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quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Sob o Céu do Utopia – A Travessia da Esperança

 


Sob o Céu do Utopia 

A Travessia da Esperança


Era o ano de 1886, muitos italianos estavam deixando a sua terra natal em busca de uma vida melhor no Brasil. Entre eles, estavam os seis membros da família Rossi, o casal e quatro filhos menores de idade, que embarcaram no navio Utopia rumo ao novo mundo. A viagem prometia ser longa e desafiadora, mas eles estavam determinados a chegar ao seu destino.
Na pequena vila onde viviam, os Rossi se despediram dos amigos e parentes com lágrimas nos olhos, mas com a esperança de um futuro melhor. O Utopia partiu do porto de Gênova, na Itália, em uma manhã ensolarada, porém com muito frio, característica do começo do inverno. Durante os primeiros dias de viagem, tudo correu bem. O navio fez uma parada programada no porto de Nápoles, onde subiram à bordo mais algumas centenas de imigrantes provenientes do sul da Itália. Os passageiros à bordo eram todos imigrantes italianos, e se acostumaram com a dura rotina do navio. A bordo se ouvia a algazarra provocada pelas dezenas de dialetos dos passageiros, muitos deles incompreensíveis entre si, como se fossem falados por pessoas de um outro país.
Quando atingiram a linha do Equador, a calmaria da viagem logo seria interrompida por uma tempestade terrível. Os ventos aumentaram e as ondas ficaram mais altas, balançando violentamente o antigo navio. Os Rossi se agarraram aos corrimãos e aos móveis para não cairem no chão. O barulho dos trovões era ensurdecedor e o mar parecia querer engolir o navio com volumosas ondas que despejavam toneladas de água no convés.
A tempestade durou mais do que um dia e os passageiros tiveram que se amarrar uns aos outros para não serem jogados para fora do navio. A comida ficou escassa pela dificuldade de se cozinhar e a água também começou a ser racionada. A esperança de sobreviver a essa tempestade parecia estar cada vez mais distante.
Mas, mesmo diante de todas as dificuldades, os imigrantes italianos mantiveram a esperança de chegar ao Brasil. Eles rezaram para os seus santos de devoção e pediram forças para suportar aquela tempestade. Em meio às orações e às lágrimas, a família Rossi se uniu aos demais passageiros em um coro de esperança e fé.
Finalmente, na parte da tarde do segundo dia a tempestade começou a diminuir e o sol aos poucos voltou a brilhar. Os passageiros puderam sair dos seus pavilhões e sentir o cheiro do mar. O navio Utopia havia sobrevivido à tempestade e a esperança voltou a se renovar nos corações dos imigrantes italianos.
Após alguns dias de calmaria, o navio Utopia finalmente avistou a costa brasileira. A emoção tomou conta de todos os passageiros, que aguardavam ansiosamente para desembarcar. Os Rossi avistaram a cidade do Rio de Janeiro ao longe e não puderam conter as lágrimas de felicidade.
Ao desembarcarem no porto do Rio de Janeiro, a família Rossi e os demais imigrantes italianos foram recebidos com muita alegria. Eles se abraçaram, cantaram e dançaram em agradecimento por terem sobrevivido à tempestade. As autoridades brasileiras os receberam com carinho e os encaminharam para os alojamentos, onde ficariam hospedados nas instalações da Hospedaria dos Imigrantes até serem encaminhados ao lugar de destino e se instalarem definitivamente no país. Depois de alguns dias continuaram a viagem, agora embarcados em um pequeno vapor costeiro que os levou até o porto de Santos. Desta cidade foram de trem até uma pequena cidade do interior de São Paulo, perto de onde onde uma irmã do Sr. Rossi estava vivendo já há alguns anos.
Os Rossi começaram a vida no Brasil com muita dificuldade, mas com muita determinação. Eles trabalharam duro para conseguir emprego e garantir o sustento da família. Aos poucos aprenderam a língua portuguesa e se adaptaram aos costumes do novo país. Mas a esperança de uma vida melhor sempre esteve presente em seus corações.
Com o tempo, quando também os filhos começaram a trabalhar, a família Rossi conseguiu comprar um pequeno sítio na zona rural e começaram a produzir alimentos para vender nas cidades vizinhas. O trabalho árduo era recompensado com o sorriso dos clientes satisfeitos e com o dinheiro que ajudava a sustentar a família.
Ao longo dos anos, os filhos cresceram e se tornaram brasileiros de coração. Eles aprenderam a valorizar a cultura e as tradições do Brasil, sem esquecerem as suas raízes italianas. Os Rossi nunca esqueceram a tempestade que enfrentaram no navio Utopia, mas também nunca esqueceram a esperança que os guiou até o novo mundo.
A história da família Rossi se tornou uma das muitas histórias de imigrantes que enfrentaram desafios para construir uma nova vida no Brasil. Eles ajudaram a construir o país com o seu trabalho e a sua determinação. Hoje, muitos brasileiros descendem de italianos que enfrentaram a tempestade no navio Utopia e que nunca perderam a esperança de uma vida melhor.

Nota do Autor

Esta história nasceu do desejo de dar voz a milhares de italianos anônimos que, entre o fim do século XIX e o início do XX, abandonaram sua terra natal movidos por uma fé inabalável no futuro. A família Rossi é uma representação simbólica dessas multidões de homens, mulheres e crianças que, apertados nos porões dos navios de emigrantes, cruzaram o Atlântico sonhando com um pedaço de chão onde pudessem recomeçar.

Utopia, nome real de um navio que transportou imigrantes italianos durante aquele período, tornou-se aqui um emblema do destino coletivo — um destino marcado por sofrimento, mas também por coragem e esperança. A travessia dos Rossi é, antes de tudo, um retrato da alma humana quando confrontada com o desconhecido: o medo, a fé e o instinto de sobrevivência se entrelaçam para dar sentido à jornada.

Em cada lágrima de despedida e em cada prece sussurrada no convés durante a tempestade, ecoa o mesmo sentimento que impulsionou a construção do Brasil moderno — um país erguido por mãos estrangeiras, mas aquecido por corações que aprenderam a amar esta nova pátria.

Escrever esta narrativa é, portanto, um ato de memória e de gratidão. É lembrar que, por trás de cada sobrenome italiano hoje misturado à língua portuguesa, há uma história de coragem que o mar não conseguiu apagar.

Autor:
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS


quarta-feira, 6 de agosto de 2025

A Longa Espera dos Rozzo

 


A Longa Espera dos Rozzo

No inverno de 1878, quando as geadas já haviam queimado as últimas folhas das parreiras e o vento atravessava os vales do Vêneto com um frio cortante, a família Rozzo tomou a decisão que mudaria para sempre a sua história. Pequenos agricultores na encosta pedregosa próxima a Vicenza, viviam de terras emprestadas, onde a colheita mal bastava para pagar o arrendamento e alimentar os nove filhos. A miséria não chegava como uma tragédia súbita, mas como uma visita constante, feita de invernos compridos, verões exaustivos e mesas onde a polenta cozida com algumas ervas era o único alimento disponível e ainda assim dividida em pedaços cada vez menores. 

A notícia da emigração corria pelas aldeias como uma esperança silenciosa. Falava-se de terras distantes e desconhecidas, além do oceano, onde o governo brasileiro prometia lotes e liberdade aos colonos. As passagens, subsidiadas pelas autoridades, eram a única possibilidade para famílias como a dos Rozzo, que não possuíam sequer moedas de prata para comprar a farinha do mês. Na primavera seguinte, uma parte da família, o filho Giovanni com a mulher e um filho pequeno embarcaram em Gênova rumo ao desconhecido, com um velho baú de madeira, um crucifixo, algumas sementes e a fé de que a terra nova pudesse oferecer um futuro diferente.

