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domingo, 5 de outubro de 2025

Da Terra do Pó às Terras Vermelhas de Rio Claro – De Ramodipalo a Mombuca


 

Da Terra do Pó às Terras Vermelhas de Rio Claro 

De Ramodipalo a Mombuca


O ano de 1886 trouxe consigo um vento gelado sobre os campos alagadiços de Ramodipalo Rasa, pequena localidade do município de Lendinara, na província de Rovigo. Domenico Azzolino, nascido em 1º de novembro de 1861, sabia que sua vida já estava marcada pelas águas do Pó e pela miséria sem fim que assolava aquelas terras. Sua esposa, Giudite Osti, nascida em 8 de setembro de 1867, compartilhava da mesma resignação. O solo parecia fértil apenas para a fome: milho mirrado, trigo que se perdia com as chuvas, e os vastos arrozais de Ramodipalo, embora abundantes, raramente beneficiavam os camponeses, que trabalhavam neles apenas como diaristas, sem jamais provar da prosperidade que produziam. Nada havia para os filhos pequenos, e nada haveria no futuro. A emigração não era escolha, era a última esperança. A decisão foi tomada como se fosse sentença. Venderam o pouco que tinham, juntaram as moedas, despediram-se da antiga casa de pedra e barro que guardavam memórias e partiram. A travessia do Atlântico começava.

No porto de Gênova, uma multidão de camponeses amontoava-se em filas desordenadas. Homens de mãos calejadas, mulheres de olhos cansados, crianças agarradas às saias das mães. Os navios eram fortalezas flutuantes, carregados não apenas de corpos, mas de ilusões. Domenico embarcou com Giudite e os dois filhos pequenos, levando na mala alguns utensílios, uma muda de roupas e um punhado de sementes de milho, como se pudesse, com aquilo, transportar um pedaço da pátria. A bordo, o tempo dissolvia-se em dias intermináveis. O espaço exíguo no porão cheirava a suor, maresia e doença. A comida, distribuída em porções miseráveis, misturava caldo ralo com pedaços de carne salgada. O mar, ora espelho, ora monstro, lembrava-os de que a viagem não tinha retorno. Crianças choravam noite adentro, velhos gemiam com febres. A cada enterro no oceano, quando um corpo era lançado às ondas envolto em lençóis brancos, o silêncio dos passageiros tornava-se mais pesado que o barulho das ondas.

Quando, finalmente, a silhueta do litoral brasileiro surgiu no horizonte, uma onda de alívio percorreu os emigrantes. Mas o desembarque em Santos trouxe mais medo que esperança: palmeiras se erguiam como sentinelas estranhas, o calor sufocava, os mosquitos zuniam em enxames. Dali, reunidos em um grande grupo, foram levados de trem para o interior de São Paulo, até Rio Claro, onde a Fazenda Bela Vista os aguardava.

A fazenda, propriedade dos irmãos Ribeiro, brasileiros de origem portuguesa, era um verdadeiro império de café. Fileiras intermináveis de pés verdes cobriam o horizonte, como um mar vegetal sem fim. Mas por trás da grandiosidade escondia-se a realidade brutal: trabalho incessante, dívidas no armazém da fazenda, alojamentos improvisados. Domenico e Giudite não tiveram escolha. Assinaram com as mãos trêmulas o contrato de colonos, sem entender cada cláusula, mas conscientes de que não havia outra saída.

A lida começava antes da luz da aurora, quando o sino da fazenda convocava os trabalhadores. Os colonos avançavam para o campo com enxadas, sacos e cestos, sob a vigilância dos feitores. O calor do meio-dia queimava a pele até abrir feridas; a chuva transformava o terreno em lama onde se afundava até os joelhos. O café exigia força, paciência e uma resistência quase sobre-humana.

Foi nesse ambiente que a tragédia se aprofundou. Domenico e Giudite já haviam perdido dois filhos na Itália, mas não imaginavam que as febres do Brasil arrancariam deles também os dois pequenos que haviam trazido. Enterraram as crianças em covas rasas, sob uma cruz improvisada, enquanto o trabalho não cessava. O luto era sufocado pelo toque do sino, que obrigava a todos a voltar ao campo.

