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quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O Eco do Mera sob o Sol do Brasil

 


O Eco do Mera sob o Sol do Brasil


O rio Mera, em seu curso rápido pelas encostas íngremes da Val Chiavenna, carregava mais do que a neve derretida das montanhas: levava histórias de resistência e saudade. À sua sombra nasceu, em 1869, Elisabetta Vassalli, filha de um pedreiro que passara temporadas longe, trabalhando nas obras ferroviárias da Lombardia, e de uma mãe que mantinha o lar aquecido com o tecer incessante de lã e linho.

A vida no vale era medida pelo som dos cascos dos mulos que desciam trazendo farinha e pelo murmúrio constante das águas geladas batendo nas pedras. Foi ali que Elisabetta cresceu, entre invernos longos e verões curtos, até se casar, em 1891, com Lorenzo Cantù, agricultor de poucas posses, descendente de uma família que vira suas terras minguarem geração após geração.

A partir do início da década de 1890, cartas amareladas vindas de parentes instalados no Brasil começaram a chegar ao vale, percorrendo um longo caminho de navios, trens e mensageiros até repousarem sobre a mesa da cozinha. Eram escritas com caligrafia apressada, às vezes manchadas por gotas de suor, terra ou borrões de tinta, e traziam descrições de lugares que pareciam extraídos de um sonho distante. Falavam de lavouras de café que se estendiam até onde a vista alcançava, de canaviais ondulando sob um sol constante, de pássaros de plumagem cintilante e de uma natureza tão abundante que, segundo diziam, uma semente lançada ao solo brotava em poucos dias.

Mas o conteúdo mais marcante não estava nas imagens idílicas, e sim na promessa velada que corria por entre as linhas: havia trabalho para quem tivesse força nos braços e disposição para suportar um clima que nunca conhecia o frio cortante do inverno alpino. O nome Piracicaba repetia-se nas cartas como um refrão hipnótico, carregado de possibilidades. Para Lorenzo, evocava a imagem de rios largos e caudalosos, capazes de alimentar plantações inteiras; para Elisabetta, soava como um antídoto contra as geadas súbitas que, no vale do Mera, podiam transformar uma lavoura saudável em um campo de hastes negras durante uma única noite.

Essas cartas, lidas e relidas à luz trêmula do lampião, plantaram no casal uma inquietação silenciosa. Cada relato parecia corroer, pouco a pouco, as raízes que os prendiam àquela terra pedregosa e imprevisível, até que a ideia de partir deixou de ser apenas uma possibilidade e começou a ganhar a força de um destino inevitável.

No inverno de 1895, depois de venderem quase tudo que possuíam e empenharem o pouco que restara, Elisabetta e Lorenzo deixaram a Val Chiavenna. Desceram até Gênova em vagões frios e lotados, embarcando num vapor misto que cruzaria o Atlântico. A travessia foi marcada pelo balanço incessante, pelo cheiro de carvão queimado e por noites abafadas nos porões da terceira classe. Para quem viera do ar rarefeito das montanhas, o calor do oceano parecia quase irrespirável.

A chegada ao Porto de Santos trouxe um impacto imediato: umidade espessa, aroma de sal misturado a frutas maduras e uma língua que soava como um turbilhão de sons desconhecidos. Do cais, foram conduzidos junto a outros recém-chegados para a Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo, um vasto edifício de tijolos que parecia uma fortaleza, mas cuja função era acolher. Ali, os corredores ressoavam com um mosaico de idiomas — dialetos italianos, espanhol, português, húngaro, alemão, até murmúrios em línguas eslavas — formando uma música estranha que acompanhava cada passo.

As longas mesas do refeitório se enchiam de homens e mulheres de diferentes nacionalidades, partilhando pratos simples de arroz, feijão, carne e pão, que para alguns era novidade e para outros um sabor de casa distante. As crianças, curiosas, exploravam os pátios internos, correndo entre malas de couro e baús de madeira marcados com nomes e destinos. A cada refeição, a sensação de exaustão cedida pela travessia marítima começava a dar lugar a um alívio cauteloso: estavam em terra firme, sob um teto seguro, com alimento garantido e a promessa de trabalho à frente.

Nos dormitórios coletivos, beliches de ferro alinhados lado a lado recebiam famílias inteiras. As noites eram interrompidas por tosses, choros de bebês e conversas sussurradas até tarde, mas havia também um clima de solidariedade improvisada — um empréstimo de coberta, um pedaço de pão repartido, uma tradução improvisada para quem não compreendia as ordens dos funcionários.

Lá permaneceram por alguns dias, tempo suficiente para que o cansaço se diluísse e para que a esperança se infiltrasse de novo nos gestos. Quando chegou a hora de partir, embarcando novamente em outro trem rumo ao interior, Elisabetta e Lorenzo deixaram a hospedaria com a impressão de terem passado por um ponto de cruzamento invisível: o último abrigo do velho mundo antes de entrarem, de fato, no novo.

O destino final foi uma fazenda nas proximidades de Piracicaba. Lorenzo, acostumado ao arado de madeira, precisou aprender o manejo rápido da foice na colheita da cana. O sol tropical castigava a pele clara e fazia arder cada movimento. Elisabetta, além de cuidar da alimentação dos empregados da fazenda, dedicou-se a um pequeno canteiro ao lado da casa de madeira, onde cultivava ervas trazidas do vale: alecrim, sálvia, basílico. Esses aromas, libertos no ar quente da tarde, eram seu último vínculo sensorial com o lugar de origem.

As estações no interior paulista se sucediam com violência: chuvas torrenciais que arrastavam o solo, seguidas por estiagens que rachavam a terra. Lorenzo guardava moedas com o objetivo de adquirir um pedaço próprio, mas o custo era alto. A vida seguia num compasso de trabalho exaustivo e paciência.

Em 1901, após seis anos de economia rígida e de incontáveis sacrifícios, conseguiram finalmente comprar um pequeno sítio. Não era a terra fértil e macia dos sonhos, mas um chão exausto de colheitas passadas, marcado por sulcos antigos e pedras que afloravam sob o sol. Ainda assim, pertencia a eles, e isso bastava para transformá-lo no território da esperança.

Entre os limites irregulares da propriedade, alguns pés de café sobreviviam, retorcidos pelo tempo e com folhas de um verde opaco, como se esperassem uma nova chance de frutificar. Havia também um pomar esquecido, onde árvores mal podadas guardavam frutos pequenos e ásperos, mas cujo perfume se espalhava pelo ar nas primeiras horas da manhã. No quintal mais próximo da casa, Elisabetta iniciou, quase de imediato, a construção de sua horta. Revirou a terra endurecida com as próprias mãos, misturou cinzas de fogão à lenha, plantou sementes guardadas com cuidado desde a travessia e, pouco a pouco, ergueu um refúgio verde que se tornaria sua marca.

A cana, cultivada nas faixas mais ensolaradas, era cortada e vendida para um engenho próximo. Nos dias de moagem, o ronco cadenciado das moendas ecoava pelo vale, misturando-se ao cheiro adocicado da garapa quente que impregnava o ar e atraía nuvens preguiçosas de abelhas. O sítio, ainda modesto, começou a pulsar como um organismo vivo: cada nova folha que brotava e cada saca vendida eram sinais de que, mesmo num solo cansado, havia futuro a ser colhido. O tempo trouxe perdas silenciosas: a morte de um filho, de vizinhos levados pela febre amarela, enchentes que invadiam a lavoura, secas que queimavam folhas e esperanças. Mas também trouxe raízes. Elisabetta nunca dominou totalmente o português, mas aprendeu a entender o gesto das vizinhas, a forma como penduravam roupas, como rezavam nas procissões e como conservavam frutas em compotas que lembravam as da sua infância.

O casal envelheceu vendo a terra dar frutos e falhar, mas sempre recomeçando. Do rio Mera, restava apenas uma lembrança fria e sonora, que às vezes parecia ecoar no ruído do rio Piracicaba nas cheias. Nunca voltaram à Itália. A data exata de suas mortes perdeu-se nas páginas do tempo, mas ainda hoje, num ponto discreto de terra perto de Piracicaba, há quem mostre uma antiga parreira e diga que ela nasceu nas montanhas da Lombardia, trazida por uma mulher que atravessou o oceano para criar raízes onde o sol era mais forte que a neve.

Nota do Autor

Esta narrativa nasceu do desejo de resgatar um fragmento esquecido da experiência imigrante, dando voz a homens e mulheres que trocaram o conhecido pela incerteza, movidos apenas pela esperança de um futuro menos árido. A história que o leitor tem em mãos é ficcional, mas profundamente ancorada em fatos, cenários e testemunhos reais do final do século XIX e início do XX, quando milhares de famílias italianas, empobrecidas e pressionadas pelas crises agrícolas e sociais da Europa, embarcaram rumo ao Brasil.

O fio condutor desta história acompanha uma família que deixa o vale alpino para enfrentar a travessia marítima, o choque cultural, a adaptação ao clima tropical e a árdua conquista da terra própria. Piracicaba, com seus rios largos e solos quentes, foi escolhida como cenário não por acaso: foi um dos destinos que mais recebeu imigrantes, e cuja paisagem ainda guarda marcas da época em que as colônias agrícolas floresciam.