Após a travessia extenuante que durou bem mais de trinta dias, desembarcaram no Rio Grande do Sul, sendo destinados à recém-formada colônia Dona Isabel. A terra era bruta, a mata densa e o isolamento quase absoluto. As casas, erguidas com toras verdes, abrigavam mais frio do que calor. A floresta, embora fértil, não perdoava: exigia anos de trabalho para ceder espaço às lavouras. O esforço consumia os dias, e o calendário se media mais pelo corte das árvores do que pelas datas do almanaque.

Enquanto isso, dois irmãos mais novos de Giovanni Rozzo — Matteo e Pietro — também haviam deixado o Vêneto, mas seu destino fora diferente. Embarcaram no ano seguinte, rumando para o interior da província de São Paulo, onde foram contratados como trabalhadores braçais em uma grande fazenda de café nas proximidades de Campinas. Ali, viviam sob condições árduas, confinados à realidade fechada da fazenda. O único comércio disponível era o pequeno armazém da própria fazenda, onde os preços eram quase o triplo daqueles praticados em Campinas. Essa diferença não era fruto do acaso, mas parte de um mecanismo que garantia ao patrão lucros extras sobre a pobreza de seus empregados. As compras — farinha, sal, querosene, um pedaço de toucinho — eram registradas em cadernos amarelados, e o acerto de contas acontecia apenas na época do pagamento, quando o saldo, quase sempre, ficava no vermelho.

A comunicação com outras localidades existia, as distancias entre as cidades menores, mas ainda era bastante precária. Havia, de fato, um acesso um pouco melhor aos correios do que nas colônias isoladas do sul, mas o sistema era frágil e permeado por desonestidade. Muitas cartas, sobretudo as que carregavam pequenas quantias de dinheiro, desapareciam no caminho e jamais chegavam ao destino. As notícias, quando vinham, já traziam o sabor amargo da demora, misturando-se à incerteza e ao silêncio que separava famílias por anos a fio.O Brasil, contudo, era imenso, e a distância entre as duas realidades era mais do que geográfica: era também um abismo de informação.

Os primeiros anos em Dona Isabel foram mergulhados num silêncio denso, quase mineral. O mundo parecia terminar nas bordas da mata fechada, e qualquer sinal vindo de fora era raro como ouro. As cartas, quando existiam, precisavam ser levadas a pé até a sede da colônia, a vários quilômetros de distância, por trilhas enlameadas no inverno e cobertas de pó no verão. Mesmo quando finalmente alcançavam o correio, não havia garantia de chegada: muitas se perdiam no caminho, extraviadas por descuido ou simplesmente esquecidas em algum depósito improvisado. 

O isolamento não era apenas geográfico, mas também humano. Giovanni desconhecia completamente que Matteo e Pietro estavam nas terras paulistas. As estações se sucediam como páginas de um mesmo livro sem novidades: a primavera chegava com suas promessas, o verão com seu calor opressor, o outono com o aroma das uvas esmagadas, e o inverno com sua resignação silenciosa — mas nenhuma carta trazia notícias.

A vida naquela região isolada era um esforço contínuo contra a solidão e a natureza bruta. Os vizinhos mais próximos viviam quase um quilômetro de distância, e no início cada encontro era um acontecimento.Os filós e as festas religiosas, realizadas em capelas simples de madeira, eram mais do que momentos de fé: tornavam-se o único elo social, ocasiões para partilhar bênçãos e murmúrios. Nelas, os nomes de parentes e conhecidos distantes eram sussurrados como quem tenta chamar de volta vozes desaparecidas, mas nenhum deles trazia notícias concretas.

O tempo passava pesado, medido não pelo calendário, mas pela abertura de clareiras, pela colheita das primeiras videiras e pelo crescimento lento dos filhos. No fundo das arcas, junto aos poucos objetos trazidos da Itália, permanecia a esperança de um envelope, de um pedaço de papel que rompesse aquele silêncio imenso e dissesse que, em algum lugar, os Rozzo ainda eram lembrados.

Anos depois, uma reviravolta inesperada aconteceu. Maria Rozzo, irmã mais velha, que havia emigrado para os Estados Unidos com o marido, estabeleceu-se em uma comunidade ítalo-americana em Illinois. Lá, o acesso às comunicações era melhor, e por intermédio de outros conterrâneos que mantinham vínculos com brasileiros e argentinos, chegou aos seus ouvidos a existência de Matteo e Pietro, vivos e estabelecidos em Campinas.

Maria iniciou um esforço incansável para restabelecer o contato. Cartas atravessaram oceanos e fronteiras, demorando meses para ir e voltar. No entanto, quando finalmente a notícia chegou às mãos de Giovanni, já em Bento Gonçalves, mais de uma década havia se passado desde a separação. O reencontro físico nunca se realizou, pois as distâncias, a idade e as dificuldades econômicas tornavam a viagem impossível.

Ainda assim, a troca de cartas e alguma fotografia esparsa reacendeu o elo familiar. Os Rozzo de Bento Gonçalves passaram a saber das colheitas de café em São Paulo; os Rozzo paulistas ouviam falar das videiras que finalmente davam fruto no sul. Maria, nos Estados Unidos, tornou-se o ponto de ligação invisível, o fio frágil que unia três mundos separados pelo Atlântico e pela vastidão do Brasil.

A história dos Rozzo foi uma de milhares de famílias italianas: partidas marcadas pela esperança, desencontros selados pelo isolamento, e reencontros possíveis apenas pela palavra escrita. No silêncio das cartas que ainda sobrevivem, guardadas em arcas antigas, permanecem a saudade e a certeza de que a emigração, mais do que mudar destinos, moldou gerações inteiras com a marca indelével da distância. 

Nota do Autor

Escrever A Longa Espera dos Rozzo foi mais do que reconstruir uma narrativa histórica — foi um exercício de escuta. Escuta das vozes que, há mais de um século, partiram das aldeias silenciosas do Vêneto com a coragem de quem se despede sem saber se haverá reencontro. Escuta das cartas que atravessaram oceanos e fronteiras, carregando, em poucas linhas, todo o peso da saudade e da esperança. Escuta, enfim, dos silêncios — esses que se estendem entre uma notícia e outra, entre uma despedida e uma resposta que talvez nunca chegue.

A história dos Rozzo é fictícia, mas é também real em cada detalhe. Ela ecoa o que tantas famílias viveram: irmãos separados por milhares de quilômetros, pais que envelheceram sonhando com um abraço que nunca veio, mães que esperaram notícias até o último dia. É a história de todos os que deixaram para trás uma terra pobre, mas carregada de afetos, e encontraram no Brasil e em outras partes do mundo um novo lar — nunca totalmente separado do antigo.

Dedico esta história aos descendentes dos imigrantes italianos, que herdaram não apenas sobrenomes, mas também memórias feitas de distâncias. Que esta narrativa seja, para cada um, uma ponte imaginária que une de novo os Rozzo dispersos — e, junto deles, tantas outras famílias que o tempo separou, mas que a história insiste em reunir.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta




quarta-feira, 9 de julho de 2025

Vozes Ausentes: A Dor de uma Mãe Imigrante na Colônia Dona Isabel

 



Vozes Ausentes

A Dor de uma Mãe Imigrante na 
Colônia Dona Isabel

Na vastidão da colônia esquecida,
Entre o mato fechado e o pó da estrada,
Uma mãe leva a dor, sempre escondida,
E o tempo arrasta a vida, desgraçada.

Três filhos guarda — são seu bem maior —,
Mas dois lhe faltam, e o vazio a toma.
Silêncio fere — um silêncio sem cor —,
Quase um ano sem carta, sem diploma.

No fundo da mata, seu canto é oração,
Desejo de letras que nunca vieram.
Ecoa o clamor — dor sem redenção —,
Enquanto as estrelas as noites teceram.

Os dias rastejam no chão, sem calor,
E as lágrimas riscam seu rosto cansado.
A esperança tropeça no temor,
Sozinha, ferida, num tempo calado.