A vida, porém, teimava em continuar. Vieram novos filhos: Guerino, Domingos, José, Albino e Teresa. Cada nascimento era uma vitória contra a terra hostil. Mas as dívidas cresciam no armazém da fazenda, onde cada saco de farinha, cada punhado de sal, era anotado com rigor no livro dos feitores. Para escapar à ruína, Domenico reduziu o sustento da família ao essencial. A polenta tornou-se o alimento de cada refeição, acompanhada apenas pelo suco das laranjas que apanhavam. O milho para a farinha ele conseguia trocando milhete no engenho de açúcar da Fazenda Itaúna.

Ainda assim, persistiam. Com permissão dos patrões, criavam dois porcos e algumas galinhas. Giudite enchia os quintais de vozes infantis e de canto de pássaros. O pouco transformava-se em muito, pela obstinação com que se agarravam à sobrevivência.

Anos de suor, silêncio e economia renderam frutos. Domenico e Giudite conseguiram juntar o suficiente para abandonar a condição de colonos assalariados. Compraram um terreno de terra fértil em Mombuca, não muito distante. Ali, pela primeira vez, respiraram o ar da liberdade. Construíram uma casa simples, cercada de lavouras próprias, e receberam de volta os filhos já casados, que ergueram suas famílias ao redor. Netos correram pelo pátio de terra batida, enchendo de risos o espaço que antes fora marcado pela morte.

Somente Teresa, a filha, não os acompanhou. Casada com Angelo Marino, também de origem italiana, fixou-se na Fazenda Santa Gertrudes, onde o marido trabalhava como um capataz. Ainda assim, a união familiar resistia à distância, como um fio invisível que mantinha todos ligados àquele núcleo fundado pelo sacrifício dos pais.

Em Mombuca, a vida encontrou um ritmo mais lento, sem, contudo, perder o peso da luta cotidiana. A pequena propriedade não lhes ofereceu riqueza, mas deu-lhes autonomia. Ali, já não eram obrigados a responder ao sino dos feitores, nem a comprar fiado no armazém da fazenda. Plantavam o que precisavam, criavam animais, e o que sobrava era trocado ou vendido nas feiras da região.

O tempo corria, trazendo casamentos dos filhos e o nascimento de netos que enchiam o terreiro com brincadeiras barulhentas. A casa, feita de madeira e barro, nunca foi grande, mas era suficiente para abrigar visitas frequentes. Ao redor, ergueram-se outras moradias simples, construídas pelos filhos, até que o pequeno núcleo familiar tomou ares de comunidade.

A velhice, porém, não trouxe apenas satisfação. Domenico carregava nos ossos o cansaço de décadas de trabalho duro, e seus silêncios prolongados denunciavam as lembranças que nunca se apagavam: a travessia pelo oceano, a fome dos primeiros anos e, sobretudo, os filhos perdidos ainda pequenos. Giudite, mais resistente, sustentava a rotina da casa, mas também se deixava vencer por recordações amargas, especialmente ao recordar os enterros apressados em solo estrangeiro.

As noites eram longas. Sentados sob o alpendre, ouviam os sons da mata misturados ao burburinho distante das vozes dos filhos. Às vezes, o silêncio pesava tanto quanto o trabalho dos tempos de colônia. Não falavam das dores, mas elas estavam presentes, invisíveis, em cada olhar cansado, em cada suspiro.

Aos poucos, Domenico e Giudite passaram a ser vistos como referências entre os filhos e vizinhos. Não porque fossem figuras grandiosas, mas porque haviam sobrevivido a tudo: ao desterro, à perda, ao trabalho sem fim. Tornaram-se testemunhas vivas de uma época em que milhares haviam cruzado o mar, e em cada ruga de seus rostos havia a marca dessa travessia.

Quando os anos avançaram ainda mais, e a vida começou a se esvair em silêncio, o casal já estava cercado por gerações que não haviam conhecido Rovigo, nem as águas do Pó, nem o medo dos primeiros dias no Brasil. Esses descendentes corriam livres pelos campos de Mombuca, alheios ao peso da história. Para Domenico e Giudite, essa era talvez a única vitória possível: deixar para os filhos e netos uma terra onde já não fosse preciso recomeçar do nada.

E assim se encerrou o percurso de dois imigrantes comuns, nem mais fortes nem mais fracos do que tantos outros, que viveram e morreram no interior paulista. A vida deles não foi marcada por glórias, mas por sobrevivência. E, no silêncio das suas memórias, encontrava-se a verdade mais dura e mais simples da grande imigração italiana: abandonar tudo, perder muito e, ainda assim, permanecer.