Escrevi esta história não apenas para reconstruir um percurso individual, mas para que os descendentes — e todos aqueles que se reconhecem no gesto de partir — possam enxergar, nas linhas e entrelinhas, um pedaço de si. É um tributo à coragem silenciosa, ao trabalho persistente e à fé obstinada de quem construiu, com suor e raízes, um novo lar num continente distante.

Dr. Piazzetta


quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Os Desencontros Familiares na Grande Emigração


Os Desencontros Familiares na Grande Emigração


Muito antes de a Itália tornar-se um Estado unificado — conquista que se consumaria apenas ao término do turbulento Risorgimento, iniciado em 1815 e concluído em 1871 —, a mobilidade já fazia parte da vida de inúmeros habitantes da península. Nas regiões setentrionais, como Piemonte, Lombardia, Veneto, Trento e Friuli, a migração não era novidade: antes de ser um fenômeno necessário, ela acontecia além das fronteiras vizinhas, em busca de subsistência e sobrevivência.

No início, eram sobretudo os homens, e depois também as mulheres, que se ausentavam temporariamente, deixando para trás famílias inteiras. Seguiam para a França, Suíça, Áustria e Alemanha, empregando-se na agricultura, na construção civil ou em serviços sazonais. Tal deslocamento periódico recebeu o nome de migrazione delle rondini — ou migração das andorinhas — numa alusão àquelas aves que, após um período distante, regressavam ao ninho.

Contudo, nas últimas décadas do século XIX, este movimento temporário transformou-se em definitivo devido diversos fatores entre eles a formação do reino da Itália. A miséria estrutural, a pressão demográfica e a escassez de oportunidades na Itália — somadas à promessa de terras, salários ou simplesmente de pão — levaram milhões de italianos a deixarem o país para sempre. Os destinos prediletos eram, inicialmente, os Estados Unidos, a Argentina e o Brasil, que despontavam como terras de abundância do outro lado do Atlântico. Entretanto, países europeus mais prósperos, como França, Suíça, Bélgica e Alemanha, também absorviam parcela significativa dos que abandonavam suas aldeias natal.

Os portos de Gênova e Nápoles tornaram-se pontos de partida simbólicos de uma diáspora sem precedentes. Marselha e Le Havre, na França, igualmente viam seus cais apinhados de italianos em trânsito, carregando baús modestos, sacos com roupas e ferramentas, mantimentos e, sobretudo, esperanças. Os navios de linha, quase sempre superlotados, eram a última imagem da pátria que ficava para trás.

Naquele período, as famílias italianas eram numerosas. Casas modestas abrigavam dez, doze ou até quinze pessoas em poucos cômodos. A fome rondava com frequência, especialmente nas comunidades camponesas das montanhas e nas aldeias pobres do Mezzogiorno. Em cada núcleo familiar, a lógica se repetia: os filhos mais velhos emigravam primeiro, abrindo caminho para os mais novos partirem depois.

Os destinos, porém, dispersavam os laços. Um irmão podia instalar-se na Argentina, outro embarcar para o Brasil, enquanto um terceiro tentava a sorte nos Estados Unidos. Alguns permaneciam na Itália, outros atravessavam os Alpes para se fixar definitivamente em países vizinhos. A rede familiar, que outrora se sustentava na proximidade física, fragmentava-se pelo mapa do mundo.

A comunicação, especialmente para os que cruzavam o Atlântico, era precária. No Brasil e na Argentina, vastos territórios recebiam colonos semi-alfabetizados e mesmo analfabetos em áreas rurais distantes, mal servidas por estradas e com serviços postais inexistentes ou intermitentes. As cartas, único elo possível entre mundos tão afastados, levavam meses para cruzar o oceano. Muitas se extraviavam; outras nunca saíam dos portos. Para um emigrante que partia rumo às colônias brasileiras, não era raro permanecer anos sem notícias concretas de pais, irmãos ou mesmo mulher e filhos.

Com o passar do tempo, a distância se convertia em silêncio. Quando um irmão mais novo decidia emigrar, poderia desembarcar no mesmo país que o anterior, mas ser enviado para uma colônia distante, talvez em outro estado brasileiro. A vastidão territorial e a falta de meios de comunicação faziam com que encontros se tornassem improváveis. Muitas famílias perdiam contato para sempre, apesar de viverem sob o mesmo céu, separados apenas pela geografia e pelo destino.

Até hoje, não é incomum encontrar famílias que compartilham o mesmo sobrenome — descendentes de um mesmo tronco ancestral — sem saber que seus antepassados estiveram lado a lado em algum porto, que partilharam a mesma aldeia de origem, ou que um dia trocaram cartas que jamais chegaram. A Grande Emigração italiana, que levou milhões de vidas para longe de casa, deixou também incontáveis histórias de desencontros que atravessaram gerações.

Nota do Autor

Este artigo é um sopro vindo de longe, como o eco de passos que já não se ouvem, mas que ainda ressoam nas memórias que atravessaram gerações. A Grande Emigração não foi feita apenas de travessias marítimas e terras desconhecidas; foi feita de silêncios que se instalaram em casas vazias, de cartas que não chegaram, de abraços que o destino não permitiu.

Nas docas de Gênova e Nápoles, famílias se despediam acreditando que o tempo traria reencontros. Mas, muitas vezes, o tempo trouxe apenas distância. Irmãos foram espalhados por continentes, nomes se perderam em registros incompletos, e histórias se diluíram na imensidão de terras estranhas.

Este texto é dedicado a todos eles — aos que partiram e aos que ficaram. A cada sobrenome que hoje resiste, há uma raiz antiga fincada em solo estrangeiro. A cada descendente que não conhece sua origem, há uma aldeia que um dia se despediu.

Escrevo para que, ao ler estas linhas, cada um possa sentir que não caminha sozinho: atrás de cada passo presente, há um rastro antigo, aberto por mãos calejadas, carregando esperança no lugar da certeza.

Dr. Piazzetta


Raízes que Cruzaram o Oceano: do Veneto ao Novo Mundo



Raízes que Cruzaram o Oceano 
do Veneto ao Novo Mundo

Na frazione de Miane, um pequeno agrupamento de casas incrustada nas colinas ondulantes do comune de Valdobbiadene, na província de Treviso, o final do século XIX marcou o fim de uma era e o início de mudanças irreversíveis. A paisagem bucólica, com suas vinhas enfileiradas e olivais centenários, escondia uma realidade dura e implacável. O Vêneto, assim como grande parte da Itália, vivia um período de profunda crise econômica e social.

As reformas implementadas pelo recém-unificado Reino da Itália haviam trazido um peso inesperado às comunidades rurais. As terras, que durante séculos haviam passado de geração em geração, tornaram-se cada vez mais fragmentadas devido às partilhas entre os herdeiros. O resultado era um mosaico de pequenos lotes insuficientes para sustentar uma família. As colheitas, outrora abundantes, já não conseguiam competir com os produtos mais baratos que chegavam de outras regiões e países, impulsionados pela crescente globalização do comércio agrícola.

Como se não bastasse, o novo governo italiano impôs uma carga tributária pesada, alegando a necessidade de financiar o desenvolvimento da jovem nação. Os agricultores, como os Casagrande, sentiam o impacto diretamente em seus bolsos, vendo a maior parte de seus magros rendimentos escoar em taxas e impostos. Ao mesmo tempo, os preços dos insumos agrícolas subiam, enquanto o valor dos produtos finais permanecia estagnado, esmagando ainda mais os pequenos produtores.

A família Casagrande era um exemplo típico dessa luta diária. Patriarca da família, Giovanni Casagrande era um homem de mãos calejadas e olhar resiliente, acostumado a enfrentar a terra dura e as intempéries para sustentar sua esposa Maria e seus três filhos. Maria, por sua vez, equilibrava o papel de mãe e trabalhadora, mantendo a casa em ordem enquanto ajudava no cultivo de trigo, sorgo e videiras. Apesar de todo o esforço, o retorno financeiro era cada vez mais insuficiente, e o futuro parecia sombrio.

Entre os moradores de Miane, crescia um sentimento de frustração e desolação. Reuniões na praça da igreja ou nas tavernas locais eram tomadas por discussões sobre a falta de perspectiva, a desigualdade e o êxodo de jovens em busca de trabalho nas cidades mais industrializadas. Mas não era apenas para as grandes cidades italianas que os olhares se voltavam. Sussurros de oportunidades além-mar começavam a ganhar força. Histórias de terras férteis e generosas no Brasil, ainda que muitas vezes exageradas ou romantizadas, plantavam sementes de esperança em corações desgastados pela miséria.

Foi nesse cenário de incertezas que os Casagrande, após muita reflexão e debate, chegaram à conclusão de que permanecer em Miane significaria um futuro de privações sem fim. Partir parecia a única alternativa, ainda que envolvesse o abandono de tudo o que conheciam – a casa onde nasceram, os campos que araram, e os parentes e amigos que ficariam para trás. A decisão, tão dura quanto inevitável, seria a que definiria os rumos da família e dos descendentes que viriam depois.