A saudade aperta — estilhaça o peito —,
E a dúvida bate, sem se anunciar:
"Estão bem? Estão longe? Por que esse jeito?
Em terras distantes, vão me escutar?"

No Brasil, vela a mãe com fé e ardor,
Por notícias que tragam algum consolo,
Das filhas casadas, perdidas no amor,
Na França e nos Estados — fora do solo.

A cada alvorada, renasce o querer:
Um amor que resiste ao tempo e ao mar,
A força de mãe, que jamais vai ceder
Às marés que insistem em lhe afogar.

No ermo da mata, em silêncio profundo,
Ela acende a fé — sua última espera —,
Sonhando que as cartas cruzem o mundo
E tragam, enfim, sua aurora primeira.

Em cada estrofe que aqui se apresenta,
Celebro essa mãe de esperança em flor:
A dor, o silêncio, a alma que aguenta,
Na fé de um reencontro cheio de amor.

lcbpiazzetta

segunda-feira, 16 de junho de 2025

O Destino de Vittorio Belomonte


O Destino de Vittorio Belmonte


Na fria alvorada de 2 de julho de 1904, Vittorio Belomonte fechou a pequena mala de couro que sua mãe havia lhe dado e, com um último olhar para a casa onde crescera, saiu sem olhar para trás. O destino o chamava.

Nascido em 1882, em um vilarejo esquecido nas montanhas do Friuli, Vittorio passara a juventude trabalhando nos bosques, cortando lenha para senhores que nunca lembravam seu nome. Seu pai, Giovanni, morrera cedo, deixando a mãe e três irmãos na miséria. A fome tornara-se uma sombra constante, e, à medida que os anos passavam, Vittorio percebeu que seu destino não estava ali, mas além-mar.

A viagem até Longarone foi silenciosa. Seus companheiros, jovens de sua vila, compartilhavam a mesma melancolia. O condutor da carroça bradou impaciente para que subissem, e um nó apertou a garganta de Vittorio. Com um último olhar melancólico, ele contemplou seu vilarejo: as casas de pedra aconchegadas umas às outras, como se buscassem calor, e as montanhas imponentes ao fundo, seus picos eternamente coroados de neve. O vento gelado trouxe o cheiro da terra úmida e da lenha queimada nas lareiras. Vittorio suspirou fundo, gravando aquela imagem na memória.

Em Longarone, pegou seus documentos para deixar o país e seguiu para Veneza. As ruas estreitas e os canais da cidade lhe pareceram um outro mundo. Mas não havia tempo para contemplação. O passaporte foi carimbado, e, com os trocados que tinha, comprou pão, salame e um frasco de vinho, o suficiente para a jornada. Quando o trem para Gênova chegou, ele embarcou sem hesitação. Não havia mais volta.

A Estação de Gênova fervilhava de emigrantes, um turbilhão de rostos ansiosos e mãos calejadas segurando malas gastas pelo tempo. Homens e mulheres, vestidos com suas melhores – e muitas vezes únicas – roupas de viagem, deslocavam-se em meio à multidão, esbarrando-se sem querer, trocando olhares de cumplicidade e medo.

Poucos tinham dinheiro suficiente para um hotel decente, então amontoavam-se em uma pequena estalagem de teto baixo e paredes úmidas, escondida em uma viela sombria perto do porto. O lugar era abafado, impregnado pelo cheiro de suor e peixe salgado, e os murmúrios dos hóspedes misturavam-se ao ranger do assoalho gasto. Todos temiam os perigos daquela cidade portuária, onde golpistas e ladrões rondavam como lobos à espreita de presas fáceis. Qualquer descuido e o pouco que possuíam poderia desaparecer em um instante.

Ainda assim, mesmo em meio à incerteza, havia um sentimento pulsante no ar: a promessa de um novo começo, a esperança de um destino melhor do outro lado do oceano. A tensão e a expectativa eram quase palpáveis, como a eletricidade antes de uma tempestade.

Vittorio dividiu um quarto apertado e mal ventilado com outros três friulanos. Os beliches rangiam a cada movimento, e o cheiro de mofo misturava-se ao odor de corpos cansados e roupas úmidas. O sono veio apenas em fragmentos inquietos, interrompido pelo barulho da cidade que nunca dormia e pelo medo latente do que estava por vir.

Ao amanhecer, espreguiçaram-se sob a luz fraca que se infiltrava pelas frestas da janela e, sem muito a fazer além de esperar a hora do embarque, decidiram explorar a cidade. Caminharam pelas ruelas estreitas de Gênova, onde vendedores gritavam ofertas em dialetos diversos e carroças espirravam lama nos transeuntes. O cheiro de pão recém-assado se misturava ao odor forte do porto, onde o mar e o suor dos estivadores se fundiam em uma atmosfera pesada.

Então, ao dobrarem uma esquina, a visão do vapor Regina Elena os fez parar. Ele estava ancorado no cais, imenso e imponente, como um colosso de ferro e vapor. Suas chaminés erguiam-se como torres de um castelo flutuante, e a madeira dos conveses reluzia sob o sol da manhã. Para Vittorio, o navio era uma promessa e uma ameaça ao mesmo tempo. Dentro dele estava seu futuro, sua esperança e também o medo do desconhecido.

Por um instante, o mundo ao redor pareceu silenciar. O burburinho dos estivadores, o ranger das cordas sendo puxadas, até mesmo o tilintar das moedas nas mãos dos vendedores ambulantes — tudo pareceu distante, abafado, como se o tempo tivesse parado.

Vittorio sentiu o coração bater pesado no peito. O gosto salgado do ar encheu seus pulmões, misturado ao cheiro de carvão queimado que escapava das entranhas do navio. O Regina Elena estava ali, gigantesco, como um portão entre dois mundos — o passado que ele deixava para trás e o futuro incerto que o aguardava.

Engoliu em seco. Não havia mais volta. A Itália, sua terra, sua infância, seus bosques familiares e os rostos que jamais voltaria a ver... tudo ficaria para trás no momento em que ele pisasse naquele convés. A única direção agora era para frente.

No dia 29, Vittorio pagou a passagem e submeteu-se à rigorosa inspeção médica. Os oficiais o examinaram com olhares frios e mecânicos, apalpando-lhe os braços, verificando seus dentes, como se avaliassem a resistência de um animal de carga. Foi vacinado com uma agulha áspera e sem cerimônia, sentindo a ardência do líquido em sua pele. Cortaram-lhe os cabelos sem cuidado, deixando fios grossos caírem sobre seus ombros como vestígios da vida que abandonava. Seus pertences foram revistados por mãos desconhecidas, que reviraram sua mala como se buscassem algo de valor escondido.

A noite anterior ao embarque foi longa e inquieta. O quarto apertado da decadente estalagem estava impregnado pelo cheiro de suor e mofo, o colchão fino não oferecia conforto algum. Ele escutava a respiração pesada de seus companheiros de quarto — roncos intermitentes, murmúrios febris de sonhos turbulentos — misturados ao som distante das ondas quebrando contra as pedras do porto. Cada rajada de vento que entrava pela janela mal fechada trazia o cheiro salgado do mar, lembrando-o de que, dali a poucas horas, sua vida mudaria para sempre. 

Na manhã do dia 30, Vittorio caminhou até o porto com passos firmes, mas o coração acelerado. O cais fervilhava de gente. Homens gritavam ordens em dialetos diversos, carregadores passavam apressados equilibrando malas e fardos pesados nos ombros, e crianças agarravam-se às saias das mães, assustadas com a confusão ao redor. O cheiro do mar misturava-se ao de carvão queimado e peixe fresco, formando uma névoa espessa de sal e fuligem que pairava no ar.

Antes de seguir para o embarque, Vittorio comprou alguns limões — diziam que ajudavam contra o enjoo — e, apoiando-se em um caixote de madeira, escreveu uma última carta para a família. Escolheu as palavras com cuidado, tentando transmitir esperança, embora o peso da despedida lhe apertasse o peito.

