Mostrando postagens com marcador carta. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador carta. Mostrar todas as postagens

sábado, 11 de outubro de 2025

Traduçao da Carta de Dom Domenico Munari ao Arcebispo em 1877

 



Carta de Dom Domenico Munari

Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 21 de outubro de 1877

Diletíssimo Arcebispo,

Este dia, que em anos passados eu costumava passar em meio à alegria de doces amigos, este dia me recorda Arsiè e a bela sua solenidade aniversária do terceiro domingo de outubro, e muito mais me recorda os dilettíssimos amigos com os quais eu costumava conversar com alegria em tempos menos infelizes do que o presente.

Antes de todos esses amigos, naturalmente, vem Vossa Senhoria, diletíssimo Arcipreste, e por isso a Vós devo por esse título escrever a presente, e escrever-Vos destas múltiplas penas.

Gozo perfeitamente de saúde, embora a sorte iníqua se ria de mim e me lance os golpes mais cruéis nos meus espíritos, especialmente no decorrer do meu destino a estes lugares do novo mundo; todavia não perdi ainda aquele meu habitual e natural bom humor, que me faz rir até mesmo da desgraça.

Depois de tantas desventuras, a partida e o naufrágio nas costas da França (coisas que já conhecereis), depois de 40 dias de viagem, decidi arriscar-me a vir aqui, ao Brasil, que ainda não conhecia, apenas ouvindo falar. Atravessei o Atlântico desembarcando em Rio Grande no dia 10 de agosto; de lá embarquei num vaporzinho e em 12 dias, passando por Lisboa e Santa Cruz das Canárias, finalmente me encontrei nesta terra.

Permaneci no Rio de Janeiro por 12 dias; mas vendo que ali circulava a “Seca”, que com a foice da febre amarela ameaçava mandar-me ao coveiro e engordar os ratos, tratei logo de escapar e embarquei num vapor que me trouxe ao Rio Grande do Sul; entrei pelo canal de Porto Alegre e fui enviado para a cura de Conde d’Eu, colônia italiana de 4.000 e mais almas. Logo em seguida foi anexada também a colônia Dona Isabel de outros tantos italianos; mas, considerando a impossibilidade de poder reger com tanto encargo, especialmente com a indiferença, com o astúcia das vorazes Harpias que presidem aquela infeliz colônia, apresentei ao Governo a minha demissão, por ter o Bispo erigido uma nova Paróquia, como me foi prometido e espero.

Agora gozo de ótima saúde e bom humor, e com isso celebro o Ofício e a Missa, e escrevo a alguns amigos. Não será surpresa que eu não retorne à colônia Conde d’Eu, mas agora por conselho do Bispo não volto, nem os colonos querem, e com razão, dar uma lição de equidade e justiça ao Chefe da Colônia que os trata pior que escravos. Oh! pobres italianos imigrados! Quanta angústia e privações devem sofrer, e quantos sacrifícios devem fazer para se estabelecerem em uma selva selvagem áspera e forte! A maioria amaldiçoa o dia em que descobriu a América, maldizendo o desgosto, a emigração e o dia da sua partida para estas partes, e desejariam morrer miseráveis e nus em sua pátria, em vez de se verem privados de cada conforto em meio a essas antigas selvas, sem esperanças de retorno, e com pouca esperança de prover o necessário.

E como são tratados os colonos, posso jurar que nenhuma miséria é igual a essa.

Mas quem acreditará em mim? Tantos desses miseráveis, quando escrevem, por medo de que suas cartas não cheguem às suas pobres famílias (porque o Czar das colônias tem tudo em mãos para entregar ao longínquo correio), escrevem bem; mas isso não é verdade e não pode ser. E como poderão chamar-se felizes?

Aqui é uma selva, e no princípio sem teto, e depois uma cabana semelhante ao presépio de Belém, feita em grande parte de varas, onde o ar e a água dominam sempre.

Enquanto escrevo, os colonos devem levar-se à própria colônia, onde encontram apenas mato, mato e mais mato. Dez dias só de comida são dados a eles, e depois nada, nada e nada. Uma vez paga a casa com 105 florins, depois muda-se a máscara, e só 25 florins (quando Deus quer) são dados de ajuda, que equivalem a 25 francos de nossa moeda, e a menos de 25 francos.

Verdadeiramente digo-vos, e o Senhor é minha testemunha.