Pietro Casagrande, aos 35 anos, era um homem moldado pela terra áspera e generosa das colinas de Miane, onde nascera e passara toda a vida. Desde menino, seu aprendizado fora íntimo e constante, absorvendo os segredos da viticultura que seu pai lhe transmitira com paciência: o momento exato da poda, a escolha das mudas, o cuidado meticuloso com o solo para preservar sua fertilidade. Cada videira, cada cacho, carregava o peso de uma tradição secular que Pietro honrava com dedicação quase religiosa.

Mas o mundo à sua volta já não era o mesmo de outrora. A agricultura familiar, que sustentara gerações, agora se via esmagada por forças que escapavam ao controle dos pequenos produtores. O mercado do vinho, antes local e simples, tornara-se um terreno disputado por grandes negociantes e industriais que podiam ditar preços e impor condições desfavoráveis aos agricultores. Pietro via, com angústia, seus esforços esmorecerem diante da impossibilidade de competir com esses gigantes. A produção familiar mal cobria os custos, e a incerteza tornava-se companheira constante.

Ao seu lado, Anna representava a força silenciosa que sustentava a família. Mulher de fibra e praticidade, ela dividia seu tempo entre as tarefas domésticas e o cuidado incessante com os filhos pequenos — Luigi, que já tinha 10 anos e ajudava no campo sempre que possível; Teresa, de 7, que começava a entender as responsabilidades que a vida lhes impunha; e o bebê Marco, que mal engatinhava e trazia ao lar uma luz tênue de esperança. Anna sabia que a sobrevivência da família dependia não apenas do trabalho árduo de Pietro, mas também da organização e do equilíbrio que mantinha dentro de casa.

Juntos, enfrentavam dias marcados pelo suor e pela incerteza, mas também pela esperança teimosa de que um futuro melhor pudesse existir — seja nas vinhas que resistiam, seja além das colinas que já não pareciam promissoras como antes.

Os dias em Miane pareciam se arrastar sob um céu cinzento, onde o sol raramente conseguia aquecer o corpo cansado dos agricultores. O trabalho no campo consumia cada gota de energia, e as noites, em vez de trazerem descanso, eram marcadas por inquietação e sonhos perturbadores. A fome pairava como uma sombra silenciosa sobre a casa dos Casagrande, apertando o peito e corroendo as forças de todos. Os invernos, antes amenos e familiares, tornavam-se cada vez mais rigorosos, castigando as colinas com ventos cortantes e geadas que destruíam as últimas esperanças de uma colheita digna.

Em meio a esse cenário de desespero, começaram a se espalhar rumores vindos de além-mar. Um nome estranho e distante ganhava vida nas conversas sussurradas: Brasil. Palavras sobre um país gigantesco, onde as terras eram vastas, férteis e, sobretudo, oferecidas gratuitamente a quem estivesse disposto a arar o solo e construir uma nova vida. Essas histórias chegavam através de cartas, viajantes e alguns poucos imigrantes retornados, carregadas de promessas que pareciam quase inacreditáveis.

As notícias falavam de oportunidades reais, mas não escondiam os perigos. A travessia do oceano Atlântico era longa e traiçoeira, marcada por condições precárias a bordo dos navios, onde doenças como tifo, colera e sarampo ceifavam vidas. O medo do desconhecido e das dificuldades não era pequeno, mas, para aqueles que sofriam com a escassez e o desespero, essa promessa de um recomeço valia qualquer risco.

Assim, mesmo diante das dificuldades incontestáveis, a luz de esperança que essas histórias carregavam começava a iluminar os corações endurecidos pela luta diária. O Brasil, com suas terras generosas e futuro incerto, surgia como um farol distante, uma possibilidade de escapar das correntes que prendiam as famílias vênetas a uma vida de privações sem fim. Foi nesse momento que muitos, como os Casagrande, começaram a sonhar com uma vida além das colinas que haviam conhecido, dispostos a arriscar tudo para garantir um amanhã melhor para seus filhos.

Pietro e Anna enfrentaram uma angústia profunda diante da decisão que lhes pesava no coração. A ideia de abandonar a terra natal, com suas colinas verdes, os vinhedos que tinham cuidado por gerações, e o vilarejo onde cada pedra parecia conter memórias de antepassados, era uma dor quase insuportável. O Vêneto não era apenas um lugar no mapa; era a essência da sua identidade, o palco das alegrias e tristezas que moldaram suas vidas. Cada aroma do solo, cada som do vento entre as folhas, carregava um pedaço da história da família.

Porém, as condições se tornavam cada vez mais insustentáveis. O trabalho árduo, os sacrifícios diários e as esperanças cada vez mais tênues haviam mostrado que permanecer significava aceitar a pobreza, a fome e a insegurança perpetuamente. A perspectiva de um futuro onde os filhos sofreriam as mesmas privações que eles já enfrentavam não lhes dava paz.

Depois de longas noites em claro e conversas silenciosas, tomaram a decisão que, embora carregada de incertezas, representava uma faísca de esperança. Venderam tudo o que podiam: a única vaca da família, que lhes dava leite e ajudava nas tarefas do campo; a velha carroça de madeira, que carregava não apenas cargas, mas também histórias de muitos anos; e os poucos utensílios de valor que possuíam, acumulados com sacrifício e cuidado ao longo do tempo.

Com o dinheiro obtido, procuraram um agente de emigração que trabalhava para uma grande companhia de navegação sediada em Veneza. Esse homem, com sua pasta cheia de papéis e promessas, ofereceu-lhes passagens para o Brasil — um destino distante, quase mítico, mas que carregava a esperança de terras férteis e vida digna. Embora temerosos diante do desconhecido, Pietro e Anna inscreveram-se para a viagem, conscientes de que dali em diante nada seria como antes. O peso da despedida se misturava à promessa de um recomeço, enquanto o horizonte do velho mundo se fechava para dar lugar ao mistério e à oportunidade do novo.

A travessia foi uma prova de resistência física e emocional para Pietro, Anna e seus filhos. O navio, um antigo cargueiro adaptado às pressas para o transporte de imigrantes, estava longe de ser adequado para a viagem transatlântica. Projetado para levar mercadorias, agora transportava centenas de pessoas empilhadas em condições sub-humanas, abarrotando os porões e os estreitos compartimentos da terceira classe.

Os alojamentos, pouco mais que cubículos improvisados, eram escuros e abafados. Não havia ventilação adequada, e o ar rapidamente tornava-se pesado e insalubre, impregnado pelo odor de corpos exaustos, comida deteriorada e dejetos humanos. Não havia privacidade nem descanso, e a constante proximidade forçada criava tensões e atritos entre os passageiros.

A comida, racionada e muitas vezes estragada, era composta de pão duro, sopas ralas e, ocasionalmente, pedaços de carne que raramente estavam frescos. A água, armazenada em tonéis sujos, não era suficiente para todos, e muitos sofriam de sede. Crianças e idosos, mais frágeis, adoeciam rapidamente. Entre as doenças mais comuns estavam o tifo e o escorbuto, que se espalhavam como fogo em um campo seco.

Pietro passava noites em claro, ouvindo os gemidos dos doentes e tentando acalmar o choro de seus filhos. Luigi, o mais velho, suportava a situação com bravura, mas os olhos cansados de Teresa e o choro constante do pequeno Marco perfuravam o coração de Pietro como facas. Ele temia pelo bem-estar da família e rezava para que o navio alcançasse o destino antes que uma tragédia maior acontecesse.

Anna, apesar de debilitada, mostrava uma resiliência admirável. Ela se esforçava para manter a dignidade e o conforto dos filhos dentro do possível. Inventava histórias para distraí-los e, com mãos trêmulas, dividia as pequenas porções de comida, garantindo que cada um recebesse pelo menos um pouco. Mesmo quando sua própria saúde começava a vacilar, seu foco permanecia nas crianças.

O balanço constante do navio, agravado por tempestades que tornavam o mar traiçoeiro, fazia muitos sucumbirem ao enjoo. As ondas gigantes lançavam o cargueiro de um lado para outro, e, em noites mais severas, os passageiros agarravam-se ao que podiam, rezando para que o navio não fosse engolido pelas águas revoltas.

Apesar de tudo, a esperança teimava em resistir. Nos momentos mais sombrios, os imigrantes se uniam, compartilhando palavras de conforto, alimentos ou mesmo preces conjuntas. Pietro encontrava força ao olhar para Anna e os filhos, determinado a fazer com que aquele sacrifício não fosse em vão. A promessa de uma nova vida, ainda que distante, era a chama que os mantinha vivos em meio à escuridão e ao sofrimento.

Após semanas intermináveis no mar, o navio finalmente atracou no movimentado porto do Rio de Janeiro. Era um espetáculo de cores e sons que contrastava fortemente com os dias sombrios e silenciosos da travessia. Para Pietro e Anna, o alívio de tocar terra firme misturava-se à apreensão pelo que ainda estava por vir. O Brasil, com seu calor sufocante e uma língua desconhecida, era um mundo novo e estranho.