A fila para embarque serpenteava pelo cais, arrastando-se lentamente como uma procissão de almas ansiosas. Os funcionários da companhia de navegação verificavam documentos com olhares indiferentes, enquanto os passageiros aguardavam sob o sol escaldante, segurando seus pertences com desconfiança. Quando chegou sua vez, Vittorio foi submetido a mais uma inspeção, os olhos atentos dos agentes percorrendo seu rosto e suas roupas como se buscassem algo suspeito.

Por fim, um funcionário lhe entregou um número rabiscado em um pedaço de papel sujo e indicou a entrada do navio. Descendo por corredores estreitos e abafados, iluminados apenas por lampiões oscilantes, Vittorio finalmente encontrou sua beliche: um espaço exíguo, onde mal cabia deitado. O colchão fino era pouco mais que um pedaço de pano gasto sobre tábuas duras, e a manta áspera cheirava a mofo. Ele se sentou devagar, sentindo o metal gelado da estrutura contra as mãos trêmulas.

Lá fora, os apitos soaram longos e solenes. A terra firme começava a se afastar. Pouco depois do meio-dia, soaram três apitos longos. As cordas foram soltas. O vapor Regina Elena moveu-se lentamente, afastando-se do porto. O barulho das despedidas ecoava no ar. Mães choravam, pais levantavam os chapéus, crianças acenavam sem entender. A bordo, Vittorio e seus companheiros retribuíam o gesto, engolindo as lágrimas. O hino real tocava, seguido pela Marcha Garibaldi. Uma pequena banda saudava aqueles que partiam, soldados de um exército invisível em busca de uma vida melhor.

Os primeiros dias foram um teste de resistência. No porão apertado onde dormia, o ar era denso, carregado do cheiro acre de suor, mofo e vômito. O calor sufocante tornava o ambiente ainda mais insuportável, e o balançar incessante do navio fazia com que muitos passageiros passassem mal. O som dos gemidos de náusea e da tosse seca de crianças doentes preenchia a escuridão.

A comida era pouca e sem sabor: pedaços de pão endurecido, caldo ralo que mais parecia água suja e, ocasionalmente, um punhado de batatas cozidas. As filas para receber as rações eram longas, e os mais fracos frequentemente ficavam sem nada.

Mas Vittorio resistia. Ele se recusava a ceder à fraqueza, mantendo a disciplina que aprendera nos campos de sua terra natal. Durante o dia, sempre que podia, escapava do porão e subia ao convés. Lá, o vento salgado refrescava sua pele, e a visão do oceano infinito lhe dava a ilusão de liberdade. Ficava horas observando as ondas, tentando ignorar o estômago vazio e a saudade crescente.

À noite, quando finalmente conseguia dormir, sua mente o levava de volta a Friuli. Sonhava com os bosques úmidos após a chuva, com o cheiro da terra revirada pelo arado, com a voz de sua mãe chamando-o para a ceia. Mas, ao acordar, tudo o que via eram paredes de ferro corroídas pelo tempo e corpos exaustos amontoados ao seu redor. A viagem mal havia começado, e já parecia uma eternidade.

No décimo quinto dia de viagem, o oceano, antes calmo, se transformou em um monstro furioso. O céu escureceu de repente, como se a noite tivesse caído em pleno dia. O vento uivava entre os mastros, e trovões ribombavam sobre as águas agitadas. Quando as primeiras ondas colossais atingiram o casco do Regina Elena, o navio estremeceu como se fosse feito de papel.

No porão, o terror tomou conta dos passageiros. Cada balanço da embarcação lançava corpos contra as paredes de ferro. Gritos se misturavam ao estrondo das ondas. Algumas mães, apavoradas, agarravam os filhos contra o peito e rezavam baixinho. Outros simplesmente choravam, sem forças para reagir.

Vittorio segurava-se como podia, os dedos crispados na borda da beliche. Um homem ao seu lado foi jogado ao chão e bateu com a cabeça em uma viga. O sangue se espalhou pelo assoalho de madeira, mas ninguém teve tempo de socorrê-lo. Tudo o que importava era sobreviver àquela noite interminável.

Lá fora, o mar tentava engolir o Regina Elena. Ondas monstruosas varriam o convés, levando caixas, barris e qualquer coisa que não estivesse presa. Tripulantes gritavam ordens que ninguém conseguia ouvir, enquanto lutavam para manter o navio no curso.

Então, tão repentinamente quanto começou, a tempestade passou. O silêncio foi quebrado apenas pelo som do mar ainda revolto e dos soluços abafados no porão. O estrago era visível. Malas e roupas encharcadas espalhavam-se pelo chão, alguns passageiros estavam feridos, outros simplesmente paralisados pelo medo.

Mas o Regina Elena seguia firme. E com ele, os sonhos e as esperanças de centenas de almas que, apesar de tudo, ainda acreditavam em um futuro melhor.

No vigésimo quinto dia de viagem, um burburinho se espalhou pelo convés. Terra à vista! Vittorio correu para olhar. No horizonte, uma linha escura tomava forma, crescendo a cada minuto. O porto de Santos emergia da névoa matinal como uma miragem, um amontoado de galpões, mastros de navios e telhados vermelhos, cercado por colinas cobertas de vegetação densa. O cheiro salgado do mar começou a se misturar com algo novo: um aroma quente e pesado, de madeira úmida e café.

Conforme o Regina Elena se aproximava do cais, a agitação tomava conta dos passageiros. Alguns se benziam, outros choravam, abraçados. Homens seguravam seus chapéus contra o vento, mulheres ajeitavam os lenços e roupas amarrotadas. Os tripulantes gritavam ordens em italiano, tentando conter o tumulto, enquanto barcaças carregadas de sacas de café passavam ao lado, guiadas por remadores morenos de olhar curioso.

Quando finalmente desceram a rampa de desembarque, uma onda de calor pegajoso os envolveu. Vittorio sentiu o suor escorrer pelas costas enquanto tentava respirar aquele ar novo, carregado de umidade. O idioma ao redor soava como uma cacofonia incompreensível—ordens gritadas, risadas, discussões entre trabalhadores portuários. Ele mal teve tempo de assimilar o choque antes de ser empurrado junto com os demais imigrantes para um dos galpões imensos ao lado do porto.

Lá dentro, o cheiro de corpos suados e roupas molhadas tornava o ambiente ainda mais sufocante. Filas se formavam diante dos funcionários, que verificavam documentos, assinavam papéis, apontavam direções. Alguns homens, de pele bronzeada e olhar avaliador, caminhavam entre os recém-chegados, observando-os como se escolhessem mercadoria.

— Café! Todos para o interior! — bradou um deles em italiano rudimentar.

Vittorio engoliu em seco, sentindo o peso da incerteza apertar-lhe o peito. Não havia tempo para contemplação, nem espaço para hesitação. A engrenagem da imigração girava sem pausas, empurrando-os inexoravelmente para o próximo destino.

A exaustão da viagem ainda pesava nos corpos dos recém-chegados, mas ninguém se atrevia a reclamar. Homens de rostos severos davam ordens rápidas, chamando nomes, apontando direções. Vagões de trem, de madeira escura e janelas gradeadas, aguardavam na linha férrea próxima ao galpão. O cheiro de ferro e óleo queimado se misturava ao calor abafado da manhã tropical.

Vittorio sentiu um nó no estômago ao avistar as composições que os levariam para o desconhecido. Onde dormiria naquela noite? O que encontraria no fim daquela jornada?

O aviso veio curto e seco:

— Para os trens! Movam-se!

Ele pegou sua pequena trouxa e avançou com os demais, passos hesitantes no solo quente do novo mundo. Já não havia mais navios, nem mar. Apenas terra firme e um destino incerto.

Não havia mais volta.

