviadas ao longo dos anos, cheias de relatos sobre as conquistas e os desafios enfrentados no Brasil, eram lidas e guardadas como tesouros. Fotografias em preto e branco mostrando os campos férteis de Caxias do Sul e os rostos sorridentes dos descendentes eram compartilhadas nas celebrações familiares, uma ponte simbólica entre os dois continentes.

Hoje, a trajetória dos Casagrande é lembrada como um exemplo inspirador de coragem, determinação e fé no futuro. Suas conquistas não apenas enriqueceram a história de Caxias do Sul, mas também fortaleceram os laços culturais entre Brasil e Itália. A memória dos que ousaram sonhar com uma vida melhor em terras desconhecidas permanece viva, um testemunho de que o espírito humano é capaz de superar as maiores adversidades e transformar sonhos em realidade.

Nota do Autor


A história apresentada é parte do livro Raízes que Cruzaram o Oceano: do Veneto ao Novo Mundo. Trata-se de um romance fictício, porém amplamente inspirado em fatos reais e relatos coletados pelo autor junto a descendentes daqueles pioneiros que, com coragem e determinação, desbravaram novos horizontes em terras distantes. Os nomes dos personagens e alguns eventos foram adaptados ou recriados para preservar a identidade das famílias e tornar a narrativa mais envolvente. O sobrenome "Casagrande" foi escolhido para exemplificar e dar vida à história, sendo um sobrenome bastante comum na Itália, o que facilita sua identificação com os contextos históricos e culturais retratados. Apesar das adaptações literárias, o espírito das jornadas, os desafios enfrentados e as conquistas alcançadas são um tributo fiel ao legado deixado por esses imigrantes. Esta obra é uma homenagem à resiliência, ao trabalho árduo e ao amor que moldaram uma nova história, tanto para os que partiram quanto para os que ficaram.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta



sexta-feira, 1 de agosto de 2025

A Emigraçao Italiana, as Toneladas Humanas, o Cólera e o Torna Viagem

 


A Emigração Italiana, as Toneladas Humanas, as 

Epidemias de Cólera e o Torna Viagem 


O intenso verão de 1893 trouxe notícias de casos isolados de cólera que começavam a surgir em algumas cidades europeias, incluindo Gênova e Nápoles. Embora os números fossem baixos, o histórico da doença e suas consequências devastadoras mantinham as autoridades em alerta. Para a maioria da população, contudo, a ameaça parecia distante, pouco mais que rumores sem impacto imediato em suas vidas. Entre os emigrantes que lotavam os portos, o foco estava no desejo de partir e no recomeço que aguardavam além do oceano.

Gênova, um dos maiores portos da Itália, era o destino final de famílias inteiras provenientes das áreas rurais do centro norte do país, buscando escapar da pobreza e do desemprego que assolavam suas terras. Em meio ao calor intenso, milhares de pessoas se amontoavam com seus pertences em um cenário de caos e expectativa. As condições precárias e a superlotação eram uma constante, mas, para muitos, eram apenas etapas necessárias de uma jornada para um futuro promissor.

No dia 15 de agosto de 1893, o vapor Remo estava pronto para zarpar rumo ao Rio de Janeiro, com uma escala prevista no porto de Nápoles para o embarque de emigrantes do sul do país. Mais de mil passageiros subiram a bordo em Gênova, acompanhados por cerca de sessenta tripulantes. Entre eles estava a família de Piero Antonello, composta por nove membros. Vindos da pequena localidade de San Pietro Novello, em Monastier di Treviso, eles haviam abandonado a vida de agricultores arruinados para tentar a sorte em terras brasileiras. Carregavam não apenas seus poucos pertences, mas também o peso das despedidas e a esperança de um recomeço.

O convés do Remo refletia a diversidade e a agitação dos portos italianos: vozes em diferentes dialetos ecoavam enquanto famílias se acomodavam, crianças exploravam curiosas os espaços do navio e adultos trocavam relatos de suas expectativas. Olhares saudosos se voltavam para a costa italiana enquanto o navio começava a afastar-se lentamente. Para muitos, aquele era o último vislumbre da terra natal.