De fato, neste emaranhado não entra o Governo do Brasil, porque este estaria disposto a ajudar; mas são as companhias que, como o Czar e as Harpias, sugam das últimas forças do pobre colono, até o ponto de este sucumbir miseravelmente.

Avisai ao Governo já que a emigração deve ser fechada, se ele vos ouvir, e se me ouvir também. Oh, pobres cegos e miseráveis, nada são e nada mais se tornarão, senão ainda mais miseráveis! Agora a Vós posso e devo escrever a verdade, porque estou fora da pressão deles. Avisai em Igreja o povo, que não tome por ora o caminho da América, pelas causas indicadas.

Passo a falar de outras coisas da emigração.

As notícias que tenho em resumo são estas: os emigrados italianos sofrem com o calor excessivo do clima, com a absoluta falta de pão, de vinho, que devem substituir (se podem) por uma espécie de água extraída da cana-de-açúcar fermentada, com sabor desagradabilíssimo. A terra é fértil, mas é coberta de mato e de florestas imensas, com árvores de até 2 metros de diâmetro; para derrubá-las é preciso o trabalho de dois homens robustos durante um dia inteiro, trabalho desproporcional ao hábito do italiano emigrado, que muitas vezes não compensa a fadiga suportada. Além disso, muitas vezes a seca arruína as colheitas, e se não há seca, uma chuva repentina as destrói, ou uma geada mata as plantas na primavera; outro dia foi uma grande granizada, que em um quarto de hora, enquanto o pobre colono mal acreditava no que via, arrasou tudo.

Quando a terra tivesse muito fruto, o colono não poderia pagar ao Governo o preço da terra, pela absoluta falta de comércio, estando as colônias muito longe dos centros comerciais e com estradas tão péssimas que nem mulas podem transitar. Assim, em meio às misérias e angústias, prepara-se talvez um pão, mas certamente se prepara uma grande dívida, que dificilmente poderá pagar.

Quanto ao espiritual, é coisa péssima em tudo.

A religião professada pelos americanos do Rio Grande do Sul é precisamente a nulidade de toda religião; são “frammassoni”, mas não sabem o que isso significa; são católicos, mas não conhecem nada do cristianismo; são protestantes sem saber o que é o protesto. Na verdade, são indiferentes à religião, e nada mais.

A esse propósito, quero transcrever duas linhas do Boletim da Sociedade de Patronato dos Emigrantes Italianos, publicado em Roma em janeiro de 1876:
“As mulheres (dos imigrantes) se dão à prostituição; ao redor das meretrizes vivem outros emigrantes italianos, em péssimos costumes, lascivos, e sem freios.”

E mais:
“Há um turbilhão de emigrantes italianos atirados à mendicância, sem advertência da sua condição e da sua miséria, de modo que uma décima parte deles se encontra em situações horríveis, arruinados moral e materialmente, expostos a todos os perigos, reduzidos à condição de escravo por muitos e muitos anos.”

Portanto, quanto ao corpo e quanto ao espírito, os colonos perecem, e infeliz será quem se aventurar a emigrar para cá. A Providência talvez reprovará a nossa emigração: para mim isso já é mais que suficiente.

Assim escrevo apenas para bem do povo italiano.

De coração, vos saúdo.
Vosso devotíssimo amigo e confrade,

Don Domenico Munari
Ex-pároco de Fastro 

Nota do Autor

A carta do padre Domenico Munari, escrita em 1877, é um documento raro e pungente, impregnado de desilusão, compaixão e testemunho humano diante do drama dos primeiros colonos italianos no Rio Grande do Sul. Nela transparece a alma de um pároco sensível, formado na serenidade dos vales vênetos, lançado de súbito ao coração de uma terra bravia e hostil, onde seus conterrâneos lutavam para sobreviver entre o mato, a fome e a solidão.
Munari não escreve como observador distante, mas como alguém que compartilha a dor dos seus. Sua pena é, ao mesmo tempo, denúncia e desabafo. Ele vê nas companhias colonizadoras “harpias vorazes”, exploradoras do suor dos emigrantes, e descreve com espanto o contraste entre as promessas de um novo mundo fértil e a dura realidade de selvas, miséria e abandono. Sua carta é também um clamor pastoral — alerta às autoridades e súplica ao céu — pedindo que se interrompa a emigração antes que mais famílias sejam arrastadas à ruína moral e física.
Em suas linhas ecoa o sentimento profundo de quem, longe de casa, percebe o fracasso de um ideal. O tom é de desalento, mas também de fidelidade: o padre, embora vencido pelas circunstâncias, conserva o humor e a fé, e ainda encontra forças para celebrar a missa e escrever a verdade, mesmo sabendo que poucos acreditariam.
O sentimento que percorre toda a missiva é o de triste compaixão — a dor de ver um povo generoso, cheio de esperança, transformado em vítima das ilusões da emigração. Na sua voz, mistura-se o desencanto de um homem de fé com a ternura de um pastor que, mesmo exilado e impotente, ainda deseja proteger o rebanho disperso nas florestas do Novo Mundo.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta


quinta-feira, 26 de junho de 2025

Lìnee del Destin Memòrie de 'na Tera Promessa

 

Lìnee del Destin
Memòrie de 'na Tera Promessa


Caro Padre Luigi,

La ze con granda alegria che te scrivo par contar de la nostra rivada in sta tera lontan, dove el ciel par pì vasto e la speransa se mèscola con el laor duro. Ze ormai passà do setimane da che semo rivà al nostro lote in colònia, e devo dir che la decision de partir la se sta dimostrando 'na benedission. La tera la ze generosa, coerta de àlberi grande, e la promete racolte che mai gavemo sonià ´ntei campi da dove vignemo. Ogni zorno ringrassiemo el Signor par sta oportunità e speremo che presto anche vu podarà vegner qua con noialtri.

Qua le robe se organisa in maniera semplice, ma eficase. El governo el dà 'n aiuto inissial, che dà tempo par preparar la prima raccolta e a viver de maniera independiente. La natura  acoie altri con àqua ciara e ària pura, 'na benedission par i nostri polmoni strachi. Quando voi ze rivà, troverà no solo nudo, ma anca 'n nuovo scomìnsio, che ve tornarà le forse e le speranze perdù.

Amado frade Paolo,

No te imagini quanto deséemo vardarte qua con la to famèia. Te garantisso che troverà 'na vita pì tranquila che quela che gavemo lassà indrìo. I putéi core lìbari, el spavento par meno presente, e el sforso, anca se grando, el porta fruti concreti. Mi ormai imagino i to fioì ridar mentre che esplora sti campi fèrtili.

Porta con te le mèio feramente che ghe ga e qualche semensa de le nostre tere. Qua ghe ze bisogno de man forti e idee nove. No te dismentegar de dir a nostra mama che el viaio, anca se lungo, el vale ogni sacrifìssio. Dighe che i pì vèci riva qua con la fàssia pì serena, quasi ringiovanì da la belessa del paesagio e da la speransa de zorni mèio.

No tarde a farse saver quando che parte. Saremo al porto par vardarve con i nostri cavli e con la gioia in cuore. Ogni forno soniemo con el momento de riabrassiarse e de farve vardar tuto quel che gavemo costruì. Mandè i nostri saluti ai amissi e ai parenti a Valdobbiadene e dighe che nel nostro cuore ghe ze sempre tanto afeto par lori.

Con fidùssia ´ntel futuro e ´ntel abbrassio de Dio, lassio ste righe, sperando 'na risposta che ne fassa pien de speransa.

El to devoto fiòl e fradel,
Giovanni

sábado, 10 de maio de 2025

A Última Carta de Giovanni Barone

 



A Última Carta de Giovanni Barone


O vento cortante do inverno fazia os galhos secos das árvores dançarem como se estivessem prestes a se partir. Em uma modesta casa na periferia, Giovanni Barone mergulhava a pena no tinteiro, escrevendo o que sabia ser uma das cartas mais importantes de sua vida. Cada palavra carregava o peso da saudade, da esperança e de uma culpa que ele não sabia se conseguiria expiar.

"Querida Mariella," começou ele, com a mão trêmula, "não há um dia sequer em que não me lembre do brilho dos seus olhos ao despedir-se de mim na estação. Eu tinha prometido que voltaria, que buscaria vocês assim que o trabalho na América rendesse frutos, mas o tempo é cruel e as promessas, frágeis."

Giovanni havia emigrado para o Brasil dois anos antes, deixando para trás sua jovem esposa e o pequeno filho Pietro. A Itália vivia uma crise implacável: campos inférteis, impostos insuportáveis e uma fome que rondava como uma sombra permanente. Quando soube das oportunidades nas terras brasileiras, Giovanni, como tantos outros, não viu escolha senão arriscar.