Com uma mala de couro gasta e um coração pesado de incertezas, Vittorio seguiu em frente, empurrado pelo fluxo implacável dos recém-chegados. Atrás dele, a Itália se tornava apenas uma lembrança distante, um mundo ao qual jamais retornaria da mesma forma.

O chão de terra batida rangia sob suas botas, o calor escaldante grudava em sua pele. À sua volta, imigrantes caminhavam em silêncio, carregando sacos e baús, os rostos marcados pela fadiga e pela expectativa. Cada passo era um salto no desconhecido.

No Brasil, um novo capítulo se abria diante dele—não por escolha, mas por necessidade. O que o aguardava além da estação de trem? Campos intermináveis de café? Trabalho árduo sob o sol impiedoso? Ou talvez, quem sabe, a promessa de uma vida digna, algo que a terra natal lhe negara?

A única certeza era que não havia caminho de volta.

Vittorio mal teve tempo de se recuperar da exaustiva travessia. Assim que desembarcou em Santos, foi rapidamente selecionado e encaminhado para o interior de São Paulo, onde um fazendeiro necessitava de trabalhadores para sua vasta plantação de café. A viagem de trem foi longa e desconfortável, o vagão de madeira sacolejando sobre os trilhos enquanto o calor e o cheiro de suor tornavam o ar quase irrespirável.

Quando finalmente chegou à fazenda, nos arredores da emergente Ribeirão Preto, foi recebido com poucas palavras e um olhar avaliador. Ali, o trabalho não fazia concessões. Antes mesmo do sol despontar no horizonte, já estava nos cafezais, arrancando os grãos vermelhos sob um calor implacável que fazia sua camisa grudar no corpo. Os cestos se enchiam rápido, e logo vinham os sacos pesados, que ele e os outros imigrantes carregavam até os secadores. Os ombros ardiam, as mãos se cobriam de calos, mas não havia descanso.

A barreira da língua o isolava no início. O português soava rude, estranho, como um código indecifrável. Mas, entre ordens gritadas e murmúrios trocados à sombra dos cafezais, Vittorio começou a entender. Aprendia com os outros imigrantes, muitos deles tão perdidos quanto ele. E, pouco a pouco, o desconhecido tornava-se familiar.

Os anos se passaram, marcados por trabalho árduo e sacrifícios silenciosos. Vittorio economizava cada tostão, recusando-se a gastar com qualquer coisa que não fosse essencial. Dormia pouco, comia o suficiente para se manter de pé e sonhava com o dia em que teria sua própria terra. A ideia de ser dono do próprio destino era o que o fazia resistir.

Em 1910, esse dia finalmente chegou. Com o que havia juntado, arrendou uma chácara nas proximidades de Araraquara. Não era grande, nem rica, mas era sua. A terra, escura e fértil, prometia sustento, mas cobrava um preço alto. Trabalhar sozinho significava acordar antes do sol e seguir até a última luz do dia, preparando o solo, plantando, colhendo. A cada estação, enfrentava novos desafios: a fúria das chuvas tropicais que castigavam as lavouras, as pragas traiçoeiras que ameaçavam destruir meses de esforço.

Mas Vittorio aprendeu. Observava os fazendeiros mais experientes, testava métodos, enfrentava as falhas e tentava de novo. Cada safra era uma lição. Cada derrota, um aprendizado. Seus calos engrossavam, suas costas se curvavam sob o peso do trabalho, mas, junto com o cansaço, crescia também a convicção de que, naquela terra, fincaria suas raízes.

O sucesso veio devagar, como a germinação das mudas que plantava. Primeiro, conseguiu comprar uma carroça, o que lhe permitiu levar sua colheita diretamente ao mercado. Depois, contratou ajudantes, homens tão determinados quanto ele, que viam no café uma chance de prosperar. A pequena chácara transformou-se em uma propriedade produtiva, e os sacos de grãos empilhavam-se na varanda antes de seguirem para a venda.

Em 1915, quando finalmente sentiu que havia construído algo sólido, casou-se com Maria, filha de um imigrante calabrês. Ela trazia no olhar a mesma resiliência de quem cruzara o oceano em busca de uma vida melhor. Juntos, trabalharam lado a lado, expandindo as plantações e cuidando da terra como se fosse um membro da família.

Com o tempo, a propriedade deixou de ser apenas um campo de cultivo e tornou-se um lar. Seus três filhos cresceram correndo entre os cafezais, os pés descalços tocando o solo que ele tanto lutou para conquistar. O som das risadas infantis misturava-se ao canto dos pássaros e ao farfalhar das folhas ao vento. Ali, no coração do Brasil, Vittorio não era mais apenas um imigrante. Tornara-se parte da terra que o acolheu.

Nos anos seguintes, o suor de Vittorio se transformou em prosperidade. Sua pequena fazenda expandiu-se além do que ele jamais imaginara. Com paciência e estratégia, adquiriu terras vizinhas, uma a uma, até tornar-se um dos maiores fornecedores de café da região. O aroma dos grãos recém-colhidos impregnava o ar, misturando-se à promessa de um futuro cada vez mais próspero.

Mas a riqueza de Vittorio não se media apenas em sacas de café. Ao lado de outros imigrantes italianos, ajudou a moldar uma comunidade forte e vibrante. Doou terras para a construção de uma escola, pois sabia que o conhecimento era a chave para que seus filhos tivessem um destino melhor. Contribuiu para erguer uma igreja, onde os fiéis se reuniam para rezar, buscar conforto e celebrar a vida. A vila cresceu, impulsionada pelo trabalho árduo de homens e mulheres que, como ele, haviam deixado tudo para trás em busca de uma nova chance.

No entanto, Vittorio jamais esqueceu o dia de sua partida. O último olhar lançado sobre sua terra natal permanecia gravado em sua mente, como uma fotografia desbotada pelo tempo. Sabia que nunca voltaria, que as ruelas estreitas e as montanhas de Friuli permaneceriam apenas em sua memória.

Ainda assim, ao caminhar entre os cafezais floridos, sentindo o perfume adocicado das flores brancas e ouvindo o riso de seus netos ecoando pelos campos, percebia que havia encontrado mais do que um lugar para trabalhar. Ali, fincara suas raízes. Ali, seu nome viveria além dele.




sábado, 10 de maio de 2025

A Última Carta de Giovanni Barone

 



A Última Carta de Giovanni Barone


O vento cortante do inverno fazia os galhos secos das árvores dançarem como se estivessem prestes a se partir. Em uma modesta casa na periferia, Giovanni Barone mergulhava a pena no tinteiro, escrevendo o que sabia ser uma das cartas mais importantes de sua vida. Cada palavra carregava o peso da saudade, da esperança e de uma culpa que ele não sabia se conseguiria expiar.

"Querida Mariella," começou ele, com a mão trêmula, "não há um dia sequer em que não me lembre do brilho dos seus olhos ao despedir-se de mim na estação. Eu tinha prometido que voltaria, que buscaria vocês assim que o trabalho na América rendesse frutos, mas o tempo é cruel e as promessas, frágeis."

Giovanni havia emigrado para o Brasil dois anos antes, deixando para trás sua jovem esposa e o pequeno filho Pietro. A Itália vivia uma crise implacável: campos inférteis, impostos insuportáveis e uma fome que rondava como uma sombra permanente. Quando soube das oportunidades nas terras brasileiras, Giovanni, como tantos outros, não viu escolha senão arriscar.

A travessia fora uma odisseia. A bordo do navio Laurenti, enfrentou tempestades que faziam o casco da embarcação ranger como se estivesse prestes a se partir. Nos porões escuros, Giovanni dividia espaço com dezenas de outros emigrantes, o ar impregnado de suor e desespero. A cada amanhecer, mais um companheiro de viagem sucumbia à doença ou ao desespero. "Não será em vão," repetia para si mesmo, como uma prece.