Apesar das condições apertadas e do calor sufocante, o clima a bordo era de otimismo cauteloso. Poucos se preocupavam com o risco de doenças; a presença de cólera em cidades como Gênova e Nápoles não era um tema amplamente discutido entre os passageiros. A promessa de um futuro melhor superava qualquer receio que pudesse surgir naquele momento.

Conforme o Remo navegava em direção ao horizonte, cada passageiro carregava sua história, suas perdas e suas esperanças. A viagem transatlântica era um salto no desconhecido, mas também a única chance de muitos para escapar da pobreza e reconstruir suas vidas. No silêncio das primeiras noites em alto-mar, a sombra das incertezas dividia espaço com a fé em dias melhores que os aguardavam do outro lado do oceano.

Já no dia seguinte que o navio zarpou apareceu um caso de colera a bordo,  o qual foi mal diagnosticado pelo capitão ou ele, seguindo as ordens dos armadores, preferiu não tomar conhecimento, considerando que fosse somente uma gastroenterite e resolveu irresponsavelmente prosseguir com a viagem. 

O navio seguiu normalmente para o porto de Nápoles, onde outro numeroso grupo de aproximadamente quinhentos passageiros aguardava ansiosamente para embarcar. Eram emigrantes provenientes das regiões rurais mais meridionais da Itália, carregando consigo o peso das dificuldades e a esperança de um futuro melhor. Entre eles destacava-se a família de Vittorio Esposito, composta por seis membros, cada qual trazendo no olhar a mistura de incerteza e determinação, características de quem deixa para trás suas raízes em busca de uma nova vida.

Terminados os procedimentos de embarque o navio zarpou em direção do porto do Rio de Janeiro, levando quase 1600 pessoas ao todo entre tripulantes e passageiros. Na ocasião segundo relatos de um desses passageiros, a dieta servida consistia em arroz de má qualidade e carne salgada com lentilhas, o que frequentemente causava diarreia e disenteria. 

No dia 17 de agosto mais casos de diarréia e vômitos surgiram seguidos das primeiras mortes. O diagnóstico de cólera a bordo foi então declarado. Mesmo assim o comandante não abortou a viagem retornando para Nápoles, o que teria salvo centenas de pessoas. Logo após a partida de Gênova, os primeiros casos começaram a se manifestar entre os passageiros: febre, diarreia intensa, vômitos, cólicas abdominais e espasmos musculares violentos. A pele dos enfermos tornava-se azulada e enrugada, os olhos encovados, e a morte podia ocorrer em poucas horas devido a uma desidratação rápida e intensa. O pânico se espalhou tão  rápido entre os passageiros, quanto o próprio cólera, que viam seus companheiros sucumbirem à doença sem qualquer assistência médica adequada.

Para a família Esposito, a viagem começara com lágrimas de despedida e promessas de um futuro melhor. Em Nápoles, eles se separaram dos amigos e parentes com abraços longos e olhares carregados de emoção, mas também de esperança. A bordo, Maria Esposito tentava acalmar seus filhos, ocupando-os com histórias sobre a vida que teriam no Brasil. Porém, apenas alguns dias após a partida, os sinais da tragédia começaram a emergir.

Vittorio Esposito, o patriarca da família, foi um dos primeiros a adoecer. Maria notou o cansaço incomum do marido e, em seguida, a febre e as cólicas que o deixaram debilitado. Buscando ajuda, ela procurou o médico do navio, um jovem inexperiente que logo se viu sobrecarregado com dezenas de casos semelhantes. Seus suprimentos médicos eram limitados e sua capacidade de resposta, insuficiente diante da magnitude do problema.