A travessia fora uma odisseia. A bordo do navio Laurenti, enfrentou tempestades que faziam o casco da embarcação ranger como se estivesse prestes a se partir. Nos porões escuros, Giovanni dividia espaço com dezenas de outros emigrantes, o ar impregnado de suor e desespero. A cada amanhecer, mais um companheiro de viagem sucumbia à doença ou ao desespero. "Não será em vão," repetia para si mesmo, como uma prece.

Ao chegar ao Brasil, Giovanni encontrou uma realidade brutal. As promessas de terras férteis e trabalhos abundantes não passavam de ilusões vendidas por agentes inescrupulosos. Ele foi levado para uma fazenda no interior de São Paulo, onde se tornou mais um entre os muitos que labutavam de sol a sol nos campos de café, quase como escravos. As noites, porém, eram preenchidas por sonhos e cálculos: ele juntaria o que pudesse, mesmo que significasse passar fome, para trazer sua família para perto.

Em suas raras folgas, Giovanni escrevia cartas para Mariella, tentando esconder as dificuldades que enfrentava. "Diga à minha cunhada que não se deixe enganar pelas histórias de riqueza," escreveu ele ao amigo próximo, Antonio de Giusti, em uma carta que jamais recebeu resposta. Talvez a carta nunca tenha chegado ao destino, perdida entre as muitas dificuldades de comunicação da época. "Estas terras consomem a alma, e os que vêm sem nada acabam com menos ainda."

As palavras de Giovanni não eram apenas um aviso, mas também um clamor. Ele sabia que sua ausência era um fardo para Mariella, que cuidava sozinha de Pietro e tentava manter viva a pequena horta que lhes dava sustento, mesmo lutando contra as adversidades de um solo infértil. "Quando puder, mande notícias," implorava ele. "Seu silêncio é um abismo que me devora."

Enquanto Giovanni lutava, Mariella enfrentava seus próprios desafios. Na pequena localidade rural de Rozzampia, comune de Thiene, Vicenza, a crise econômica continuava a piorar, e as noites eram preenchidas pelo choro de Pietro, que perguntava pelo pai. Mariella respondia com histórias de esperança, inventando aventuras que Giovanni supostamente vivia nas terras distantes, enquanto guardava suas lágrimas para os momentos de solidão.

A carta que Giovanni escrevia naquela noite fria era diferente. Ele havia finalmente economizado o suficiente para pagar as passagens de Mariella e Pietro. "Venham o mais rápido possível," escreveu. "Apesar de tudo, acredito que podemos ser felizes aqui. Estas terras ainda não nos deram tudo o que prometeram, mas, juntos, podemos cultivá-las e fazê-las nossas. Não será fácil, mas o amor que nos une nos dará forças."

Ao selar a carta e entregá-la no correio local, Giovanni sabia que o tempo seria um novo inimigo. A longa jornada da carta até a Itália e a organização da viagem de sua família seriam uma prova de paciência e fé. Ele também sabia dos riscos que Mariella e Pietro enfrentariam na travessia, mas optou por não mencioná-los diretamente, temendo causar-lhes mais ansiedade.

O reencontro de Giovanni com sua família seria o início de um novo capítulo. Eles enfrentariam juntos as adversidades, como tantas outras famílias de emigrantes italianos que construíram suas vidas com suor e lágrimas. E, apesar de tudo, provariam que a resiliência e o amor podem florescer mesmo nos solos mais áridos. Giovanni sabia que o futuro ainda reservava incertezas, mas, pela primeira vez em anos, sentia que a esperança era algo palpável, tão real quanto a terra que labutava diariamente para transformar em lar.