No entanto, esse desembarque era apenas uma breve pausa na longa jornada. Após dois dias de espera no porto, tempo que usaram para recuperar um pouco das forças abrigados na grande Hospedaria dos Imigrantes onde recebiam alimento e camas para descansar se adaptar ao ritmo frenético do novo país, os Casagrande foram embarcados novamente, desta vez em um navio menor, destinado ao sul do país. A viagem prosseguia, agora rumo à província de São Pedro do Rio Grande do Sul, onde as promessas de terra e uma nova vida ainda eram apenas ideias distantes.

Quando finalmente chegaram ao porto de Rio Grande, a família estava exausta, mas Pietro sentia que o destino final estava ao alcance. Ainda assim, o desafio não terminava ali. Embarcaram em barcos fluviais lotados, navegando lentamente pelo rio Caí que cruza as vastas planícies da província. A vegetação exuberante, os sons das aves tropicais e o calor úmido criavam uma atmosfera completamente diferente das colinas familiares do Vêneto. Anna, com os filhos nos braços, observava a paisagem com um misto de fascínio e inquietação, enquanto Pietro mantinha os olhos fixos na água, pensando no futuro incerto que os aguardava.

Ao chegar ao destino, foram encaminhados por funcionários do governo para uma colônia recém-criada, chamada Caxias do Sul. O lugar, apesar de promissor, era marcado por uma rudeza que não deixava dúvidas sobre os desafios que enfrentariam. A paisagem, dominada por matas densas e terras ainda por desbravar, parecia indomada. As autoridades entregaram à família Casagrande um pedaço de terra coberto de vegetação cerrada, que deveria ser desmatado e cultivado com suas próprias mãos.

Pietro encarou aquele pedaço de terra como um campo de batalha. Ele sabia que cada árvore derrubada, cada pedaço de solo revolvido seria uma conquista para sua família. Anna, mesmo cansada, arregaçou as mangas para ajudar no que podia. As crianças, embora ainda jovens, absorviam o ambiente com curiosidade e esperança.

A colônia era formada por outras famílias italianas, vindas de diferentes partes do norte da Itália. Isso trouxe algum alívio: podiam falar sua língua, compartilhar tradições e formar uma comunidade que os conectava às raízes deixadas no Vêneto. Apesar das condições iniciais difíceis, a promessa de uma vida melhor alimentava seus esforços. Caxias do Sul, ainda rudimentar, tornava-se um símbolo de recomeço, onde cada dia de trabalho árduo representava um passo para transformar a promessa em realidade.

O pedaço de terra que a família Casagrande recebeu por meio do contrato com o governo era vasto e imponente, abrangendo cerca de 250 mil metros quadrados. Para uma família de agricultores habituada às pequenas parcelas fragmentadas do Vêneto, aquela extensão parecia tanto uma bênção quanto um desafio colossal. No entanto, o terreno estava completamente coberto por mata fechada, uma selva densa e inexplorada, com árvores altas, raízes profundas e uma fauna desconhecida que muitas vezes os assustava à noite.

Pietro, sem experiência com desmatamento, logo percebeu que enfrentar sozinho aquela tarefa monumental seria impossível. Ele se uniu a outros colonos recém-chegados, formando uma rede de apoio que misturava trabalho árduo e aprendizado coletivo. Com ferramentas rudimentares, como machados, foices e serras de arco, os homens enfrentavam a floresta, abrindo clareiras a cada dia, muitas vezes ao custo de bolhas nas mãos e músculos exaustos.

Os dias começavam ao amanhecer ainda escuro, com Pietro liderando sua família e dividindo tarefas com outros colonos. O som das árvores sendo derrubadas ecoava pela colônia, acompanhado pelos gritos de encorajamento entre os trabalhadores e pelo estalar da madeira ao ceder. Era um trabalho árduo e perigoso, com troncos caindo em direções inesperadas e ferramentas que exigiam precisão para evitar acidentes. Pietro, sempre cauteloso, mantinha os filhos longe das áreas mais perigosas, mas sua mente não descansava enquanto trabalhava, sabendo que ainda havia muito a fazer para tornar aquele pedaço de terra um lar.

Enquanto isso, Anna mostrava uma determinação extraordinária. Apesar da precariedade inicial, ela começou a plantar as primeiras sementes de feijão, mandioca e milho em pequenos espaços que Pietro e os outros conseguiam abrir no solo. Usando um enxadão que trouxera consigo, Anna misturava o solo fértil com as sementes, rezando silenciosamente por uma colheita que alimentasse seus filhos.

As crianças, ainda pequenas, faziam o que podiam para ajudar. Luigi, o mais velho, assumia responsabilidades maiores, carregando baldes de água do riacho próximo e ajudando o pai a recolher galhos e raízes. Teresa, com sua energia juvenil, recolhia lenha para as fogueiras, enquanto Marco, apesar de ainda ser um bebê, brincava sob a sombra das árvores, sua presença lembrando a Pietro e Anna o motivo pelo qual enfrentavam tamanha adversidade.

O progresso era lento, mas visível. A cada árvore derrubada e a cada metro de solo cultivado, a floresta dava lugar a um campo que prometia se tornar fértil. Pietro e Anna viam naquelas clareiras não apenas o resultado de seu trabalho, mas também a possibilidade de um futuro, onde a terra que antes parecia indomável pudesse sustentar sua família. A solidariedade entre os colonos reforçava o senso de comunidade, e o esforço conjunto transformava o sonho de sobrevivência em um objetivo compartilhado: construir uma nova vida, um sulco de cada vez.

Os primeiros anos na nova terra foram uma verdadeira prova de resiliência para os Casagrande. Acostumados ao clima ameno das colinas do Vêneto, enfrentar o calor sufocante e a umidade constante do clima tropical era um desafio diário. As chuvas torrenciais, que muitas vezes transformavam o solo em lama e faziam os riachos transbordarem, destruíam plantações inteiras em questão de horas. O sol escaldante, por sua vez, secava as folhas das culturas recém-plantadas e tornava o trabalho no campo extenuante.

Além disso, as pragas agrícolas, desconhecidas para Pietro e Anna, tornavam-se uma batalha constante. Gafanhotos, lagartas e outros insetos atacavam as plantações de milho e mandioca, e não havia conhecimento ou recursos suficientes para combatê-los. No entanto, Pietro era persistente, aprendendo com outros colonos e experimentando métodos rudimentares para proteger as culturas. Ele usava cinzas das fogueiras como repelente natural e criava barreiras simples para evitar que os insetos se alastrassem.

A saudade do Vêneto também pesava. As memórias das colinas verdes, do cheiro das videiras e do som dos sinos das igrejas eram como fantasmas que os acompanhavam. À noite, enquanto descansavam em seu abrigo improvisado, Pietro e Anna falavam em sussurros sobre a terra natal, temendo que mencionar suas saudades em voz alta pudesse enfraquecer o ânimo das crianças.

Apesar das dificuldades, os Casagrande começaram a ver o fruto de seus esforços. O pedaço de mata densa que haviam recebido transformava-se gradualmente em campos cultivados. Pietro, com as mãos calejadas e um espírito incansável, concentrou-se primeiro em construir um abrigo rudimentar, feito de troncos e folhas, para proteger a família da chuva e dos animais selvagens. Era precário, mas servia de refúgio enquanto ele planejava algo mais duradouro.

Com o tempo, e à medida que os campos davam suas primeiras colheitas, Pietro iniciou a construção de uma casa simples de madeira. Ele cortava as tábuas com cuidado, ajustando cada peça com paciência, mesmo sem ter ferramentas adequadas. A casa era pequena, com um único cômodo que servia de cozinha, sala e dormitório, mas era o suficiente para dar à família um senso de segurança e estabilidade.

Anna, com sua dedicação inabalável, transformou a estrutura básica em um verdadeiro lar. Ela pendurava ervas secas nas vigas de madeira, costurava cortinas com retalhos de tecido que trouxera da Itália e cuidava para que o pequeno jardim ao redor da casa estivesse sempre florescendo. À noite, quando a família se reunia ao redor da mesa improvisada, Anna preparava refeições simples, mas feitas com carinho, e suas histórias sobre o Vêneto ajudavam a manter vivas as raízes culturais dos Casagrande.

Pouco a pouco, a nova vida começava a tomar forma. Embora o caminho fosse longo e os desafios constantes, os Casagrande viam na transformação da terra e no lar que estavam construindo um sinal de que a coragem de deixar sua terra natal não havia sido em vão.

Com o passar dos anos, os frutos do árduo trabalho começaram a se manifestar de maneira mais evidente. As colheitas, antes tímidas e incertas, tornaram-se progressivamente mais abundantes, fruto de um aprendizado contínuo sobre a terra e suas peculiaridades. Com isso, a família finalmente pôde negociar o excedente da produção por outros bens essenciais, como ferramentas, tecidos e até pequenos luxos que antes pareciam inalcançáveis.

Luigi, agora na adolescência, emergia como um jovem forte e dedicado, assumindo com seriedade muitas das responsabilidades no campo. Ele não apenas auxiliava no plantio e na colheita, mas também começou a se interessar por técnicas agrícolas mais eficientes, que ouviu de outros colonos ou leu em antigos manuais trazidos da Itália. Sob sua liderança discreta, a produtividade da pequena propriedade deu novos saltos.

