quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil



Beraldo Vanin – Entre Megliadino e o Café do Brasil

Beraldo Vanin nasceu em 1844, em Megliadino San Fidenzio, um vilarejo pobre da província de Pádua, onde o solo magro dava colheitas incertas e a fome rondava cada inverno. Desde menino aprendera a viver entre a terra ingrata e a dureza do trabalho. Aos vinte anos casou-se, construiu família, mas a morte prematura da esposa que tanto amava o deixaria marcado para sempre. Viúvo aos quarenta e três, com filhos já adultos e casados, carregava apenas a solidão e a lembrança de uma vida de sacrifícios que parecia não levar a lugar algum. Era o tempo em que rumores corriam pelos campos do Vêneto. Falava-se de um Brasil distante, coberto por fazendas de café que precisavam de braços. Homens enviados pela propaganda dos fazendeiros descreviam um paraíso de trabalho garantido, comida farta e contrato certo. Para quem, como Beraldo, já não via futuro na planície vêneta, a promessa soava como última chance. Não partia sozinho: vizinhos, primos e conhecidos também se alistaram para a Fazenda Esmeralda, nas proximidades de Piracicaba, São Paulo. A travessia, diziam, duraria poucas semanas. A realidade começou a mostrar sua face em Marselha, onde Beraldo embarcou em setembro de 1887. Ali, centenas de italianos se amontoavam em hospedarias fétidas, alimentando-se mal, dormindo em pisos imundos. Os navios prometidos não chegavam. Dias viravam semanas, e a cidade tornava-se um inferno de febres, fome e desesperança. Famílias inteiras, que haviam vendido tudo para emigrar, gritavam por socorro. Muitos sentiram-se traídos por agentes inescrupulosos. Alguns clamavam por Deus, outros maldiziam a hora em que haviam deixado o Vêneto. Beraldo resistia. A viuvez dera-lhe casca dura. Não tinha crianças pequenas para proteger, apenas a própria vida para conduzir, e uma obstinação que o fazia suportar o purgatório de Marselha. Sabia que, custasse o que custasse, embarcaria. Quando enfim o navio levantou âncora, a esperança dividia espaço com o medo. A embarcação à vela balançava sobre o Atlântico como uma folha ao vento. Nos porões úmidos, o cheiro de suor e de doença sufocava. A comida escasseava, a água adoecia, corpos se enfraqueciam. Crianças tossiam até a morte. Mulheres choravam em silêncio. E cada novo dia parecia um milagre de sobrevivência. Beraldo, calejado pela vida, mantinha-se de pé. O desembarque no porto do Rio de Janeiro foi um choque: o ar denso e quente, os mosquitos que zuniam sem trégua, o idioma incompreensível, o olhar desconfiado dos brasileiros. Mas a viagem ainda não terminara. No dia seguinte embarcou em outro vapor com destino ao porto de Santos, já na província de São Paulo. Conduzidos para um trem subiram pelo interior até a região de Piracicaba onde ficava a Fazenda Esmeralda e um contrato de quatro anos os esperava. A realidade logo esmagou as ilusões. Os dias eram de trabalho sem descanso