A doença também ceifou a vida de dois membros da família de Piero Antonello, a mãe viúva que os acompanhava e um dos seus filhos menores. A tragédia causada pela epidemia a bordo foi particularmente cruel para Piero Antonello e sua família. Em meio ao caos e à falta de recursos, a doença não fez distinção entre jovens ou idosos, fortes ou frágeis. Primeiro, foi sua mãe, uma mulher já idosa, cuja saúde delicada não resistiu aos sintomas devastadores do cólera. Em questão de dias, as febres intensas, a desidratação severa e a fraqueza extrema tiraram-lhe a vida, deixando Piero com o coração pesado pela perda de quem era a figura central de suas memórias e tradições familiares.

A situação tornou-se ainda mais insuportável quando um de seus filhos, um menino de apenas sete anos, também começou a apresentar os sintomas. O olhar inocente e assustado da criança, misturado ao desespero do pai que tentava protegê-lo de um inimigo invisível, tornou-se uma cena gravada na mente dos que assistiam à tragédia. Piero fez o que pôde com os escassos recursos disponíveis. Tentou hidratá-lo com a pouca água que conseguia, segurou-o nos braços por noites seguidas e implorou ao médico do navio por alguma intervenção. No entanto, o pequeno corpo, já enfraquecido pela alimentação precária e pelas condições insalubres da viagem, não suportou.

O momento do adeus foi avassalador. As despedidas a bordo não tinham direito a cerimônias ou conforto. Os corpos eram rapidamente envoltos em lonas, amarrados com uma pedra aos pés para afundarem rápido e lançados ao mar, um gesto necessário para evitar a propagação ainda maior da doença, mas que dilacerava os corações de quem ficava. Piero viu sua mãe e seu filho serem entregues às profundezas do oceano em questão de dias, sem uma sepultura onde pudesse prantear, sem um lugar onde pudesse se conectar com as lembranças daqueles que amava.

A dor da família de Piero foi compartilhada silenciosamente por outras a bordo. Cada perda era sentida não apenas como um luto individual, mas como um lembrete cruel da fragilidade da vida em meio às adversidades. As lágrimas de Piero se misturaram às de outras famílias que, como a sua, haviam embarcado no navio carregando sonhos e esperança, mas agora se agarravam ao pouco que restava: a força de continuar vivendo, mesmo diante de uma realidade tão implacável.

Com o passar dos dias, o número de doentes aumentou exponencialmente. O ambiente confinado dos porões da terceira classe, onde viajavam os emigrantes, era um terreno fértil para a propagação do cólera. As condições de higiene precárias pela escassez de água potável, instalações sanitárias insuficientes e a falta de alimentos adequados agravavam a situação. Maria, mesmo debilitada emocionalmente, tentava proteger os filhos do pior. Ela fazia o que podia para mantê-los longe das áreas mais afetadas, mas o espaço limitado do navio tornava essa tarefa quase impossível.

As mortes começaram a ocorrer com frequência alarmante. Primeiro eram os mais frágeis: idosos e crianças sucumbiam rapidamente à doença. Os corpos eram enrolados em lençóis e, com poucas palavras ditas em oração, lançados ao mar, o que gerava cenas de desespero e gritos de dor daqueles que perdiam seus entes queridos.

Quando o navio finalmente se aproximou da costa brasileira, a bordo reinava uma esperança frágil de que a chegada ao Rio de Janeiro pudesse representar a salvação. Porém, ao avistarem os oficiais sanitários que se aproximavam em pequenos barcos, a tensão cresceu. Após inspeções rápidas, veio a notícia que ninguém queria ouvir: o navio não teria permissão para atracar. As autoridades brasileiras temiam que a epidemia se espalhasse para a população local e ordenaram que o navio permanecesse em quarentena no mar com uma bandeira amarela hasteada no mastro principal para denunciar a sua situação.

A rejeição foi um golpe devastador. Os passageiros, já exaustos e famintos, não tinham forças para protestar. A bordo, o desespero atingiu seu ápice. A comida e a água se esgotaram, as mortes continuaram, e o odor da doença e da decomposição impregnava o ambiente. Os Esposito, como tantos outros, rezavam incessantemente por um milagre que não parecia vir.