Teresa, por sua vez, encontrou na costura não apenas uma forma de complementar a renda da família, mas também um caminho para expressar sua criatividade e talento. Seus bordados, conhecidos por detalhes delicados e motivos tradicionais italianos, começaram a ser procurados por outras famílias da colônia. Logo, ela se tornara uma figura reconhecida pela comunidade, recebendo encomendas que lhe permitiram comprar materiais de melhor qualidade e até sonhar com uma máquina de costura moderna.

O crescimento econômico trouxe não só alívio, mas também uma nova esperança para a família. Aos poucos, começaram a planejar melhorias na casa de madeira, incluindo um novo quarto para Luigi e sua irmã mais nova, Rosa, que também crescia rapidamente e já ajudava a mãe em pequenos afazeres. Com cada conquista, sentiam-se mais enraizados naquele solo, que, embora distante de sua terra natal, começava a se parecer com um verdadeiro lar.

Os Casagrande encontraram nos outros colonos italianos não apenas vizinhos, mas uma verdadeira extensão de sua família. A solidariedade mútua era o alicerce daquela pequena comunidade, onde cada gesto de apoio fazia a diferença. Em momentos de necessidade, fosse para levantar um novo galpão, colher uma safra antes da chegada da chuva ou enfrentar os desafios impostos pelo clima tropical, os colonos estavam sempre prontos a ajudar uns aos outros, criando laços que iam além do sangue.

Aos domingos, as reuniões na igreja da colônia eram um ponto alto na semana. A pequena capela, construída em mutirão, era mais do que um espaço de oração; era um local onde a alma da comunidade se fortalecia. Ali, ao som de cânticos entoados no dialeto vêneto, os Casagrande sentiam a conexão com sua herança cultural e espiritual. As missas, simples, mas carregadas de emoção, eram seguidas por longas conversas e risadas ao redor de mesas improvisadas, repletas de pratos típicos como polenta, salame e pão caseiro.

Entre histórias sobre as dificuldades da travessia do oceano e as vitórias na terra nova, a saudade da Itália era constantemente compartilhada, mas, com o tempo, também transformada. Embora a nostalgia da pátria nunca desaparecesse por completo, os Casagrande perceberam que, naquele novo lar, haviam plantado raízes profundas. O solo que antes parecia tão estranho agora produzia os frutos de seus esforços. E, na companhia de seus conterrâneos, descobriram que o sentido de pertencimento não dependia apenas do lugar, mas das pessoas que os cercavam.

Com cada colheita bem-sucedida e cada celebração comunitária, ficou claro para os Casagrande que haviam encontrado mais do que um espaço para sobreviver: haviam construído um lugar onde poderiam sonhar, crescer e, acima de tudo, prosperar.

Décadas mais tarde, os Casagrande haviam se tornado uma referência em toda a região. Reconhecidos por sua incansável dedicação ao trabalho e pela visão inovadora, a família não apenas prosperou, mas também deixou um legado que ecoava além das fronteiras de suas terras. Seus descendentes expandiram a propriedade original, transformando-a em um complexo agrícola diversificado, que ia muito além do cultivo inicial de uvas e cereais. Vinhedos cuidadosamente cultivados deram origem a premiados vinhos regionais, enquanto plantações de frutas e hortaliças abasteciam mercados locais e contribuíam para o desenvolvimento da economia da jovem cidade de Caxias do Sul.

A participação da família não se restringiu à esfera econômica. Os Casagrande desempenharam papéis importantes na vida comunitária, ajudando a fundar escolas, associações culturais e até uma cooperativa agrícola que impulsionou o progresso de muitas outras famílias imigrantes. O espírito de união, que fora vital nos primeiros anos de luta, permaneceu uma característica marcante da família, transmitido de geração em geração.

Na Itália, na pequena frazione de Miane, a história dos Casagrande que partiram em busca de uma nova vida era contada com reverência e orgulho. Cartas enviadas ao longo dos anos, cheias de relatos sobre as conquistas e os desafios enfrentados no Brasil, eram lidas e guardadas como tesouros. Fotografias em preto e branco mostrando os campos férteis de Caxias do Sul e os rostos sorridentes dos descendentes eram compartilhadas nas celebrações familiares, uma ponte simbólica entre os dois continentes.

Hoje, a trajetória dos Casagrande é lembrada como um exemplo inspirador de coragem, determinação e fé no futuro. Suas conquistas não apenas enriqueceram a história de Caxias do Sul, mas também fortaleceram os laços culturais entre Brasil e Itália. A memória dos que ousaram sonhar com uma vida melhor em terras desconhecidas permanece viva, um testemunho de que o espírito humano é capaz de superar as maiores adversidades e transformar sonhos em realidade.

Nota do Autor


A história apresentada é parte do livro Raízes que Cruzaram o Oceano: do Veneto ao Novo Mundo. Trata-se de um romance fictício, porém amplamente inspirado em fatos reais e relatos coletados pelo autor junto a descendentes daqueles pioneiros que, com coragem e determinação, desbravaram novos horizontes em terras distantes. Os nomes dos personagens e alguns eventos foram adaptados ou recriados para preservar a identidade das famílias e tornar a narrativa mais envolvente. O sobrenome "Casagrande" foi escolhido para exemplificar e dar vida à história, sendo um sobrenome bastante comum na Itália, o que facilita sua identificação com os contextos históricos e culturais retratados. Apesar das adaptações literárias, o espírito das jornadas, os desafios enfrentados e as conquistas alcançadas são um tributo fiel ao legado deixado por esses imigrantes. Esta obra é uma homenagem à resiliência, ao trabalho árduo e ao amor que moldaram uma nova história, tanto para os que partiram quanto para os que ficaram.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta



domingo, 3 de agosto de 2025

O Diário de Giuseppe Conto: Uma Jornada de Coragem e Superação.


 

O Diário de Giuseppe Conto 

Uma Jornada de Coragem e Superação


Giuseppe Conto era um agricultor humilde de Maser, então uma pequena localidade no interior da província de Treviso, Itália. Movido pela promessa de uma vida melhor no Brasil, ele se despediu da esposa Maria e dos dois filhos pequenos, com a esperança de trazê-los para o novo mundo assim que estivesse estabelecido. Com o coração pesado, mas cheio de determinação, embarcou em um navio a vapor no porto de Gênova. Mal sabia ele que os próximos meses testariam sua fé e resiliência como nunca antes.

Logo após o embarque, Giuseppe começou a perceber que a viagem seria muito diferente do que imaginava. Em seu diário, ele descreveu o primeiro choque:

"São oito horas do dia seguinte à partida, e os responsáveis pelas mesas foram chamados para buscar as rações de pão e manteiga que seriam distribuídas para a semana. Meu Deus, que desilusão! O pão é uma massa horrível de farelo, centeio, sementes de linho e outras imundícies indescritíveis. Nem os cães famintos aceitariam aquilo. À noite, nos deram chá… ou algo que deveria ser chá. Era apenas água suja, sem açúcar, impossível de engolir."

Os dias se arrastavam. A escassez de alimentos e a má qualidade da água tornavam cada momento um teste de resistência. Giuseppe descreveu em detalhes o desespero que se instalou quando o destilador de água do navio quebrou:

"Ficamos dias sem uma gota de água potável. A única opção era uma água fétida, retirada de barris que serviam como lastro do navio. Estava cheia de vermes, mas era tudo o que tínhamos. Alguns vomitavam após beber, mas a sede era mais forte que o nojo. Por sorte – e apenas por sorte – um mecânico russo que estava a bordo conseguiu consertar a máquina."

A bordo, o clima era pesado. Doenças tinham começado a se espalhar entre os passageiros. Vários adoeceram, incluindo Pietro, um jovem de 18 anos que Giuseppe havia conhecido durante a viagem. Giuseppe tentou cuidar do rapaz, mas ele acabou sucumbindo à febre. O funeral improvisado no mar foi um lembrete cruel da fragilidade de suas vidas.

Finalmente, após semanas de sofrimento, o navio chegou ao porto do Rio de Janeiro. Giuseppe desceu exausto, mas aliviado por estar em terra firme. Ele foi encaminhado para uma ainda nova colônia agrícola no interior do estado do Rio Grande do Sul, onde encontrou mais desafios. As condições de trabalho eram duras, e a saudade da família era uma dor constante. Mesmo assim, ele se recusava a desistir.

Em uma das cartas enviadas à esposa, Giuseppe escreveu:

"Maria, o Brasil não é o paraíso que nos prometeram. O trabalho é árduo, e a solidão pesa no coração. Mas já comecei a cultivar a terra, e em breve terei algo para nos sustentar. Ainda sonho com o dia em que você e as crianças poderão se juntar a mim. Até lá, reze por mim, pois são as suas orações que me mantêm forte."

Apesar de todas as adversidades, Giuseppe conseguiu transformar um pequeno pedaço de terra em uma propriedade próspera. Anos depois, ele finalmente reuniu sua família, e juntos reconstruíram suas vidas no Brasil. A jornada foi marcada por sofrimento e desilusões, mas também por coragem e esperança – qualidades que transformaram Giuseppe em um verdadeiro pioneiro.