Nota do Autor

A trajetória de Domenico Azzolino e Giudite Osti não foi isolada. Entre 1870 e 1920, mais de um milhão e meio de italianos atravessaram o Atlântico em direção ao Brasil, muitos deles vindos do Vêneto, da Lombardia e do Piemonte. Assim como eles, deixaram para trás aldeias pobres, campos alagadiços ou montanhosos, e encontraram nas fazendas de café do interior paulista uma nova forma de sobrevivência. A vida dos Azzolino refletia a experiência de milhares: contratos mal compreendidos, dívidas no armazém, a fome vencida com polenta, a perda de filhos ceifados por doenças tropicais. Mas também revelava a lenta conquista da terra própria, a criação de novas gerações enraizadas no Brasil e a construção de pequenas comunidades familiares que se multiplicaram ao redor das antigas fazendas. Seus descendentes, espalhados hoje por diferentes cidades e regiões, carregam em silêncio essa herança feita de trabalho, sacrifício e persistência. E, na memória coletiva da imigração italiana, histórias como a de Domenico e Giudite são lembradas não como epopeias grandiosas, mas como a essência mesma da sobrevivência: homens e mulheres comuns que, ao abandonar sua terra natal, ajudaram a transformar o Brasil em um país de muitas pátrias.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta


quarta-feira, 14 de maio de 2025

O Destino dos Pisello: Uma Longa Jornada de Ramodipalo ao Brasil


O Destino dos Pisello 

Uma Longa Jornada de Ramodipalo ao Brasil

No coração da província de Rovigo, cercada por vastos campos alagados que brilhavam sob o sol como espelhos líquidos, ficava Ramodipalo. Esta pequena localidade, pertencente ao comune de Rasa, era o cenário onde Antonio Pisello nasceu e viveu, moldado pela vida dura da lavoura de arroz. As terras férteis às margens do rio Pó eram tanto uma bênção quanto uma maldição: ofereciam sustento para muitos, mas a um custo físico e emocional quase insuportável.

Antonio trabalhava como empregado diarista em uma vasta propriedade rural que parecia infinita aos olhos das crianças. Os terreiros alagados, onde as águas refletiam o céu, davam lugar a um espetáculo árduo e metódico. O plantio do arroz exigia um esforço conjunto, onde as mondine – mulheres de todas as idades – dominavam o cenário. Enfileiradas no barro, ajoelhadas na água até os tornozelos, elas cantavam para aliviar o peso das horas. Era um trabalho desgastante, mas também um ponto de encontro, onde amizades e, ocasionalmente, romances floresciam.

Foi em uma dessas lavouras que Matteo, filho de Antonio e Teresa Maria Formighieri, conheceu Lucia, uma mondine vinda de Badia del Polesine, uma comuna vizinha. Matteo era um jovem de constituição forte, suas mãos calejadas denunciando a longa jornada que começara desde criança, quando ajudava o pai na colheita. Lucia, por outro lado, possuía uma aparência delicada, mas sua força interior era evidente na forma como enfrentava o trabalho de mondina e a distância de sua família com coragem. O casamento dos dois uniu não apenas duas vidas, mas também as esperanças de gerações futuras.

A primeira década do casamento de Matteo e Lucia foi marcada por desafios. O casal viveu em Ramodipalo, na casa do pai Antonio, onde Matteo continuava trabalhando nas terras alagadas do mesmo senhor, agora, ele como responsável por uma equipe de trabalhadores. A chegada de Domenico Pisello, um dos filhos do casal, trouxe alegria, mas também preocupações. O sonho de dar aos filhos uma vida melhor pairava sobre os dois como uma promessa silenciosa. Domenico cresceu em um ambiente onde o trabalho braçal era a norma, mas também onde valores como a resiliência e o espírito comunitário moldaram sua personalidade.

Quando Domenico chegou à idade adulta, ele se casou com Theresia Bernardinello, uma jovem mulher de espírito prático e disposição trabalhadora. Pouco depois, a procura de melhor trabalho, o casal decidiu deixar Ramodipalo. A decisão de se mudar para Villa Bartolomea, na província de Verona, não foi fácil, mas parecia uma chance de fugir das limitações da vida nas plantações de arroz. Na nova cidade, Domenico tornou-se um scariolante, trabalhando duro com um carrinho de mão e uma pá na manutenção das margens do rio Pó, fazendo parte de uma esquadra de trabalhadores contratados pela administração municipal. O trabalho era extenuante, mas o jovem Domenico encontrou forças junto a sua esposa.