Após dias intermináveis de espera, a decisão final foi anunciada: o navio teria que retornar à Itália. Para muitos, aquilo era o colapso de um sonho e o fim de qualquer esperança. A família Esposito, como os demais passageiros, viu-se forçada a enfrentar mais semanas de viagem, voltando para o ponto de partida, agora marcada pela dor, pela perda e pela desesperança.

A jornada de retorno, conhecida como "Torna Viagem", simbolizava não apenas um retrocesso físico, mas também emocional e espiritual. Para Maria, Vittorio e os filhos que sobreviveram, para a família Exposito, o que restava era tentar reconstruir suas vidas em meio aos escombros de uma tragédia que marcaria suas memórias para sempre. 

O "Torna Viagem" foi um processo trágico e emblemático da história da imigração no Brasil durante o século XIX. Implementado como uma medida de saúde pública, ele consistia em impedir o desembarque de passageiros em navios que transportavam imigrantes, caso houvesse registro de epidemias a bordo, como o temido cólera. Em vez de permitir que os passageiros desembarcassem e recebessem tratamento, as autoridades brasileiras ordenavam que esses navios retornassem aos seus portos de origem, levando consigo toda a carga de sofrimento, mortes e desespero.

Essa prática preventiva era motivada pelo temor justificado de que doenças contagiosas pudessem se espalhar pela população local, especialmente em cidades portuárias como o Rio de Janeiro, onde o acesso a infraestrutura sanitária era limitado. Assim, os navios eram submetidos a rigorosas inspeções sanitárias logo ao se aproximarem da costa. A detecção de mortes ou de sinais de doenças altamente contagiosas, como diarreia severa, febre e desidratação, geralmente levava à decisão de envio imediato do navio de volta à Europa.

Embora tivesse a intenção de proteger a saúde pública, o "Torna Viagem" gerava grande controvérsia. Para os imigrantes, que haviam investido todas as suas economias e sonhos em uma nova vida no Brasil, essa decisão era devastadora. Durante a viagem de ida, as condições a bordo já eram precárias: os porões das embarcações eram abarrotados, mal ventilados e mal iluminados. A higiene era quase inexistente, com instalações sanitárias insuficientes e água potável frequentemente contaminada. A disseminação de doenças como o cólera era praticamente inevitável.

No retorno forçado, a situação se agravava. Muitos passageiros já estavam enfraquecidos pela longa viagem e pela doença. O número de mortos aumentava, e os corpos eram frequentemente lançados ao mar sem cerimônias, um ato que aumentava o desespero daqueles que perdiam seus entes queridos. A comida e a água tornavam-se ainda mais escassas, enquanto a tripulação, também exausta, lutava para manter o controle em meio ao caos.

Para a famílias Esposito e Antonello, o "Torna Viagem" foi a culminação de um pesadelo que começou ainda nos primeiros dias de viagem. Após semanas de agonia, eles finalmente chegaram ao porto de Nápoles, mas o desembarque trouxe pouca sensação de alívio. Muitos passageiros estavam em estado crítico, debilitados pela doença e pela fome. Autoridades médicas e locais trabalharam incansavelmente para conter a epidemia e fornecer cuidados aos doentes. Os casos mais graves, como o de Vittorio Esposito, foram levados às pressas para hospitais improvisados, enquanto Maria e os filhos aguardavam com angústia a recuperação do patriarca.

O impacto psicológico do retorno foi imenso. Para os Esposito e tantas outras famílias, o "Torna Viagem" não foi apenas um revés prático, mas um golpe em suas esperanças e sonhos. Muitos nunca mais tentariam emigrar, marcados para sempre pelo trauma da experiência. Outros, obstinados pela necessidade, arriscariam novas travessias em busca de um futuro melhor, mas com cicatrizes indeléveis.

O "Torna Viagem" permaneceu em vigor até o início do século XX, quando avanços em saúde pública e infraestrutura permitiram a adoção de medidas mais humanas, como quarentenas em ilhas próximas aos portos e hospitais de isolamento. Hoje, é lembrado como um dos capítulos mais sombrios da imigração, destacando a vulnerabilidade dos imigrantes e a complexidade dos desafios enfrentados em busca de uma vida melhor.