sob o sol implacável. Os feitores vigiavam os colonos como se fossem escravos — e, em muitos aspectos, ainda eram. A cada semana, o saldo das contas deixava todos presos à fazenda, em dívidas que nunca se quitavam. O sonho transformava-se em cativeiro. Beraldo sentiu o corpo se quebrar, os calos se abrirem, a febre da terra arder-lhe nas noites sem sono. Mas não cedeu. Sobreviveu onde outros tombaram. Guardava em silêncio a lembrança da esposa, como se a presença dela lhe desse forças para continuar. Aos domingos, sob a sombra das árvores, reencontrava sua identidade. Ali, entre conterrâneos, falava em dialeto vêneto, partilhava memórias de Megliadino, rezava pela alma dos mortos. Muitos abandonaram o contrato e fugiram rumo ao sul. Beraldo permaneceu. Cumprir o pacto, pensava, era a única forma de não deixar sua vida em vão. Quando o contrato venceu, em 1891, não havia fortuna à sua espera. Mas havia experiência, uma pequena soma de dinheiro e uma certeza: nada mais o prendia à Itália, os filhos com suas famílias tinham emigrado para outros lugares distantes. O futuro, ainda que duro, estava no Brasil. Nos anos seguintes, trabalhou em propriedades menores da região de Piracicaba. Tornara-se um homem respeitado, que ajudava recém-chegados a enfrentar patrões, calcular pesos de sacos de café e resistir a injustiças. Para muitos imigrantes, Beraldo era referência — um viúvo solitário, mas com a autoridade de quem havia suportado o pior. Em 1896, uniu-se a outros colonos que arrendaram terras junto ao rio Corumbataí. Pela primeira vez plantava para si mesmo. Milho, feijão e mandioca brotaram da terra, e a pequena propriedade deu-lhe algum ganho. Sentiu, então, um sabor novo: a liberdade. O tempo correu. Aos sessenta anos, já não era apenas mais um colono. Era lembrado pela retidão, pela calma, pela capacidade de unir homens em torno do trabalho e da dignidade. Guardava sempre no bolso uma pequena imagem da Virgem trazida de Megliadino, último elo com a terra natal e com a esposa perdida. Nunca voltou a casar. Nunca mais veria os filhos. Na virada do século, Beraldo já mal podia trabalhar. Limitava-se a orientar os jovens e a narrar histórias da travessia. Tornara-se um símbolo vivo da primeira geração que chegara ao Brasil nos porões infectos de navios franceses. Em 1911, com sessenta e sete anos, Beraldo Vanin morreu em silêncio, numa casa de madeira que ajudara a levantar, cercado por vizinhos que o consideravam parte da família. Não deixou riquezas nem descendentes no Brasil. Mas deixou algo mais forte: a memória de um homem que atravessou oceanos, resistiu à miséria e se agarrou à vida com obstinação. Seu nome não entrou nos livros oficiais. Mas entre os imigrantes, tornou-se lembrança de coragem. Beraldo era a ponte invisível entre o Vêneto e o Brasil, um dos muitos homens simples que não buscavam glória, apenas sobrevivência — e que, sem perceber, ajudaram a erguer o alicerce da nova pátria. 