A vida em Villa Bartolomea trouxe seus próprios desafios, mas também novas oportunidades. Foi ali que nasceram vários dos seus filhos, entre eles Angelo e Luigia. A esperança por um futuro melhor, no entanto, parecia constantemente distante. Era o ano de 1876 e as histórias cada vez mais frequentes de terras promissoras do outro lado do Atlântico começaram a atrair os Pisello, assim como centenas de outras famílias. A promessa de trabalho, terra e liberdade no Brasil chegou a eles como um sussurro insistente.

A decisão de emigrar foi tomada com um misto de esperança e pesar. Para Domenico e Theresia, deixar Ramodipalo significava abandonar o solo natal, onde gerações de suas famílias haviam cultivado raízes profundas. Ao mesmo tempo, representava uma chance de recomeço, um vislumbre de prosperidade no outro lado do Atlântico, longe das dificuldades que assolavam a Itália naquele final do século XIX. Com seus filhos a tiracolo e os poucos pertences que puderam levar, embarcaram com destino ao Brasil, sonhando com as promessas da Colônia Nova Itália, em Morretes, uma pequena cidade próxima ao porto de Paranaguá, no estado do Paraná.

A travessia foi longa e extenuante. O navio abarrotado de famílias que compartilhavam sonhos similares também era palco de incertezas, doenças e medos. Após uma breve parada no movimentado porto do Rio de Janeiro, onde muitos imigrantes desembarcavam deslumbrados e outros aterrorizados pela imensidão da nova terra, Domenico e sua família seguiram viagem até Paranaguá. Ali, a visão do mar calmo contrastava com o tumulto interior de quem pisava em solo desconhecido pela primeira vez.

Ao chegarem à Colônia Nova Itália, a realidade se apresentou de forma crua e implacável. O local, embora rico em promessas, revelava-se mal estruturado. O terreno era pedregoso e, em algumas áreas, alagadiço, exigindo um árduo trabalho de drenagem e preparação para o cultivo. O calor sufocante e a umidade constante pareciam estar em conluio com o ambiente para dificultar a adaptação dos recém-chegados. Mosquitos e outros insetos prosperavam ali, espalhando doenças como a malária e a febre amarela, que transformavam cada dia em uma luta pela sobrevivência.

Distante dos grandes centros consumidores e com pouca infraestrutura para escoar a produção agrícola, a colônia não conseguia atingir a autossuficiência esperada. Muitos colonos se viam forçados a enfrentar jornadas exaustivas para vender seus produtos a preços irrisórios. As dificuldades financeiras logo corroeram o espírito de comunidade que, no início, unia os imigrantes em torno de seus sonhos compartilhados.

Para Domenico e Theresia, cada dia trazia novos desafios. A saudade da Itália, das terras familiares e dos entes queridos que haviam ficado para trás, era uma constante. A precariedade da vida na colônia forçava a família a rever suas expectativas e estratégias. Quando a Colônia Nova Itália sucumbiu à falência, a maioria dos colonos se viram obrigados a migrar novamente, em busca de terras mais férteis ou oportunidades em centros urbanos.

A história de Domenico e Theresia não foi apenas de luta e dificuldades, mas também de determinação e aprendizado. Mesmo em meio às adversidades, eles buscaram transformar as lições da terra inóspita em sementes de esperança para o futuro de seus filhos. Os habitantes da colonia Nova Itália, então, se viram obrigados a procurar novos destinos em outras partes do Paraná, sendo Curitiba, com seu clima ameno e montanhoso a mil metros de altitude, uma das opções mais procuradas. Em busca de uma vida melhor, embarcaram no trem aproveitando o apoio oferecido pelo governo da província do Paraná e começaram sua ascensão pela imponente Serra do Mar, um maciço formado por altíssimas montanhas cobertas por uma floresta densa e quase intocada, onde a natureza ainda preservava seu esplendor intocado.

Em Curitiba, foram instalados na Colônia Dantas – hoje o próspero bairro da Água Verde –, Domenico reinventou-se novamente, desta vez como carroceiro e pequeno comerciante. Suas experiências como scariolante no Pó o haviam preparado para o trabalho pesado, mas foi seu espírito empreendedor que o ajudou a estabelecer um pequeno armazém. Ali, a família Pisello encontrou finalmente um porto seguro.