Naquele verão além do Remo outros três navios transportando imigrantes italianos chegaram ao Brasil nas mesmas condições. O navio Andrea Doria chegou ao Porto do Rio de Janeiro em 12 de setembro de 1893 pelos mesmos motivos também não obteve a permissão para desembarcar os seus passageiros. Durante a travessia tinham ocorrido 91 casos de cólera a bordo e assim o navio recebeu a ordem de retornar ao porto de origem, frustando todos aqueles imigrantes e suas famílias. 

No dia 24 de agosto de 1893, o navio italiano Carlo R. atracou nas proximidades do Porto do Rio de Janeiro, trazendo consigo uma história de sofrimento e desespero. Durante a longa travessia atlântica, uma violenta epidemia de cólera assolou a embarcação, ceifando a vida de 100 pessoas. Entre os mortos estavam crianças, idosos e outros imigrantes debilitados pelas precárias condições de higiene e alimentação. A situação a bordo era calamitosa: além dos mortos, um número ainda maior de passageiros encontrava-se gravemente doente, lutando contra febres, diarreia intensa e desidratação severa.

Quando as autoridades sanitárias brasileiras subiram a bordo para vistoriar o Carlo R., foram imediatamente impactadas pelo cenário dantesco. Relatos da época descrevem o navio como uma verdadeira prisão flutuante de sofrimento, com um odor insuportável que impregnava o ar, resultado da falta de ventilação, da decomposição de resíduos e da aglomeração humana em condições desumanas. Os porões estavam lotados de passageiros exaustos e doentes, muitos deles amontoados em estreitas camas de madeira ou diretamente sobre o chão, sem acesso a cuidados básicos.

A inspeção confirmou o pior: o navio era um foco de contaminação. O estado deplorável da embarcação e o alto risco de propagação da epidemia levaram as autoridades brasileiras a tomarem uma decisão drástica. O Carlo R. foi sumariamente interditado e impedido de desembarcar seus passageiros em terras brasileiras. A embarcação recebeu ordens de retornar imediatamente ao porto de origem na Itália, levando consigo não apenas os doentes e os corpos dos que haviam perecido, mas também os sonhos despedaçados de centenas de famílias que acreditavam estar a caminho de uma vida nova e promissora.

O retorno forçado para a Itália foi uma sentença cruel para aqueles a bordo. A jornada de volta, em condições ainda mais deterioradas, prometia mais sofrimento e mortes. Sem acesso a tratamento médico adequado e com estoques de comida e água cada vez mais escassos, os passageiros enfrentaram uma verdadeira prova de resistência. O sonho de "fazer a América" transformou-se em um pesadelo flutuante, onde a esperança dava lugar ao desespero e à resignação diante do incontrolável.

A tragédia do Carlo R. é lembrada como um símbolo dos desafios enfrentados pelos imigrantes italianos no final do século XIX. Representa não apenas as adversidades de uma travessia transatlântica, mas também as políticas rigorosas de contenção sanitária da época, que frequentemente sacrificavam vidas e sonhos em nome da proteção coletiva.

No dia 16 de setembro do mesmo ano foi a vez do navio Vicenzo Florio ser proibido de desembarcar os seus passageiros devido o surgimento de uma epidemia a bordo enquanto atravessava o oceano com destino ao Brasil. Este navio também foi proibido de desembarcar os passageiros ou qualquer membro da tripulação e teve que empreender a viagem de volta ao porto de origem.

Quando finalmente o Vincenzo Florio chegou ao porto, as autoridades sanitárias brasileiras, alertadas pelos registros de mortes e relatos de doenças durante a travessia, realizaram uma rigorosa inspeção. As evidências de contaminação e o alto risco de propagação da epidemia levaram à temida decisão: o navio foi proibido de desembarcar passageiros ou tripulação. Seguindo os protocolos de saúde pública da época, a embarcação recebeu ordens para empreender a viagem de volta ao porto de origem na Itália.