Ao chegar ao Brasil, Giovanni encontrou uma realidade brutal. As promessas de terras férteis e trabalhos abundantes não passavam de ilusões vendidas por agentes inescrupulosos. Ele foi levado para uma fazenda no interior de São Paulo, onde se tornou mais um entre os muitos que labutavam de sol a sol nos campos de café, quase como escravos. As noites, porém, eram preenchidas por sonhos e cálculos: ele juntaria o que pudesse, mesmo que significasse passar fome, para trazer sua família para perto.

Em suas raras folgas, Giovanni escrevia cartas para Mariella, tentando esconder as dificuldades que enfrentava. "Diga à minha cunhada que não se deixe enganar pelas histórias de riqueza," escreveu ele ao amigo próximo, Antonio de Giusti, em uma carta que jamais recebeu resposta. Talvez a carta nunca tenha chegado ao destino, perdida entre as muitas dificuldades de comunicação da época. "Estas terras consomem a alma, e os que vêm sem nada acabam com menos ainda."

As palavras de Giovanni não eram apenas um aviso, mas também um clamor. Ele sabia que sua ausência era um fardo para Mariella, que cuidava sozinha de Pietro e tentava manter viva a pequena horta que lhes dava sustento, mesmo lutando contra as adversidades de um solo infértil. "Quando puder, mande notícias," implorava ele. "Seu silêncio é um abismo que me devora."

Enquanto Giovanni lutava, Mariella enfrentava seus próprios desafios. Na pequena localidade rural de Rozzampia, comune de Thiene, Vicenza, a crise econômica continuava a piorar, e as noites eram preenchidas pelo choro de Pietro, que perguntava pelo pai. Mariella respondia com histórias de esperança, inventando aventuras que Giovanni supostamente vivia nas terras distantes, enquanto guardava suas lágrimas para os momentos de solidão.

A carta que Giovanni escrevia naquela noite fria era diferente. Ele havia finalmente economizado o suficiente para pagar as passagens de Mariella e Pietro. "Venham o mais rápido possível," escreveu. "Apesar de tudo, acredito que podemos ser felizes aqui. Estas terras ainda não nos deram tudo o que prometeram, mas, juntos, podemos cultivá-las e fazê-las nossas. Não será fácil, mas o amor que nos une nos dará forças."

Ao selar a carta e entregá-la no correio local, Giovanni sabia que o tempo seria um novo inimigo. A longa jornada da carta até a Itália e a organização da viagem de sua família seriam uma prova de paciência e fé. Ele também sabia dos riscos que Mariella e Pietro enfrentariam na travessia, mas optou por não mencioná-los diretamente, temendo causar-lhes mais ansiedade.

O reencontro de Giovanni com sua família seria o início de um novo capítulo. Eles enfrentariam juntos as adversidades, como tantas outras famílias de emigrantes italianos que construíram suas vidas com suor e lágrimas. E, apesar de tudo, provariam que a resiliência e o amor podem florescer mesmo nos solos mais áridos. Giovanni sabia que o futuro ainda reservava incertezas, mas, pela primeira vez em anos, sentia que a esperança era algo palpável, tão real quanto a terra que labutava diariamente para transformar em lar.

Nota do Autor

Este conto é uma reflexão profunda sobre os dilemas humanos enfrentados pelos imigrantes italianos durante um dos períodos mais desafiadores de sua história. A figura de Giovanni Barone não representa apenas um indivíduo, mas simboliza uma geração marcada pela coragem de deixar para trás tudo o que conhecia, na tentativa de construir algo novo em terras estranhas. A narrativa busca capturar a essência dessa jornada – o sofrimento da separação, a luta contra condições desumanas e a esperança que, mesmo em meio à adversidade, nunca se apaga. Mais do que uma homenagem, é um convite para compreender a força daqueles que, movidos pelo amor e pela necessidade, moldaram o futuro com as próprias mãos.



quinta-feira, 8 de maio de 2025

O Vinho da Guerra: Uma Família Entre a Destruição e a Esperança

 


O Vinho da Guerra: 
Uma Família Entre a Destruição e a Esperança


24 de outubro de 1917. A data ecoaria como uma ferida aberta na história da Itália. Há anos, o país travava uma guerra extenuante contra o Império Austro-Húngaro, mas naquele fatídico dia, o equilíbrio foi abruptamente rompido. As tropas austro-húngaras, reforçadas por batalhões alemães experientes, desferiram um golpe devastador nas linhas italianas em Caporetto. A derrota, que ficaria conhecida como a 12ª Batalha do Isonzo, obrigou o exército italiano a uma retirada desesperada para a linha do Rio Piave, deixando atrás de si um cenário de caos e desespero.

Nas primeiras horas que se seguiram à catástrofe, a notícia percorreu a região como um incêndio em campo seco. Em Pederobba, um pequeno município situado entre as sombras do Monte Grappa e o Rio Piave, o toque incessante dos sinos da igreja alertava os moradores. A mensagem era clara e aterradora: a evacuação era inevitável. Homens, mulheres e crianças deveriam abandonar suas casas e terras imediatamente, fugindo para o sul, para longe do avanço inimigo. A pequena cidade, até então um refúgio de paz entre montanhas e vinhedos, mergulhou em um redemoinho de medo e agitação.

Entre os moradores, Giuseppe, um marceneiro habilidoso e carpinteiro renomado, era uma figura central. Morador na cidade a muitos anos, originário do município vizinho de Alano di Piave, na província de Belluno, Giuseppe vinha de uma linhagem de artesãos cuja maestria com a madeira era quase lendária. Muitas igrejas e casas nobres de Veneza e arredores exibiam orgulhosamente as portas esculpidas e altares de sua família, cuja reputação atraía até as famílias maus nobres. Além de seu talento com a madeira, Giuseppe herdara do pai, Francesco, uma paixão por seus vinhedos e pela produção do vinho Raboso del Piave, cultivado com dedicação quase religiosa para consumo familiar.

Casado com Giuditha, uma mulher de fibra e perspicácia comercial, Giuseppe tinha uma família numerosa: dez filhos ao todo. Os quatro mais velhos haviam emigrado anos antes para o Brasil, em busca de oportunidades. Outras duas filhas haviam seguido destinos igualmente distantes — uma para a França e outra para os Estados Unidos. Restavam em casa os quatro mais jovens, incluindo a caçula, uma menina de olhos brilhantes que parecia ainda alheia ao horror da guerra.

Quando as ordens militares de evacuação chegaram, Giuseppe agiu com a precisão de um homem acostumado a decisões rápidas. Com a ajuda dos filhos, cavou um buraco profundo ao lado de sua oficina, onde enterrou suas ferramentas mais preciosas, uma bicicleta e três damigianas cheias do vinho que ele tanto estimava. Pedras pesadas foram cuidadosamente colocadas sobre o esconderijo, criando uma falsa tampa que, esperavam, passaria despercebida.

O êxodo começou ao amanhecer. Carroças abarrotadas, grupos apressados a pé e até alguns poucos sortudos em vagões de trem seguiam a corrente humana em direção à Emília-Romagna, deixando para trás tudo o que conheciam. Após dias de caminhada extenuante, a família chegou a Sassuolo, uma pequena cidade nos arredores de Modena, onde foram acolhidos. Giuseppe e os dois filhos mais velhos, Matteo e Piero, logo encontraram pequenos trabalhos, o que trouxe alívio financeiro em meio às privações do exílio.

O retorno à terra natal, permitido após o armistício de 4 de novembro de 1918, foi agridoce. Pederobba estava irreconhecível, marcada por bombardeios incessantes que a transformaram em uma zona de ninguém entre os exércitos. A igreja, outrora o coração da comunidade, estava em ruínas. A casa da família, a oficina e a pequena loja de Giuditha haviam sido reduzidas a escombros. Mesmo assim, Giuseppe encontrou forças para recuperar o que pôde. O esconderijo com as damigianas foi descoberto intacto, mas a bicicleta estava irremediavelmente corroída pela água.