Nota do Autor



O Diário de Giuseppe Conto: Uma Jornada de Coragem e Superação é uma obra que pulsa com a força da humanidade em meio às tempestades da vida. Inspirado por relatos de imigrantes que enfrentaram o desconhecido em busca de um futuro melhor, este livro é um tributo à coragem de quem abandona a terra natal para abraçar um destino incerto.
Giuseppe Conto é a representação de tantos anônimos que atravessaram mares, suportaram privações e venceram obstáculos intransponíveis. Seu diário, fictício mas profundamente enraizado na realidade histórica, revela as lutas de uma alma resiliente diante das dores da perda, das dificuldades do trabalho e da solidão do exílio. Mas também é uma celebração das pequenas conquistas, dos momentos de união, da força da fé e do poder transformador da esperança.
Esta história não é apenas sobre o passado. É um lembrete de que a superação é uma constante na trajetória humana, seja em terras estrangeiras, seja em desafios cotidianos. Giuseppe nos ensina que, mesmo nos dias mais sombrios, é possível encontrar luz, desde que tenhamos coragem de continuar a jornada.
Aos leitores, desejo que este livro não apenas os transporte para a época de Giuseppe, mas também os inspire a refletir sobre suas próprias jornadas, reconhecendo o poder da determinação e da solidariedade em nossas vidas.
Com profunda gratidão,
Dr. Piazzetta




sexta-feira, 1 de agosto de 2025

A Emigraçao Italiana, as Toneladas Humanas, o Cólera e o Torna Viagem

 


A Emigração Italiana, as Toneladas Humanas, as 

Epidemias de Cólera e o Torna Viagem 


O intenso verão de 1893 trouxe notícias de casos isolados de cólera que começavam a surgir em algumas cidades europeias, incluindo Gênova e Nápoles. Embora os números fossem baixos, o histórico da doença e suas consequências devastadoras mantinham as autoridades em alerta. Para a maioria da população, contudo, a ameaça parecia distante, pouco mais que rumores sem impacto imediato em suas vidas. Entre os emigrantes que lotavam os portos, o foco estava no desejo de partir e no recomeço que aguardavam além do oceano.

Gênova, um dos maiores portos da Itália, era o destino final de famílias inteiras provenientes das áreas rurais do centro norte do país, buscando escapar da pobreza e do desemprego que assolavam suas terras. Em meio ao calor intenso, milhares de pessoas se amontoavam com seus pertences em um cenário de caos e expectativa. As condições precárias e a superlotação eram uma constante, mas, para muitos, eram apenas etapas necessárias de uma jornada para um futuro promissor.

No dia 15 de agosto de 1893, o vapor Remo estava pronto para zarpar rumo ao Rio de Janeiro, com uma escala prevista no porto de Nápoles para o embarque de emigrantes do sul do país. Mais de mil passageiros subiram a bordo em Gênova, acompanhados por cerca de sessenta tripulantes. Entre eles estava a família de Piero Antonello, composta por nove membros. Vindos da pequena localidade de San Pietro Novello, em Monastier di Treviso, eles haviam abandonado a vida de agricultores arruinados para tentar a sorte em terras brasileiras. Carregavam não apenas seus poucos pertences, mas também o peso das despedidas e a esperança de um recomeço.

O convés do Remo refletia a diversidade e a agitação dos portos italianos: vozes em diferentes dialetos ecoavam enquanto famílias se acomodavam, crianças exploravam curiosas os espaços do navio e adultos trocavam relatos de suas expectativas. Olhares saudosos se voltavam para a costa italiana enquanto o navio começava a afastar-se lentamente. Para muitos, aquele era o último vislumbre da terra natal.

Apesar das condições apertadas e do calor sufocante, o clima a bordo era de otimismo cauteloso. Poucos se preocupavam com o risco de doenças; a presença de cólera em cidades como Gênova e Nápoles não era um tema amplamente discutido entre os passageiros. A promessa de um futuro melhor superava qualquer receio que pudesse surgir naquele momento.

Conforme o Remo navegava em direção ao horizonte, cada passageiro carregava sua história, suas perdas e suas esperanças. A viagem transatlântica era um salto no desconhecido, mas também a única chance de muitos para escapar da pobreza e reconstruir suas vidas. No silêncio das primeiras noites em alto-mar, a sombra das incertezas dividia espaço com a fé em dias melhores que os aguardavam do outro lado do oceano.

Já no dia seguinte que o navio zarpou apareceu um caso de colera a bordo,  o qual foi mal diagnosticado pelo capitão ou ele, seguindo as ordens dos armadores, preferiu não tomar conhecimento, considerando que fosse somente uma gastroenterite e resolveu irresponsavelmente prosseguir com a viagem. 

O navio seguiu normalmente para o porto de Nápoles, onde outro numeroso grupo de aproximadamente quinhentos passageiros aguardava ansiosamente para embarcar. Eram emigrantes provenientes das regiões rurais mais meridionais da Itália, carregando consigo o peso das dificuldades e a esperança de um futuro melhor. Entre eles destacava-se a família de Vittorio Esposito, composta por seis membros, cada qual trazendo no olhar a mistura de incerteza e determinação, características de quem deixa para trás suas raízes em busca de uma nova vida.

Terminados os procedimentos de embarque o navio zarpou em direção do porto do Rio de Janeiro, levando quase 1600 pessoas ao todo entre tripulantes e passageiros. Na ocasião segundo relatos de um desses passageiros, a dieta servida consistia em arroz de má qualidade e carne salgada com lentilhas, o que frequentemente causava diarreia e disenteria. 

No dia 17 de agosto mais casos de diarréia e vômitos surgiram seguidos das primeiras mortes. O diagnóstico de cólera a bordo foi então declarado. Mesmo assim o comandante não abortou a viagem retornando para Nápoles, o que teria salvo centenas de pessoas. Logo após a partida de Gênova, os primeiros casos começaram a se manifestar entre os passageiros: febre, diarreia intensa, vômitos, cólicas abdominais e espasmos musculares violentos. A pele dos enfermos tornava-se azulada e enrugada, os olhos encovados, e a morte podia ocorrer em poucas horas devido a uma desidratação rápida e intensa. O pânico se espalhou tão  rápido entre os passageiros, quanto o próprio cólera, que viam seus companheiros sucumbirem à doença sem qualquer assistência médica adequada.

Para a família Esposito, a viagem começara com lágrimas de despedida e promessas de um futuro melhor. Em Nápoles, eles se separaram dos amigos e parentes com abraços longos e olhares carregados de emoção, mas também de esperança. A bordo, Maria Esposito tentava acalmar seus filhos, ocupando-os com histórias sobre a vida que teriam no Brasil. Porém, apenas alguns dias após a partida, os sinais da tragédia começaram a emergir.

Vittorio Esposito, o patriarca da família, foi um dos primeiros a adoecer. Maria notou o cansaço incomum do marido e, em seguida, a febre e as cólicas que o deixaram debilitado. Buscando ajuda, ela procurou o médico do navio, um jovem inexperiente que logo se viu sobrecarregado com dezenas de casos semelhantes. Seus suprimentos médicos eram limitados e sua capacidade de resposta, insuficiente diante da magnitude do problema.

A doença também ceifou a vida de dois membros da família de Piero Antonello, a mãe viúva que os acompanhava e um dos seus filhos menores. A tragédia causada pela epidemia a bordo foi particularmente cruel para Piero Antonello e sua família. Em meio ao caos e à falta de recursos, a doença não fez distinção entre jovens ou idosos, fortes ou frágeis. Primeiro, foi sua mãe, uma mulher já idosa, cuja saúde delicada não resistiu aos sintomas devastadores do cólera. Em questão de dias, as febres intensas, a desidratação severa e a fraqueza extrema tiraram-lhe a vida, deixando Piero com o coração pesado pela perda de quem era a figura central de suas memórias e tradições familiares.

A situação tornou-se ainda mais insuportável quando um de seus filhos, um menino de apenas sete anos, também começou a apresentar os sintomas. O olhar inocente e assustado da criança, misturado ao desespero do pai que tentava protegê-lo de um inimigo invisível, tornou-se uma cena gravada na mente dos que assistiam à tragédia. Piero fez o que pôde com os escassos recursos disponíveis. Tentou hidratá-lo com a pouca água que conseguia, segurou-o nos braços por noites seguidas e implorou ao médico do navio por alguma intervenção. No entanto, o pequeno corpo, já enfraquecido pela alimentação precária e pelas condições insalubres da viagem, não suportou.

O momento do adeus foi avassalador. As despedidas a bordo não tinham direito a cerimônias ou conforto. Os corpos eram rapidamente envoltos em lonas, amarrados com uma pedra aos pés para afundarem rápido e lançados ao mar, um gesto necessário para evitar a propagação ainda maior da doença, mas que dilacerava os corações de quem ficava. Piero viu sua mãe e seu filho serem entregues às profundezas do oceano em questão de dias, sem uma sepultura onde pudesse prantear, sem um lugar onde pudesse se conectar com as lembranças daqueles que amava.