A decisão foi um golpe devastador para os imigrantes. Após semanas enfrentando as adversidades do mar e os horrores da doença, a proibição de desembarque significava a destruição de seus sonhos de uma nova vida. Famílias inteiras, que haviam deixado tudo para trás em busca de oportunidades no Brasil, viram-se forçadas a retornar para uma terra onde a miséria e o desemprego as aguardavam.

A viagem de retorno foi ainda mais desafiadora. O número de doentes aumentava a cada dia, e os suprimentos de comida e água estavam perigosamente baixos. Muitos passageiros sucumbiram à epidemia durante o trajeto de volta, e os que sobreviveram chegaram à Itália profundamente debilitados, física e emocionalmente.

O episódio do Vincenzo Florio reflete um capítulo doloroso da história da imigração no Brasil e do fenômeno conhecido como "Torna Viagem". Ele simboliza os desafios e tragédias enfrentados por aqueles que, movidos pela esperança, se lançavam ao mar em busca de uma vida melhor. Além disso, destaca as condições desumanas a que esses imigrantes eram submetidos e as duras políticas sanitárias que, embora visassem proteger a população local, resultavam em sofrimento extremo para os viajantes. Essas histórias permanecem como testemunhos de coragem, resiliência e da busca incessante por um futuro melhor, mesmo diante das adversidades mais cruéis.

Entre os meses de agosto e setembro de 1893, quase seis mil imigrantes italianos tiveram seus destinos drasticamente alterados. Nesse período, quatro grandes vapores italianos, cada um transportando aproximadamente 1.500 imigrantes, viram suas jornadas interrompidas de forma abrupta ao serem impedidos de desembarcar no Porto do Rio de Janeiro. Após mais de um mês enfrentando os desafios e privações de uma longa travessia oceânica, esses navios foram obrigados a retornar aos portos de embarque na Itália, transformando sonhos de esperança e prosperidade em desespero e frustração.

Essas famílias deixavam a pátria com o propósito de “fazer a América”, como dizia-se à época, mas a concretização desse ideal exigia mais do que coragem e disposição. A decisão de emigrar era acompanhada de meses, ou até anos, de planejamento meticuloso e uma preparação rigorosa. Não bastava o desejo de partir; era necessário reunir recursos financeiros para custear as passagens e reunir uma vasta gama de documentos que atestavam desde a saúde até o histórico pessoal dos viajantes.

Entre os papéis exigidos estavam o passaporte, que marcava a saída de sua terra natal, e o visto, necessário para transitar pelos portos de escala e entrar no Brasil. Além disso, os imigrantes precisavam de certificados de vacinação, muitas vezes obtidos em clínicas lotadas nos dias que antecediam a viagem, bem como de certificados de inspeção médica, que atestavam estarem livres de doenças contagiosas. Como se isso não bastasse, era necessário ainda um certificado de antecedentes penais, que assegurava às autoridades brasileiras que os recém-chegados não representavam uma ameaça à ordem pública. Cada etapa burocrática representava um novo obstáculo, que os emigrantes superavam com determinação, movidos pelo sonho de um futuro melhor.

A partir de abril de 1893, começaram a chegar às autoridades brasileiras relatos alarmantes enviados pelas representações diplomáticas no exterior. Essas comunicações informavam sobre as precaríssimas condições sanitárias nos principais portos europeus afetados por uma devastadora epidemia de cólera. Em resposta, as embarcações provenientes dessas regiões, ou aquelas que tivessem registrado qualquer caso da doença a bordo, passaram a ser admitidas nos portos brasileiros somente após cumprirem rigorosos protocolos sanitários. Esses incluíam a desinfecção completa da embarcação, assim como a limpeza de bagagens, roupas e objetos pessoais dos passageiros. Todas essas etapas ocorriam no Lazareto da Ilha Grande, para onde os navios deveriam se dirigir antes de seus ocupantes terem a permissão de pisar em terra firme.