Das Promessas ao Real: O Desafio da Colônia Nova Itália

Quando o vapor que transportava os Pisello atracou no porto de Paranaguá, o céu estava encoberto por nuvens densas, anunciando uma chuva iminente. O ambiente era uma mistura de excitação e tensão. A viagem havia sido extenuante, tanto física quanto emocionalmente. Theresia segurava firmemente as mãos dos filhos, enquanto Domenico, com um olhar firme, mantinha a cabeça erguida. Desembarcar em terras brasileiras era o primeiro passo de uma longa caminhada rumo a um futuro incerto.

Ao chegarem à Colônia Nova Itália, a realidade se mostrou bem diferente das histórias que haviam ouvido. O local, apesar de exuberante em vegetação e beleza natural, carecia de infraestrutura básica. As estradas não passavam de trilhas lamacentas, e as moradias consistiam em barracos improvisados alguns com telhados precários. Domenico e Theresia se esforçaram para manter o espírito positivo, mas o peso das dificuldades logo começou a se fazer sentir.

O trabalho na colônia era incessante. Domenico dedicava suas horas à lavoura, desbravando o terreno com ferramentas rudimentares. A terra, embora fértil, exigia um esforço hercúleo para ser transformada em campos produtivos. Theresia, por sua vez, cuidava da casa improvisada enquanto se preocupava com a saúde dos filhos, frequentemente ameaçada por febres e doenças tropicais.

Havia também a distância emocional que separava os Pisello de suas raízes. A saudade de Villa Bartolomea, com suas planícies tranquilas e o antigo canto das mondine, tornava-se mais aguda nas noites silenciosas da colônia. Contudo, entre os momentos de exaustão, pequenas vitórias surgiam: o primeiro lote de milho colhido, a construção de um abrigo mais resistente, e a solidariedade entre os colonos, que criava um senso de comunidade.

Foi durante uma noite de conversa à luz de um lampião que Domenico tomou a decisão que mudaria o rumo da família. Enquanto os filhos dormiam, ele discutiu com Theresia a possibilidade de deixar a colônia. “Não foi para isso que cruzamos o oceano,” disse ele, com uma firmeza em sua voz que não admitia dúvidas. “Se ficarmos aqui, nossas crianças não terão um futuro. Precisamos ir para onde haja trabalho, onde possamos recomeçar.”

Curitiba era o destino escolhido. A cidade, embora ainda em desenvolvimento, oferecia mais oportunidades do que a isolada colônia. A travessia até a capital foi mais uma vez marcada por desafios. A estrada era longa e cheia de imprevistos, mas os Pisello chegaram determinados a transformar a adversidade em prosperidade.

Recomeço na Colônia Dantas: A Ascensão dos Pisello

Instalados pelo governo da província na Colônia Dantas, hoje o bairro da Água Verde, Domenico encontrou trabalho como carroceiro. A cidade, com suas ruas em expansão e um comércio crescente, exigia homens capazes de transportar mercadorias e materiais de construção. Com uma carroça simples e um cavalo velho, Domenico começou sua jornada de reinvenção. Ele saía ao amanhecer e retornava ao anoitecer, coberto de poeira, mas com a satisfação de que cada dia de trabalho era um passo em direção à estabilidade.

Com ajuda de Theresia, montou um pequeno armazém. O espaço, inicialmente modesto, logo se tornou um ponto de encontro para os moradores da região. Ela vendia de tudo um pouco: desde mantimentos básicos até ferramentas, e usava sua simpatia e habilidade para administrar as contas. Era uma mulher de visão prática, que enxergava nos negócios uma maneira de garantir o futuro da família.

Os filhos de Domenico e Theresia cresceram nesse ambiente de trabalho duro e solidariedade. Angelo, o mais velho, começou a ajudar o pai na carroça ainda jovem, enquanto Luigia aprendia com a mãe a organizar o armazém e a atender os fregueses. A educação formal era limitada, mas a escola da vida ensinava lições valiosas sobre resiliência, união e perseverança.

Com o passar dos anos, os Pisello conquistaram algo que parecia impossível quando deixaram Ramodipalo: respeito e estabilidade. O armazém de Theresia tornou-se um negócio próspero, e Domenico conseguiu comprar uma nova carroça e melhorar suas condições de trabalho. Mais do que bens materiais, a família encontrou em Curitiba uma sensação de pertencimento e propósito.

Consolidando Raízes: A Transformação dos Pisello

Com o passar dos anos, a família Pisello foi criando a sua história em Curitiba, fortalecendo seus laços com a comunidade da Colônia Dantas e moldando o futuro com trabalho árduo e visão. Domenico, agora em seus cinquenta e poucos anos, carregava no rosto as marcas de um homem que conheceu as agruras da vida, mas também a satisfação das conquistas. Seu trabalho como carroceiro havia se expandido; além de transportar mercadorias, ele passou a fornecer materiais de construção para pequenas obras na cidade.