Nota do Autor

A história real do emigrante italiano Beraldo Vanin nasceu do desejo de dar voz aos milhares de emigrantes anônimos que deixaram o Vêneto no século XIX em busca de sobrevivência nas terras distantes do Brasil. Inspirada em cartas e documentos da época, custodiados em um grande museu paulista, ela reconstrói, em forma literária, a vida de um homem simples de Megliadino San Fidenzio, viúvo e já maduro, que atravessou o oceano em 1877 e encontrou nos cafezais paulistas sua nova pátria. A escolha por Beraldo não é fortuita: ele representa aqueles que não aparecem nos grandes livros de história, mas que foram fundamentais para a formação da sociedade brasileira. Sua trajetória reúne a dor da partida, a dureza da travessia, a exploração nos contratos de colonato e, sobretudo, a obstinação silenciosa que marcou a geração de imigrantes italianos. Ao escrever sobre Beraldo, busquei não apenas resgatar o drama individual, mas também lançar luz sobre a coragem coletiva de homens e mulheres que, mesmo sem riquezas ou glórias, deixaram um legado de dignidade e esperança.

Dr. Piazzetta


Tera Promessa



 

Tera Promessa

"Cara mama, el lavor che ghe ze qua el ze duro, ma el sònio de conquistar un peseto de tera el ze un spenton par noialtri ´ndar avanti. Dighe a tuti de spetar, che presto mando schei par farghe vegnir anca voaltri"


Autono de 1886, ´ntel interior del comune de Roncoferraro, in Lombardia, la nèbia calava su i vigneti strachi come un velo de resignassion. Le viti rendeva manco ogni ano, e la fame la se insinuava tra le ùmili case de la vila come na vìsita che no 'ndava via mai. Il paesàgio, che prima el zera vivo, adesso el pareva segnà dal tempo apàtico. Le foie de le vite, che ´na volta le brilava soto el sole, le pendea scolorì e seche, refletendo el desespero sussurante de na tera straca. La tera, castigà da ani de laor sensa sosta, la emanava un odor aspro, come se anca lei se lamentasse de la so decadensa. I campi intorno a la vila, dipinti de ocri e grisi, contava la stòria de bataie perse contra la seca. I fiumeti, che prima serpeiava tra le coline, i zera oramai ridoti a fili de aqua, mentre i possi se secava pian pian, aumentando l'ánsia de i contadin. Le piante da fruto, che ´ntei ani boni le zera promesse de abondansa, le sostenea soli rami sparsi e fruti sechi.

La nèbia, densa e contìnua, la pareva portar su de lei el peso de un mondo in sospenssion. Lei smorsava i rumori, rendendo ogni sussuro un eco lontan. Soto sto manto nebioso, la vila la pareva quasi fantasma, con le so case de piere vècie e le téie coperte de musgo, sfidando el tempo e le intempèrie. Le fumarele dai camini mandava in ària spirai de fumo picinin, segno che ghe zera ancora vita, malgrado i problemi. Le stradete de tera, segnà de solchi profondi e coperti de foie morte, i disegnava labirinti che spariva lontan. Ogni curva pareva contar segreti de generassion passà, che gavea lassià le so impronte ´nte sta tera. Ma malgrado l’abandono che se insinuava, ghe zera na belessa strana ´ntel contrasto tra la decadensa naturale e la resistensa del posto, come se la vila rifiutasse de cader ´ntel completo sconforto.

El vento fredo, che vegniva dai monti lontan, el portava con se lori sussuri costanti, come se zera un aviso che l'inverno el stava rivando. E con l’inverno, le promesse de zorni ancora pì duri. I celi, sempre coperti, raramente lassiava vardar el blu. Quando el sole finalmente compariva, el zera pàlido e fugace, incapase de scaldar la fredura che dominava la tera e le ànime. 

In quel angolo dimenticà de Lombardia, l’autono no zera solo na staion: el zera un stato d’ànimo. Ogni foia che cascava da le piante e se mescolava a la tera pareva sussurar el siclo inevitàbile de la vita e de la morte, de la speransa e del declino. E cusì, soto la nèbia e el peso del tempo, Roncoferraro resistava, anche se trabalante, al inevitàbile.

Luciano Veronetti, che gaveva 24 ani, no el vedeva pì futuro in sta tera ingrata. El pare, Giuseppe, ferito in ´na gamba in una guera che nesun se ricordava pì, el maledisseva el destin de l’Itàlia unificà. La mare, Elena, la nascondeva la tosse con el fasoleto par no preocupar i fiòi. Ma lei preocupava. El zorno che ´na lètara la rivò da l’Amèrica, scrita dal zerman de secondo grado Matteo, oramai sistemà ´ntel interior del Brasil, tuto cambiò. La lètara parlava de tere fèrtili, lavoro abondante e, el pì tentador, la possibilità de possedere sta tera dopo arquanti ani. Ai piè de la stufa spenta, Luciano el dise:

"Mi vao. Se restemo qua, moriremo tuti de fame."

El vapor "La Bretagne", vècio e stracolmo, el partì da Génova in aprile del 1887. Su la nave, Luciano el ga conossesto la zòvane Serafina Calderoni, na sarta de la sua stessa provìnsia, con i òci de inverno e coraio de marinaio. In meso al mal de mar, ai piansi e a le preghiere, ´na promessa la ze nassesta: se lori i sopraviveva al viaio, lori i ripartiva insieme. Dopo sèdese zorni, el còlera el tocò un terso de i passegieri. I putèi cascava. Un prete, anche lu passagiero, el dava absolvission in fila. Ma el destin volea altro par Luciano.