Como medida preventiva adicional, o governo brasileiro decidiu suspender temporariamente a corrente migratória. A partir de 16 de agosto de 1893, foi proibida a entrada de imigrantes transportados por vapores oriundos da Itália e da Espanha, além de todos os navios provenientes de portos franceses e africanos do Mediterrâneo, declarados oficialmente como infectados pela epidemia.

Além disso, foi imposta uma quarentena rigorosa para embarcações com passageiros infectados ou mesmo sob suspeita de contaminação por cólera. Apenas no início de 1894, quando a epidemia começou a ser controlada, a situação se normalizou, permitindo a retomada gradual do fluxo migratório a partir de regiões consideradas livres da doença.

Entre as medidas profiláticas adotadas, uma das mais drásticas foi o chamado “torna-viagem”, que consistia no retorno forçado do navio ao porto de origem. Essa prática era aplicada em casos extremos, especialmente quando havia grande número de doentes e mortos a bordo. Infelizmente, foi exatamente essa a situação enfrentada por quatro vapores italianos que chegaram ao Porto do Rio de Janeiro entre agosto e setembro de 1893. Essas embarcações, carregadas de passageiros esperançosos em busca de uma nova vida, tiveram seus sonhos interrompidos de forma trágica, sendo obrigadas a empreender a dolorosa jornada de volta à Europa.

A travessia, no entanto, era um teste de resistência. A bordo dos vapores, as condições eram muitas vezes desumanas. Os porões abarrotados tornavam o ar sufocante, enquanto os alimentos e a água potável eram racionados. Doenças como o cólera ou a febre tifoide encontravam terreno fértil para se espalhar rapidamente entre os passageiros enfraquecidos. Qualquer pequeno sintoma era motivo de pânico, pois uma epidemia a bordo podia condenar não apenas os doentes, mas também os saudáveis ao infortúnio do "Torna Viagem".

Para os imigrantes que sonhavam com uma nova vida no Brasil, o retorno à Itália não era apenas um revés prático, mas um golpe moral e emocional devastador. A dura realidade de ver o horizonte do novo mundo desaparecer em direção oposta era difícil de suportar. Muitos voltavam ainda mais pobres e fragilizados do que quando partiram, tendo perdido suas economias, sua saúde e, em alguns casos, seus entes queridos durante a viagem. Ainda assim, o desejo de reconstruir suas vidas continuava a pulsar, mesmo que o caminho para o futuro permanecesse incerto e doloroso.


Nota do Autor


Escrever A Emigração Italiana, as Toneladas Humanas, o Cólera e o Torna Viagem foi um mergulho profundo nas páginas esquecidas da história, onde vidas inteiras são comprimidas em estatísticas e relatos oficiais. Este livro nasce do desejo de dar voz aos protagonistas de um dos maiores deslocamentos humanos da história moderna: os emigrantes italianos do final do século XIX e início do XX.


Em um período de intensa crise social, política e econômica, milhares de famílias italianas enfrentaram a fome, o desemprego e a falta de perspectivas, embarcando rumo ao desconhecido em busca de sobrevivência. Contudo, a travessia marítima muitas vezes transformava a esperança em tragédia. Navios superlotados, condições insalubres e epidemias, como o cólera, transformavam os sonhos em luto.


Ao retratar os desafios, as perdas e as conquistas desses emigrantes, procuro não apenas resgatar suas histórias, mas também refletir sobre a resiliência e a humanidade que resistem mesmo diante das adversidades mais brutais.


Este livro também revisita o conceito do torna viagem — o regresso, muitas vezes forçado ou desejado, à terra natal —, como símbolo de um ciclo interminável de saudade, fracasso e recomeço. Ele revela o peso do passado que esses indivíduos carregavam consigo, mesmo ao tentar construir um novo futuro.


Dedico este trabalho a todos os descendentes desses corajosos emigrantes, para que jamais esqueçam a jornada dos que vieram antes deles, e às almas daqueles que nunca chegaram ao destino, mas cujas histórias merecem ser contadas.


Espero que as páginas que seguem sirvam como um convite à reflexão e uma homenagem à força indomável do espírito humano diante do sofrimento.

Dr. Piazzetta