Sem recursos para reerguer o que perderam, Giuseppe e Giuditha tomaram uma decisão dolorosa, mas inevitável: deixar a Itália e juntar-se aos filhos no Brasil. Em 1919, embarcaram rumo a Curitiba, no Paraná, levando consigo apenas um baú de ferramentas e, como símbolo de resistência, alguns litros do vinho salvo da guerra. No Brasil, a família se reencontraria com os filhos mais velhos e suas famílias, até então rostos distantes em cartas. Ali, em um novo mundo, começariam de novo, sustentados pelo espírito resiliente que a guerra não conseguira apagar.




Nota do Autor


A inspiração para "O Vinho da Guerra: Uma Família Entre a Destruição e a Esperança" nasce de uma história que, embora fictícia, encontra eco em incontáveis vozes do passado. O cenário é a Itália dilacerada pela Primeira Guerra Mundial, um país em que a esperança e o desespero frequentemente se alternavam como protagonistas de uma tragédia coletiva.
Neste conto, o vinho — símbolo de tradição, sacrifício e raízes familiares — emerge como metáfora da resistência humana. Giuseppe, marceneiro e viticultor, não é apenas um personagem, mas uma homenagem aos anônimos que, em tempos de guerra, enfrentaram a ruína com engenhosidade e coragem. Sua decisão de salvar as ferramentas e o vinho, mesmo diante da devastação, reflete a essência da luta por preservar identidade e dignidade quando tudo parece perdido.
A narrativa também explora o impacto das decisões que transformam a vida de gerações. A evacuação, a jornada em busca de segurança e o recomeço no Brasil são testemunhos de uma coragem resiliente que transcende fronteiras. Como muitos imigrantes, Giuseppe e sua família carregaram consigo não apenas bens materiais, mas também os alicerces de uma nova história: trabalho árduo, tradição e um profundo amor pela vida.
Este conto pretende não apenas lembrar os horrores e sacrifícios da guerra, mas também celebrar a força que emerge das adversidades, unindo passado e futuro. Que o leitor encontre aqui um convite à reflexão sobre a fragilidade e a resiliência humanas, e sobre como, mesmo em tempos sombrios, a fé no amanhã pode ser destilada, como um bom vinho, do espírito imortal das pessoas comuns.






segunda-feira, 7 de abril de 2025

A Travessia de Domenico Valtieri


A Travessia de Domenico Valtieri


Domenico Valtieri tinha 31 anos quando decidiu abandonar sua cidadezinha natal, San Pietro di Barbozza, uma pequena localidade nas belas colinas de Valdobbiadene. A terra na verdade era boa, mas, naqueles tempos, em finais do século XIX, o trabalho era muito escasso, e o futuro para ele, sua esposa Elena e a filha pequena, Maria, parecia cada vez mais sombrio. Toda a zona rural do Veneto sofria com safras magras, inclemência do clima, preço baixo dos grãos, desemprego cada vez maior e fome. As cartas de parentes e vizinhos que já haviam emigrado para o Brasil falavam de terras férteis, acessíveis e oportunidades, ainda que conquistadas com muito esforço. Para Domenico, o apelo de um novo começo era irresistível.

No outono de 1892, ele vendeu tudo o que possuía: algumas galinhas, uma velha mula e utensílios de arado. Com o dinheiro arrecadado e um empréstimo feito a um comerciante local, comprou passagens para o vapor L'Esperanza, que partiria do porto de Gênova rumo ao Rio de Janeiro. A viagem seria longa e cheia de incertezas, mas Domenico acreditava que nada poderia ser pior do que o desespero de permanecer na miséria.

A realidade da travessia revelou-se cruel. Na terceira classe, onde estavam Domenico e sua família, havia uma mistura de corpos, vozes e odores. Homens, mulheres e crianças dividiam espaços apertados, com camas de madeira dura e pouca ventilação. Os dias no mar eram monótonos, interrompidos apenas por tempestades que traziam momentos de tensão. À noite, o som de tosses persistentes, sussurros de orações e o choro de crianças famintas preenchiam o ambiente. Elena tentava distrair Maria com histórias sobre a nova vida que os aguardava, enquanto Domenico, observador, via na travessia uma metáfora de sua luta: um intervalo entre o sofrimento deixado para trás e a esperança que brilhava no horizonte.

Porém, a jornada foi mais implacável do que poderiam imaginar. Uma epidemia de sarampo se espalhou entre as crianças nos porões do navio, e Maria foi uma das primeiras a adoecer. Domenico e Elena fizeram tudo o que podiam, mas a falta de medicamentos e atendimento transformou cada dia em uma batalha perdida. Maria faleceu uma semana antes da chegada ao Brasil. Seu corpo foi dolorosamente sepultado no mar, enrolado em uma mortalha feita de lençóis, amarrada com cordas envolta ao corpo, seguido de uma despedida silenciosa e devastadora, que marcou para sempre a memória dos pais e de tantos outros passageiros e tripulantes que presenciaram aquela impressionante cena.

Ao desembarcarem no Rio de Janeiro, Domenico e Elena encontraram um mundo novo, mas longe do que haviam sonhado. Após alguns dias na Hospedaria dos Imigrantes, foram enviados para o sul do país, para uma colônia agrícola no interior do Rio Grande do Sul. A viagem até lá foi mais uma prova de resistência: dias de viagem rio acima, em pequenos bracos, depois em carroças puxadas por bois, atravessando picadas lamacentas e enfrentando o frio das serras. Quando finalmente chegaram à colônia de Dona Isabel, encontraram uma paisagem desafiadora, mas promissora: florestas densas, rios caudalosos e terras férteis, que exigiriam esforço para serem cultivadas.

A vida na colônia começou de forma precária. Domenico, junto a outros colonos, derrubava árvores para construir uma casa de madeira simples. Enquanto isso, Elena cuidava do pouco que tinham e preparava o terreno para a nova rotina. Não havia médicos por perto, e o isolamento entre as famílias fazia da saudade uma presença constante. A lembrança de Maria e dos parentes deixados na Itália era dolorosa, mas o trabalho árduo mantinha o casal focado no futuro.

Com o tempo, os sacrifícios começaram a dar frutos. Domenico conseguiu quitar as terras adquiridas do governo e expandir sua propriedade. Tinham finalmente conseguido realizar o sonho da propriedade. Ele plantou videiras, como fazia na sua terra natal que, anos depois, deram origem a um grande vinhedo, tornando-se um dos pioneiros na produção de vinho da região. A família cresceu com o nascimento de novos filhos, e os Valtieri se tornaram um símbolo de resiliência e trabalho árduo na colônia.

Nos momentos de descanso, Domenico gostava de caminhar entre as videiras, contemplando os cachos de uvas balançando ao vento. Sentia orgulho do que havia construído, mas também carregava o peso das perdas do passado. Ele sabia que a vida na colônia era difícil, mas representava uma vitória sobre as adversidades.

O sacrifício de Maria e de tantas outras crianças que não sobreviveram à travessia não foi em vão. Para Domenico, a saga dos imigrantes era uma lição sobre a força e a fragilidade humanas. Cada um era, ao mesmo tempo, testemunha e vítima de um sistema que prometia um futuro brilhante, mas frequentemente entregava abandono e exploração.

Anos depois, já bem estabelecido, Domenico costumava sentar no alpendre de sua casa e contemplar os campos cultivados. Ali, refletia sobre os sacrifícios feitos, os sonhos interrompidos e as vidas perdidas durante a travessia. Sua história, como a de tantos outros, era um testemunho de coragem e resiliência. Movidos pela necessidade e pela esperança, ele e Elena ousaram atravessar o oceano, construindo uma nova chance para si e para os filhos que viriam.



sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Fragmentos de Amor: As Histórias de Dona Clara


 

Fragmentos de Amor 

As Histórias de Dona Clara


Em um tranquilo lar para idosos, cercado por árvores frondosas e jardins floridos, uma velha senhora chamada Dona Clara passava suas tardes sentada em uma poltrona confortável, de tecido azul desbotado. O ambiente ao seu redor era acolhedor, com o suave cheiro de flores que entrava pelas janelas abertas e o canto dos pássaros que se aninhavam nos galhos das árvores. Seus cabelos brancos, finos como algodão, emolduravam seu rosto sereno, e seus olhos azuis brilhavam com a luz de memórias passadas, mas também com uma sombra de tristeza.