Theresia, por sua vez, transformou o armazém em um dos mais conhecidos do bairro. A fachada simples escondia um negócio que prosperava graças à sua habilidade de entender as necessidades dos clientes. As prateleiras abarrotadas de produtos variados eram uma prova de sua capacidade de adaptação ao mercado. Ela fazia questão de ensinar aos filhos que cada moeda tinha valor, mas que a honestidade valia ainda mais.

Os filhos, criados em um ambiente de disciplina e solidariedade, seguiam os passos dos pais. Angelo, o mais velho, demonstrava um espírito empreendedor. Aos 18 anos, começou a colaborar mais ativamente no armazém, trazendo ideias para expandir o negócio. Luigia, com sua doçura e inteligência, ajudava a mãe na contabilidade e aprendia rapidamente o ofício do comércio. Já os mais novos, embora ainda dedicados aos estudos, estavam sempre prontos para contribuir quando necessário.

Desafios e Superação

O progresso, no entanto, não veio sem desafios. Em um período de fortes chuvas, uma enchente atingiu a Colônia Dantas, danificando casas e comércios, incluindo o armazém dos Pisello. Quando Domenico e Angelo abriram as portas após a tempestade, encontraram o estoque encharcado e a estrutura comprometida. Foi um golpe duro, mas não o suficiente para abalar a determinação da família.

“Vamos reconstruir,” disse Domenico com firmeza, enquanto Angelo concordava, já calculando os custos e pensando em maneiras de recuperar as perdas. Theresia, embora abalada, rapidamente se reorganizou para reabastecer o armazém. Luigia liderou uma campanha de ajuda entre os vizinhos, que uniram forças para limpar os estragos e apoiar uns aos outros.

A enchente, longe de ser uma tragédia que os derrotaria, acabou fortalecendo os laços da comunidade e provando mais uma vez que a união era a chave para superar qualquer adversidade. Dentro de poucos meses, o armazém estava funcionando novamente, mais forte e melhor organizado.

O Legado dos Pisello

À medida que os anos se passaram, Domenico e Theresia começaram a colher os frutos de sua dedicação, embora o caminho até ali tivesse sido repleto de sacrifícios. A terra, que no início parecia tão hostil, tornou-se mais generosa com o passar do tempo. A cada estação, eles aprendiam a lidar melhor com o solo pedregoso, a desviar os excessos da chuva e a combater as pragas com estratégias engenhosas que misturavam conhecimento ancestral e improvisação. Mais do que prosperidade material, porém, era a união familiar que os sustentava.

Os filhos, outrora crianças frágeis em um ambiente implacável, floresceram sob os valores que Domenico e Theresia lhes incutiram: trabalho árduo, resiliência e, acima de tudo, a força do vínculo familiar. Angelo, o mais velho, mostrou desde cedo um espírito empreendedor. Inspirado pelas idas e vindas de produtos entre a colônia e o porto, teve a ideia de abrir um pequeno armazém em um bairro próximo. Com a ajuda do pai, ergueu o negócio quase do nada, começando com um balcão improvisado e meia dúzia de produtos. Com o tempo, o armazém tornou-se um ponto de encontro para colonos e viajantes, uma espécie de coração pulsante da comunidade emergente.

Luigia, por sua vez, herdou de Theresia a habilidade de transformar qualquer espaço em um lar acolhedor. Quando se casou com Noè, um jovem carpinteiro que também emigrara da Itália, ela se dedicou a construir uma vida sólida e tranquila para os quatro filhos do casal. Mais do que uma dona de casa perfeita, Luigia tornou-se o centro emocional de sua própria família. Era para sua mesa que todos se dirigiam em momentos de celebração ou dificuldade, sabendo que ali encontrariam um prato quente, um conselho sábio e um sorriso acolhedor.

Apesar dos novos rumos que cada um dos filhos tomou, a ligação com os pais permaneceu inabalável. Angelo fazia questão de visitar Domenico regularmente, trazendo novidades sobre o comércio e sempre uma sacola de produtos frescos ou alguma ferramenta que o pai precisava. Luigia vinha com frequência, trazendo consigo o som das risadas das crianças que corriam pelo quintal, enchendo o lar dos avós de uma alegria renovada.