Quando lori i ga rivà al Rio de Janeiro, i òci de Serafina i brilava febrili, e el mèdico de la "Hospedaria dos Imigrantes" el ze stà chiaro:

"No ghe farà pì de do giorni."

Luciano el restò. Visin a lei. La sepolì soto la tera rossa de un cimitero improvisà e, par lei, el ga prometesto de viver do vite.

El so destin final el zera ´na nova colónia de imigranti, ´nte ´na zona de foresta ´ntel ovest de São Paulo. Con altri 37 imigranti, Luciano el se ga messo ´ntela foresta con la manara in man e na vècia fotografia scolorà de Serafina ´ntela scarsela. Le promesse del governo no zera altro che mese verità. I coloni i pagava par tuto, da le semense a l´atresi di laoro. La tera la zera bona, ma la solitùdine la zera pedo de la fame. E in pì, i ghe zera i agenti de ànime — zente che trufava i novi arivà, vendendo loti falsi e sparendo de note. Luciano el ze stà ´na de le loro vìtime. El ga perso tuto. Ma no la speransa.

Dopo do ani, Luciano el zera conossù ´nte la colónia come "el testardo". El fondò la Vila Veronetti, un grupeto de diese case costruì con le so man. El guidò na rivolta contro un fator violento de la proprietà visin, afrontando el paron con l’aiuto de coloni tedeschi e slavi. Da lì el ze nassesto un imbrion de libartà.

Zera in quei ani che el ga conossesto Bianca Fiorelli, ´na védova de un toscano morto de febre zala. Insieme, i ga ripartì con el sònio de ´na famèia.

E a Nadal del 1892, con i campi pien de girassoi, Luciano el scrisse a la so mare na nova lètara:

"Cara mama, le tere qua mi ga dato pì de quel che prometea. No el ze un paradiso, ma la ze de noialtri. Vegni, mama. Vegni, che finalmente ghe ze posto anca par ti."

Luciano Veronetti el morì ´ntel 1923, a 61 ani, sul pòrtego de la so casa de legno. Lu el zera sircondà dai so fiòi, dai so nipoti e dai visin, che i lo onorava fin i so ùltimi sospiri. El no ga tornà mai in Itàlia, ma parlava de lei con la teneressa de chi ga ´ntel cuor el primo amor. Par lu, la tera natia no la zera solo un posto lontan: la zera un sìmbolo de radise profonde, de ricordi de un tempo che mai se podaria ripeter.

Incòi, la vècia colónia, che la ze diventà na pìcola sità, la ga ´na piassa dedicà a Luciano Veronetti, un omaio par quelo che tanto el ga lutà par far cresser e diventà un comune. Là, tra i rumori diàrio, i so dissendenti i conserva la memòria de so antepassà, narando la so saga come un ino al sacrifìssio, a la fede e al amor che ga traversà el tempo e el mar.


Nota de Autor

Questo testo el ze parte del libro "Tera Promessa". I personagi che se presenta qua i ze fruto de l'imaginassion, ma le stòrie e i fati che i ghe sta drio i ze radicà in eventi reali. Sto laoro no el ze altro che un omaio sincero ai nostri antepassà, quei emigranti italiani che, con el coraio ´ntel peto e la fede ´ntel doman, i ga lassià la tera madre par afrontar l'ignoto su sta tera nova e lontan. Ogni parola scrita qua la ze un tentativo de tramandar la memòria del loro sacrifìssio, de la loro resiliensa e de la forsa che i ghe trasmisse a chi che vien dopo. Che sto libro possa ricordar no solo le loro soferense, ma anche la speransa e l'eredità de dignità che i ghe lassà a noaltri.

Con profonda gratitùdine e rispeto,

Dr.Piazzetta