A dor da família de Piero foi compartilhada silenciosamente por outras a bordo. Cada perda era sentida não apenas como um luto individual, mas como um lembrete cruel da fragilidade da vida em meio às adversidades. As lágrimas de Piero se misturaram às de outras famílias que, como a sua, haviam embarcado no navio carregando sonhos e esperança, mas agora se agarravam ao pouco que restava: a força de continuar vivendo, mesmo diante de uma realidade tão implacável.

Com o passar dos dias, o número de doentes aumentou exponencialmente. O ambiente confinado dos porões da terceira classe, onde viajavam os emigrantes, era um terreno fértil para a propagação do cólera. As condições de higiene precárias pela escassez de água potável, instalações sanitárias insuficientes e a falta de alimentos adequados agravavam a situação. Maria, mesmo debilitada emocionalmente, tentava proteger os filhos do pior. Ela fazia o que podia para mantê-los longe das áreas mais afetadas, mas o espaço limitado do navio tornava essa tarefa quase impossível.

As mortes começaram a ocorrer com frequência alarmante. Primeiro eram os mais frágeis: idosos e crianças sucumbiam rapidamente à doença. Os corpos eram enrolados em lençóis e, com poucas palavras ditas em oração, lançados ao mar, o que gerava cenas de desespero e gritos de dor daqueles que perdiam seus entes queridos.

Quando o navio finalmente se aproximou da costa brasileira, a bordo reinava uma esperança frágil de que a chegada ao Rio de Janeiro pudesse representar a salvação. Porém, ao avistarem os oficiais sanitários que se aproximavam em pequenos barcos, a tensão cresceu. Após inspeções rápidas, veio a notícia que ninguém queria ouvir: o navio não teria permissão para atracar. As autoridades brasileiras temiam que a epidemia se espalhasse para a população local e ordenaram que o navio permanecesse em quarentena no mar com uma bandeira amarela hasteada no mastro principal para denunciar a sua situação.

A rejeição foi um golpe devastador. Os passageiros, já exaustos e famintos, não tinham forças para protestar. A bordo, o desespero atingiu seu ápice. A comida e a água se esgotaram, as mortes continuaram, e o odor da doença e da decomposição impregnava o ambiente. Os Esposito, como tantos outros, rezavam incessantemente por um milagre que não parecia vir.

Após dias intermináveis de espera, a decisão final foi anunciada: o navio teria que retornar à Itália. Para muitos, aquilo era o colapso de um sonho e o fim de qualquer esperança. A família Esposito, como os demais passageiros, viu-se forçada a enfrentar mais semanas de viagem, voltando para o ponto de partida, agora marcada pela dor, pela perda e pela desesperança.

A jornada de retorno, conhecida como "Torna Viagem", simbolizava não apenas um retrocesso físico, mas também emocional e espiritual. Para Maria, Vittorio e os filhos que sobreviveram, para a família Exposito, o que restava era tentar reconstruir suas vidas em meio aos escombros de uma tragédia que marcaria suas memórias para sempre. 

O "Torna Viagem" foi um processo trágico e emblemático da história da imigração no Brasil durante o século XIX. Implementado como uma medida de saúde pública, ele consistia em impedir o desembarque de passageiros em navios que transportavam imigrantes, caso houvesse registro de epidemias a bordo, como o temido cólera. Em vez de permitir que os passageiros desembarcassem e recebessem tratamento, as autoridades brasileiras ordenavam que esses navios retornassem aos seus portos de origem, levando consigo toda a carga de sofrimento, mortes e desespero.

Essa prática preventiva era motivada pelo temor justificado de que doenças contagiosas pudessem se espalhar pela população local, especialmente em cidades portuárias como o Rio de Janeiro, onde o acesso a infraestrutura sanitária era limitado. Assim, os navios eram submetidos a rigorosas inspeções sanitárias logo ao se aproximarem da costa. A detecção de mortes ou de sinais de doenças altamente contagiosas, como diarreia severa, febre e desidratação, geralmente levava à decisão de envio imediato do navio de volta à Europa.

Embora tivesse a intenção de proteger a saúde pública, o "Torna Viagem" gerava grande controvérsia. Para os imigrantes, que haviam investido todas as suas economias e sonhos em uma nova vida no Brasil, essa decisão era devastadora. Durante a viagem de ida, as condições a bordo já eram precárias: os porões das embarcações eram abarrotados, mal ventilados e mal iluminados. A higiene era quase inexistente, com instalações sanitárias insuficientes e água potável frequentemente contaminada. A disseminação de doenças como o cólera era praticamente inevitável.

No retorno forçado, a situação se agravava. Muitos passageiros já estavam enfraquecidos pela longa viagem e pela doença. O número de mortos aumentava, e os corpos eram frequentemente lançados ao mar sem cerimônias, um ato que aumentava o desespero daqueles que perdiam seus entes queridos. A comida e a água tornavam-se ainda mais escassas, enquanto a tripulação, também exausta, lutava para manter o controle em meio ao caos.

Para a famílias Esposito e Antonello, o "Torna Viagem" foi a culminação de um pesadelo que começou ainda nos primeiros dias de viagem. Após semanas de agonia, eles finalmente chegaram ao porto de Nápoles, mas o desembarque trouxe pouca sensação de alívio. Muitos passageiros estavam em estado crítico, debilitados pela doença e pela fome. Autoridades médicas e locais trabalharam incansavelmente para conter a epidemia e fornecer cuidados aos doentes. Os casos mais graves, como o de Vittorio Esposito, foram levados às pressas para hospitais improvisados, enquanto Maria e os filhos aguardavam com angústia a recuperação do patriarca.

O impacto psicológico do retorno foi imenso. Para os Esposito e tantas outras famílias, o "Torna Viagem" não foi apenas um revés prático, mas um golpe em suas esperanças e sonhos. Muitos nunca mais tentariam emigrar, marcados para sempre pelo trauma da experiência. Outros, obstinados pela necessidade, arriscariam novas travessias em busca de um futuro melhor, mas com cicatrizes indeléveis.

O "Torna Viagem" permaneceu em vigor até o início do século XX, quando avanços em saúde pública e infraestrutura permitiram a adoção de medidas mais humanas, como quarentenas em ilhas próximas aos portos e hospitais de isolamento. Hoje, é lembrado como um dos capítulos mais sombrios da imigração, destacando a vulnerabilidade dos imigrantes e a complexidade dos desafios enfrentados em busca de uma vida melhor.

Naquele verão além do Remo outros três navios transportando imigrantes italianos chegaram ao Brasil nas mesmas condições. O navio Andrea Doria chegou ao Porto do Rio de Janeiro em 12 de setembro de 1893 pelos mesmos motivos também não obteve a permissão para desembarcar os seus passageiros. Durante a travessia tinham ocorrido 91 casos de cólera a bordo e assim o navio recebeu a ordem de retornar ao porto de origem, frustando todos aqueles imigrantes e suas famílias. 

No dia 24 de agosto de 1893, o navio italiano Carlo R. atracou nas proximidades do Porto do Rio de Janeiro, trazendo consigo uma história de sofrimento e desespero. Durante a longa travessia atlântica, uma violenta epidemia de cólera assolou a embarcação, ceifando a vida de 100 pessoas. Entre os mortos estavam crianças, idosos e outros imigrantes debilitados pelas precárias condições de higiene e alimentação. A situação a bordo era calamitosa: além dos mortos, um número ainda maior de passageiros encontrava-se gravemente doente, lutando contra febres, diarreia intensa e desidratação severa.

Quando as autoridades sanitárias brasileiras subiram a bordo para vistoriar o Carlo R., foram imediatamente impactadas pelo cenário dantesco. Relatos da época descrevem o navio como uma verdadeira prisão flutuante de sofrimento, com um odor insuportável que impregnava o ar, resultado da falta de ventilação, da decomposição de resíduos e da aglomeração humana em condições desumanas. Os porões estavam lotados de passageiros exaustos e doentes, muitos deles amontoados em estreitas camas de madeira ou diretamente sobre o chão, sem acesso a cuidados básicos.

A inspeção confirmou o pior: o navio era um foco de contaminação. O estado deplorável da embarcação e o alto risco de propagação da epidemia levaram as autoridades brasileiras a tomarem uma decisão drástica. O Carlo R. foi sumariamente interditado e impedido de desembarcar seus passageiros em terras brasileiras. A embarcação recebeu ordens de retornar imediatamente ao porto de origem na Itália, levando consigo não apenas os doentes e os corpos dos que haviam perecido, mas também os sonhos despedaçados de centenas de famílias que acreditavam estar a caminho de uma vida nova e promissora.

O retorno forçado para a Itália foi uma sentença cruel para aqueles a bordo. A jornada de volta, em condições ainda mais deterioradas, prometia mais sofrimento e mortes. Sem acesso a tratamento médico adequado e com estoques de comida e água cada vez mais escassos, os passageiros enfrentaram uma verdadeira prova de resistência. O sonho de "fazer a América" transformou-se em um pesadelo flutuante, onde a esperança dava lugar ao desespero e à resignação diante do incontrolável.