Hoje, ela decidiu folhear um álbum de fotografias antigas que guardava com carinho. A capa de couro desgastada do álbum refletia os anos vividos, e ao abrir a primeira folha, Dona Clara encontrou uma foto de seu casamento. Nela, ela usava um vestido branco simples, mas elegante, com detalhes em renda que pareciam ter sido feitos à mão. O sorriso radiante de seu marido, Antônio, iluminava a imagem como um farol em meio à escuridão do tempo. Ela podia quase ouvir as risadas e o tilintar das taças de champagne daquele dia especial. Lembranças do salão decorado com flores frescas e da música suave que preenchia o ar dançavam em sua mente. “Ah, Antônio”, murmurou ela, sentindo uma onda de nostalgia. “Quantas danças nós tivemos naquela noite!”

Seguindo em frente nas páginas amareladas pelo tempo, Dona Clara encontrou fotos dos filhos brincando no quintal da antiga casa. A imagem deles correndo atrás de um cachorro que parecia tão feliz quanto eles a fez rir baixinho. Os rostos sorridentes eram como raios de sol em um dia nublado; a alegria pura e inocente da infância transbordava em cada clique. Contudo, enquanto revivia essas memórias felizes, uma mágoa profunda a envolvia: fazia meses que seus filhos e netos não a visitavam. A ausência deles pesava em seu coração como uma nuvem escura sobre um dia ensolarado.

Ela se lembrou das histórias que contava à noite, quando os pequenos se aninhavam ao seu redor, com os olhos brilhando de expectativa e as bochechas coradas pela emoção. Cada risada e cada abraço eram tesouros que ela guardava no coração como pérolas preciosas. Mas agora, o silêncio do lar parecia ecoar sua solidão; as visitas que antes eram frequentes tornaram-se raras e distantes.

Enquanto folheava as páginas do álbum, Dona Clara percebeu que as fotografias não eram apenas imagens; eram fragmentos de amor e conexão. Cada rosto trazia consigo uma história única e uma emoção palpável. Ela se lembrou das dificuldades enfrentadas ao longo da vida: as noites insones cuidando dos filhos doentes, as lágrimas derramadas nas despedidas e as alegrias simples que tornavam tudo suportável. “Se ao menos eu pudesse compartilhar essas memórias com eles agora”, pensou, sentindo-se um pouco solitária em meio àquelas recordações vibrantes. Mas logo sua mente se iluminou com a ideia de que essas histórias poderiam ser contadas novamente.

Inspirada por essa reflexão e pela necessidade de se conectar mais uma vez com sua família, Dona Clara decidiu que iria escrever suas memórias para seus filhos e netos. Com um sorriso nos lábios e um brilho nos olhos que refletiam a determinação renovada — mas também um toque de tristeza — ela começou a planejar como organizaria suas histórias em um livro. As palavras dançavam em sua mente como folhas ao vento; cada memória era uma página em branco esperando para ser preenchida com amor e sabedoria.

“Essas memórias não podem ficar apenas nas páginas do álbum”, disse para si mesma enquanto acariciava a capa do livro com ternura. “Elas precisam viver.” A ideia de deixar um legado para sua família encheu seu coração de alegria e esperança, mas também um desejo profundo de reencontrar aqueles que tanto amava.

Com o coração aquecido pela nova missão que se apresentava diante dela — embora ainda marcado pela mágoa da ausência dos filhos — Dona Clara fechou o álbum e olhou pela janela do lar. As folhas das árvores dançavam ao vento como se estivessem celebrando sua decisão; o sol filtrava-se através dos galhos, criando padrões luminosos no chão coberto de grama verdejante. Naquele momento mágico, a velha senhora branca não era apenas uma guardiã de memórias; ela estava prestes a se tornar uma contadora de histórias, unindo passado e presente através da magia das palavras.

E assim, naquela tarde ensolarada, Dona Clara sorriu para o futuro que se desenrolava diante dela, cheia de esperança e determinação para compartilhar sua rica história de vida com aqueles que mais amava — mesmo na ausência deles.





quinta-feira, 14 de novembro de 2024

La Dona e la Spartission de la Tera in Zona de Colonisassion Taliana nel Rio Grande do Sul


La Dona e la Spartission de la Tera in Zona de Colonisassion Taliana nel Rio Grande do Sul


Ne le zone coloniai taliane del Rio Grande do Sul, la spartìa dei beni tra i fiòi e le fiole faceva parte de na tradission che seguiva regole pròprie. La tera, el ben più presioso, zera quasi sempre destinà ai fiòi mas’ci. Par lori, el toco de tera era un’eredità garantìa, tanto che quando un fiol se sposava, el zera sovente premià con i campi da coltivar e con na colónia, dove metèr su casa.

La dona imigrante taliana, con 'l so laoro stragrando, laorava spala a spala co 'l òmo, par mantegner la proprietà e far crèssere i tanti fiòi. Lei la ze stà responsàbile direta par el sussesso de l'imigrassion taliana in ‘ste tere gauchas e par conservar la cultura de la so tera natal, che la zera trasmessa ai fiòi, la ze rivà fin ai nostri dì.

No stante tuto sto impegno, a la dona no ghe vegniva quasi mai riconossùo el dirito a la tera, o, quando 'sta roba capitava, el so parte ne la spartission l'era quasi sempre minore de quel che rivea l'òmo. La tera rara volta faceva parte de l'eredità de la dona imigrante in zona coloniale taliana del Rio Grande do Sul. Se gavea fradèi, per eredità, lei no diventava parona de gnanca un tochetin de tera, se no quando la restava védova o, se ancora scapola e con i veci morti, la restava fiola ùnica, senza fradèi.

Quando capitava la morte de uno de i genitori, la proprietà coloniale, lassada come ùnica eredità, la zera divisa fra i fiòi mas’ci. E quando ‘sta spartission, che dava poca tera a cada uno, lori i la sistemava spesso fra de lori, ma no sempre in pase, comprando el toco de l’altro per cavar l'ostacoli. Par evitar ste desavenze, e se la famèia gavea i messi giusti, i veci cercava, ancora che lori zera vivi, de catar tera par i fiòi mas’ci, uno a uno, man man che i se maridava e formava la so famèia.

Par le tose, quando lore i se sposava, ghe dava en dota, ogni tanto na màchina de cusir e, quasi sempre, na muca da late. Le famèe più riche ghe catava già la tera par i fiòi quando ancora i zera putèi, ani prima che i pensasse al matrimónio. Qualche volta, in famèe pì riche, ghe dava anca due bò ancora picinin, o vedèi, che lori i adestrava pian pian par vardàrli pronti par el futuro, quando lori i sarà òmini paroni de famèia.

La spartission de i beni lassài per eredità se basiava su na division disegual che quasi mai favoriva la dona. Quando un fiol se sposava, el ricivea un toco de tera, quasi sempre una colónia, par laorar e farse la so casa. I genitori la comprava quasi sempre de un visino e, quando no l’aveva, i comprava anca in posti pì lontan. La fiola, poareta, se la gavea fortuna, ricevea qualcosa per la dota: coverte, tovaglie, robe par la cusina, ogni tanto una màchina de cusir o una muca da late. El interessante el ze che parte de ‘sta dota la cusìa lore stesse, con ani de fatiche de note, nei momenti lìbari, spesso tante volte pagà con i pochi schei messi da parte e risparmià con i laoreti par qualquedun o con el guadagno de qualche venda al marcà de ovi o altre robe da lore coltivà.