Para Domenico, cada visita era uma prova viva de que os sacrifícios haviam valido a pena. Ele gostava de sentar na varanda ao final do dia, observando o pôr do sol tingir os campos de laranja e vermelho, enquanto Angelo relatava os sucessos do armazém ou Luigia falava das crianças. Theresia, sempre ao seu lado, fazia questão de manter a chaleira aquecida, servindo xícaras de café forte e quente para acompanhar as conversas que muitas vezes se estendiam até o início da noite.

Mas nem tudo era apenas alegria. O passado, com suas perdas e dificuldades, permanecia como uma sombra tênue, uma lembrança constante de quanto haviam lutado para chegar ali. Em noites silenciosas, Theresia ainda pensava nos amigos que não sobreviveram às primeiras adversidades da colônia ou nas cartas que nunca chegaram da Itália. Domenico, por sua vez, se perguntava se algum dia seus descendentes compreenderiam plenamente o quanto lhes fora exigido.

No entanto, eram momentos fugazes. No dia a dia, a gratidão prevalecia. Quando Domenico e Theresia olhavam para seus filhos – agora adultos, construindo seus próprios sonhos – viam mais do que realizações individuais. Eles viam a continuidade de uma jornada que começara há décadas, em um navio lotado de esperanças, medos e promessas.

E assim, em meio às dificuldades que nunca deixaram de existir, havia uma certeza: as sementes plantadas na adversidade floresceram de formas que nem Domenico nem Theresia poderiam imaginar. Suas vidas eram testemunho de que a perseverança e o amor podiam transformar qualquer terra, por mais ingrata que fosse, em um solo fértil para o futuro.

Domenico, agora em idade avançada, gostava de sentar-se na varanda de sua casa, construída com esforço e perseverança, e observar a movimentação da cidade que havia adotado. Curitiba já não era mais uma vila em crescimento; tornara-se uma cidade pulsante, e os Pisello haviam contribuído para essa transformação.

Theresia, ao seu lado, cuidava do jardim que ela mesma plantara, repleto de flores que a faziam lembrar de Ramodipalo. Embora a saudade de sua terra natal nunca desaparecesse completamente, ela sabia que haviam encontrado no Brasil um lar onde suas raízes floresceram.

Em uma tarde, com os filhos e netos reunidos para um almoço, Domenico ergueu seu copo e declarou: “Quando deixamos Ramodipalo, tudo o que tínhamos era esperança e fé. Hoje, temos uma história para contar, um legado para deixar, e uma família da qual nos orgulhamos.”

As palavras ecoaram como um tributo à resiliência e ao amor que os uniram, mostrando que, mesmo diante das maiores adversidades, é possível prosperar quando há união e propósito.

As Lutas e Realidades da Família Pisello

Angelo e Luigia, filhos mais velhos de Domenico e Theresia, cresceram em uma realidade marcada por sacrifícios. Sem acesso à educação formal, suas infâncias foram moldadas pelo trabalho árduo. Desde jovens, eles se juntaram aos pais na luta pela sobrevivência. Enquanto Angelo ajudava Domenico como carroceiro, transportando mercadorias pelas ruas de Curitiba, Luigia auxiliava Theresia no pequeno armazém de secos e molhados, garantindo que cada cliente saísse satisfeito, mesmo nos dias mais difíceis.

O Pequeno Armazém e a Luta Diária

O comércio de Domenico e Theresia não era grandioso, nem um ponto de referência na cidade, mas era o que mantinha a família unida. Localizado em uma rua modesta da Colônia Dantas, o armazém atendia principalmente os vizinhos, outros imigrantes italianos que buscavam uma forma de se conectar com suas raízes. Vendiam de tudo um pouco: farinha, arroz, velas, sabão, e, em dias de sorte, até um pouco de vinho barato.

No entanto, a renda nunca era suficiente para proporcionar conforto ou estabilidade financeira. Frequentemente, os clientes pediam crédito e pagavam apenas meses depois, ou às vezes nem pagavam. Domenico nunca recusava ajudar, mesmo sabendo que isso comprometia as finanças da família.

Theresia, com sua personalidade pragmática, sempre dizia: “Não somos ricos, mas podemos ser honestos e dignos.” Era essa dignidade que sustentava a família nos momentos mais difíceis.

A Juventude de Angelo e Luigia

Sem a possibilidade de frequentar a escola, Angelo e Luigia aprenderam com a vida. Angelo, com seu jeito reservado, carregava a responsabilidade de ajudar o pai no transporte de mercadorias. Passava horas percorrendo as ruas irregulares com a carroça puxada por um cavalo magro, enfrentando sol e chuva.