A tragédia do Carlo R. é lembrada como um símbolo dos desafios enfrentados pelos imigrantes italianos no final do século XIX. Representa não apenas as adversidades de uma travessia transatlântica, mas também as políticas rigorosas de contenção sanitária da época, que frequentemente sacrificavam vidas e sonhos em nome da proteção coletiva.

No dia 16 de setembro do mesmo ano foi a vez do navio Vicenzo Florio ser proibido de desembarcar os seus passageiros devido o surgimento de uma epidemia a bordo enquanto atravessava o oceano com destino ao Brasil. Este navio também foi proibido de desembarcar os passageiros ou qualquer membro da tripulação e teve que empreender a viagem de volta ao porto de origem.

Quando finalmente o Vincenzo Florio chegou ao porto, as autoridades sanitárias brasileiras, alertadas pelos registros de mortes e relatos de doenças durante a travessia, realizaram uma rigorosa inspeção. As evidências de contaminação e o alto risco de propagação da epidemia levaram à temida decisão: o navio foi proibido de desembarcar passageiros ou tripulação. Seguindo os protocolos de saúde pública da época, a embarcação recebeu ordens para empreender a viagem de volta ao porto de origem na Itália.

A decisão foi um golpe devastador para os imigrantes. Após semanas enfrentando as adversidades do mar e os horrores da doença, a proibição de desembarque significava a destruição de seus sonhos de uma nova vida. Famílias inteiras, que haviam deixado tudo para trás em busca de oportunidades no Brasil, viram-se forçadas a retornar para uma terra onde a miséria e o desemprego as aguardavam.

A viagem de retorno foi ainda mais desafiadora. O número de doentes aumentava a cada dia, e os suprimentos de comida e água estavam perigosamente baixos. Muitos passageiros sucumbiram à epidemia durante o trajeto de volta, e os que sobreviveram chegaram à Itália profundamente debilitados, física e emocionalmente.

O episódio do Vincenzo Florio reflete um capítulo doloroso da história da imigração no Brasil e do fenômeno conhecido como "Torna Viagem". Ele simboliza os desafios e tragédias enfrentados por aqueles que, movidos pela esperança, se lançavam ao mar em busca de uma vida melhor. Além disso, destaca as condições desumanas a que esses imigrantes eram submetidos e as duras políticas sanitárias que, embora visassem proteger a população local, resultavam em sofrimento extremo para os viajantes. Essas histórias permanecem como testemunhos de coragem, resiliência e da busca incessante por um futuro melhor, mesmo diante das adversidades mais cruéis.

Entre os meses de agosto e setembro de 1893, quase seis mil imigrantes italianos tiveram seus destinos drasticamente alterados. Nesse período, quatro grandes vapores italianos, cada um transportando aproximadamente 1.500 imigrantes, viram suas jornadas interrompidas de forma abrupta ao serem impedidos de desembarcar no Porto do Rio de Janeiro. Após mais de um mês enfrentando os desafios e privações de uma longa travessia oceânica, esses navios foram obrigados a retornar aos portos de embarque na Itália, transformando sonhos de esperança e prosperidade em desespero e frustração.

Essas famílias deixavam a pátria com o propósito de “fazer a América”, como dizia-se à época, mas a concretização desse ideal exigia mais do que coragem e disposição. A decisão de emigrar era acompanhada de meses, ou até anos, de planejamento meticuloso e uma preparação rigorosa. Não bastava o desejo de partir; era necessário reunir recursos financeiros para custear as passagens e reunir uma vasta gama de documentos que atestavam desde a saúde até o histórico pessoal dos viajantes.

Entre os papéis exigidos estavam o passaporte, que marcava a saída de sua terra natal, e o visto, necessário para transitar pelos portos de escala e entrar no Brasil. Além disso, os imigrantes precisavam de certificados de vacinação, muitas vezes obtidos em clínicas lotadas nos dias que antecediam a viagem, bem como de certificados de inspeção médica, que atestavam estarem livres de doenças contagiosas. Como se isso não bastasse, era necessário ainda um certificado de antecedentes penais, que assegurava às autoridades brasileiras que os recém-chegados não representavam uma ameaça à ordem pública. Cada etapa burocrática representava um novo obstáculo, que os emigrantes superavam com determinação, movidos pelo sonho de um futuro melhor.

A partir de abril de 1893, começaram a chegar às autoridades brasileiras relatos alarmantes enviados pelas representações diplomáticas no exterior. Essas comunicações informavam sobre as precaríssimas condições sanitárias nos principais portos europeus afetados por uma devastadora epidemia de cólera. Em resposta, as embarcações provenientes dessas regiões, ou aquelas que tivessem registrado qualquer caso da doença a bordo, passaram a ser admitidas nos portos brasileiros somente após cumprirem rigorosos protocolos sanitários. Esses incluíam a desinfecção completa da embarcação, assim como a limpeza de bagagens, roupas e objetos pessoais dos passageiros. Todas essas etapas ocorriam no Lazareto da Ilha Grande, para onde os navios deveriam se dirigir antes de seus ocupantes terem a permissão de pisar em terra firme.

Como medida preventiva adicional, o governo brasileiro decidiu suspender temporariamente a corrente migratória. A partir de 16 de agosto de 1893, foi proibida a entrada de imigrantes transportados por vapores oriundos da Itália e da Espanha, além de todos os navios provenientes de portos franceses e africanos do Mediterrâneo, declarados oficialmente como infectados pela epidemia.

Além disso, foi imposta uma quarentena rigorosa para embarcações com passageiros infectados ou mesmo sob suspeita de contaminação por cólera. Apenas no início de 1894, quando a epidemia começou a ser controlada, a situação se normalizou, permitindo a retomada gradual do fluxo migratório a partir de regiões consideradas livres da doença.

Entre as medidas profiláticas adotadas, uma das mais drásticas foi o chamado “torna-viagem”, que consistia no retorno forçado do navio ao porto de origem. Essa prática era aplicada em casos extremos, especialmente quando havia grande número de doentes e mortos a bordo. Infelizmente, foi exatamente essa a situação enfrentada por quatro vapores italianos que chegaram ao Porto do Rio de Janeiro entre agosto e setembro de 1893. Essas embarcações, carregadas de passageiros esperançosos em busca de uma nova vida, tiveram seus sonhos interrompidos de forma trágica, sendo obrigadas a empreender a dolorosa jornada de volta à Europa.

A travessia, no entanto, era um teste de resistência. A bordo dos vapores, as condições eram muitas vezes desumanas. Os porões abarrotados tornavam o ar sufocante, enquanto os alimentos e a água potável eram racionados. Doenças como o cólera ou a febre tifoide encontravam terreno fértil para se espalhar rapidamente entre os passageiros enfraquecidos. Qualquer pequeno sintoma era motivo de pânico, pois uma epidemia a bordo podia condenar não apenas os doentes, mas também os saudáveis ao infortúnio do "Torna Viagem".

Para os imigrantes que sonhavam com uma nova vida no Brasil, o retorno à Itália não era apenas um revés prático, mas um golpe moral e emocional devastador. A dura realidade de ver o horizonte do novo mundo desaparecer em direção oposta era difícil de suportar. Muitos voltavam ainda mais pobres e fragilizados do que quando partiram, tendo perdido suas economias, sua saúde e, em alguns casos, seus entes queridos durante a viagem. Ainda assim, o desejo de reconstruir suas vidas continuava a pulsar, mesmo que o caminho para o futuro permanecesse incerto e doloroso.


Nota do Autor


Escrever A Emigração Italiana, as Toneladas Humanas, o Cólera e o Torna Viagem foi um mergulho profundo nas páginas esquecidas da história, onde vidas inteiras são comprimidas em estatísticas e relatos oficiais. Este livro nasce do desejo de dar voz aos protagonistas de um dos maiores deslocamentos humanos da história moderna: os emigrantes italianos do final do século XIX e início do XX.


Em um período de intensa crise social, política e econômica, milhares de famílias italianas enfrentaram a fome, o desemprego e a falta de perspectivas, embarcando rumo ao desconhecido em busca de sobrevivência. Contudo, a travessia marítima muitas vezes transformava a esperança em tragédia. Navios superlotados, condições insalubres e epidemias, como o cólera, transformavam os sonhos em luto.


Ao retratar os desafios, as perdas e as conquistas desses emigrantes, procuro não apenas resgatar suas histórias, mas também refletir sobre a resiliência e a humanidade que resistem mesmo diante das adversidades mais brutais.


Este livro também revisita o conceito do torna viagem — o regresso, muitas vezes forçado ou desejado, à terra natal —, como símbolo de um ciclo interminável de saudade, fracasso e recomeço. Ele revela o peso do passado que esses indivíduos carregavam consigo, mesmo ao tentar construir um novo futuro.


Dedico este trabalho a todos os descendentes desses corajosos emigrantes, para que jamais esqueçam a jornada dos que vieram antes deles, e às almas daqueles que nunca chegaram ao destino, mas cujas histórias merecem ser contadas.


Espero que as páginas que seguem sirvam como um convite à reflexão e uma homenagem à força indomável do espírito humano diante do sofrimento.

Dr. Piazzetta