Luigia, por outro lado, tinha um espírito mais comunicativo. Trabalhava no balcão do armazém, atendendo os fregueses com um sorriso que escondia o cansaço de dias longos e exaustivos. Embora sua vida fosse repleta de limitações, ela sonhava com algo maior. “Um dia, vou costurar vestidos tão bonitos que as pessoas virão de longe para comprá-los,” dizia, enquanto remendava as roupas da família à noite.

As Dificuldades de Domenico

Domenico nunca deixou de lutar, mas o peso da vida sobrecarregava seus ombros. Como carroceiro, passava longas horas transportando sacos de grãos e mercadorias para os mercados de Curitiba. O trabalho era árduo e mal remunerado. Cada centavo que ganhava era destinado ao sustento da família, sem espaço para luxos ou economias.

Theresia dividia o tempo entre o armazém e os cuidados com os filhos mais novos. Mesmo com tantas tarefas, ela conseguia manter a casa organizada e criar um ambiente acolhedor para a família. Suas mãos calejadas eram prova do esforço diário, mas seu espírito permanecia forte.

Os Sonhos Simples

Domenico e Theresia não tinham grandes ambições de riqueza ou notoriedade. Seus sonhos eram simples: oferecer aos filhos uma vida melhor do que a que tiveram. No entanto, a realidade frequentemente lhes roubava essas esperanças.

Angelo e Luigia, apesar das dificuldades, aprenderam com os pais o valor do trabalho e da honestidade. Sabiam que não seriam ricos, mas estavam determinados a honrar o sacrifício de Domenico e Theresia, mantendo a família unida e orgulhosa de suas origens.

O Legado dos Pisello

Embora nunca tenham conquistado fortuna, Domenico e Theresia deixaram um legado inestimável: a resiliência. A história dos Pisello não é sobre grandes conquistas, mas sobre a sobrevivência em meio a desafios implacáveis.

Nos anos seguintes, Angelo e Luigia continuaram suas vidas simples, carregando consigo as lições aprendidas com os pais. Embora as oportunidades fossem limitadas, ambos encontraram formas de construir suas famílias e manter viva a memória de Domenico e Theresia.

A luta diária da família Pisello é um testemunho da força de espírito dos imigrantes italianos, que, mesmo sem riquezas ou reconhecimentos grandiosos, deixaram uma marca profunda em sua nova terra.


Nota do Autor


O Destino dos Pisello: Uma Jornada de Ramodipalo ao Brasil é uma homenagem aos milhares de imigrantes italianos que, no final do século XIX e início do século XX, buscaram um novo começo nas terras desconhecidas do Paraná. Esta obra é um tributo à coragem, à resiliência e à determinação daqueles que, com o coração apertado de saudades e as mãos calejadas pelo trabalho árduo, atravessaram oceanos em busca de uma vida melhor.

A história de Domenico Pisello e sua família, embora fictícia em seus detalhes, é inspirada em nomes e relatos reais de imigrantes que deixaram a Itália em busca de um futuro incerto, mas repleto de esperanças. Através dos passos dessa família, este livro procura capturar a complexidade das experiências vividas por aqueles que migraram, enfrentando desafios imensuráveis, desde as dificuldades de adaptação em uma terra distante até a luta para estabelecer raízes em uma nova sociedade.

A jornada deles, com todos os altos e baixos, não é apenas uma história de imigração, mas também uma reflexão sobre a identidade, a perda, a superação e o legado. Ao longo das páginas, a vida dos Pisello se entrelaça com o desenvolvimento do Paraná, uma terra que se transformou, assim como os próprios imigrantes, através do trabalho, das adversidades e, sobretudo, da esperança.

É uma história que busca dar voz a tantos que, em silêncio, contribuíram para a construção de um país, mas cujas histórias muitas vezes ficaram esquecidas nas margens da história oficial. Aos descendentes dos imigrantes italianos e a todos que, de alguma forma, compartilham desse espírito de luta e adaptação, espero que encontrem neste livro um reflexo da coragem e da dignidade que marcaram essas vidas.

Cada capítulo, cada detalhe, é dedicado à memória de todos aqueles que, com suas mãos calejadas e corações cheios de sonhos, fizeram do Paraná o que ele é hoje.


Com respeito e gratidão,

Dr. Piazzetta