Nota do Autor

Este conto é uma reflexão profunda sobre os dilemas humanos enfrentados pelos imigrantes italianos durante um dos períodos mais desafiadores de sua história. A figura de Giovanni Barone não representa apenas um indivíduo, mas simboliza uma geração marcada pela coragem de deixar para trás tudo o que conhecia, na tentativa de construir algo novo em terras estranhas. A narrativa busca capturar a essência dessa jornada – o sofrimento da separação, a luta contra condições desumanas e a esperança que, mesmo em meio à adversidade, nunca se apaga. Mais do que uma homenagem, é um convite para compreender a força daqueles que, movidos pelo amor e pela necessidade, moldaram o futuro com as próprias mãos.



terça-feira, 3 de novembro de 2020

Narrativas da Longa Viagem pelo Oceano




Os acontecimentos entre o velho e o novo mundo naquele período da grande emigração italiana não passou despercebida para Edmondo De Amicis (um escritor e militar italiano, nascido em 21 de outubro de 1846, em Oneglia, Imperia.) como se pode ler neste belo fragmento da sua obra Sull'Oceano:

“E mais do que qualquer outra coisa, fui atraído pelas malas postais, amontoadas em um canto, amarradas e lacradas. Pois ali havia fragmentos do diálogo de dois mundos: quem sabe quantas cartas de mulheres que pela terceira ou quarta vez pediam dolorosamente notícias do filho ou do marido, que há anos não se viam; e súplicas para retornar ou chamá-los para se juntar a eles; questões de emergência; anúncios de doenças e mortes; e retratos de meninos que seus pais não teriam mais reconhecido, e chamadas desoladas de namoradas e mentiras atrevidas de esposas infiéis e últimos conselhos de velhos: tudo isso misturado com cartas eriçadas com figuras de banqueiros, com cartas de amor de dançarinas e coristas, para perspectivas de lojistas de vermute, com maços de jornais aguardados pela colônia italiana, ávidos por notícias da pátria; talvez até o último poema de Carducci e o novo romance de Verga: uma confusão de folhas de todas as cores, escritas em cabanas, em edifícios, em oficinas, em sótãos, rindo, chorando, tremendo. E todos esses sacos seriam espalhados em poucos dias desde a foz do Prata até as fronteiras do Brasil e da Bolívia e até as costas do Pacífico e no interior do Paraguai e subindo as encostas dos Andes, para despertar alegria, remorso, dor, medo. Que, então, por sua vez, embalados em outros sacos, teriam feito o mesmo caminho no sentido contrário, amontoados em outro camarim daqueles, onde teriam visto passarem outras procissões de pobres, voltando ao velho mundo, talvez menos pobre, mas não mais felizes do que quando eles o abandonaram na esperança de um destino melhor. " 

Em 11 de março de 1884, Edmondo De Amicis embarcou no Porto de Gênova, no navio a vapor América do Norte, com destino à Argentina. As suas obras Sull'Oceano (de 1889) e In America (de 1897) estão associadas à sua viagem à América do Sul, uma viagem que lhe dará ideias e material para criar outro livro Dos Apeninos aos Andes.

Relata: "O calor escaldante não era o pior, era um fedor de ar frácido e borrado, que da escotilha aberta dos dormitórios masculinos subia em sopros até o tombadilho, uma mancha digna de pena considerar que vinha de criaturas humanas, e assustador pensar no que aconteceria se uma doença contagiosa surgisse a bordo. No entanto, eles nos disseram, não havia mais passageiros do que a lei permite que embarquem em relação ao espaço. Eh! O que importa se você não respirar! A lei está errada. Permite que quase um terço do espaço seja ocupado nos vapores italianos do que nos ingleses e americanos; e não está lá para ver se tudo bem encontrado pela polícia na partida, é então mantido durante a viagem; evitar, por exemplo, que mais passageiros embarquem em outros portos do que lugares sobrando, e que viajantes saudáveis ​​sejam jogados no espaço reservado para enfermeiras e que dormitórios sejam improvisados ​​no estilo de bella diana. Quanto ainda há por fazer dentro destes belos vapores que no dia da partida se avistam resplandecendo como palácios de príncipes! Em sua maioria, os marinheiros e foguistas estão lá como cachorros, a enfermaria é um armário, os lugares que deveriam ser mais limpos são horríveis e para mil e quinhentos viajantes da terceira classe não há banheiro. E digam o que dizem os higienistas que fixaram o número necessário de metros cúbicos de ar: a carne humana é muito apinhada, e que já foi pior, não desculpe: hoje ainda é algo que faz compaixão e move ao desprezo . " Esta passagem é tirada de Sull'Oceano, que, inicialmente, De Amicis intitulou Nossos agricultores na América. Pelas notas de De Amicis, na margem do manuscrito, sabemos que a "América do Norte" embarcou para Buenos Aires 1.600 passageiros na terceira classe, 20 na segunda e 50 na primeira, além dos 200 tripulantes. Similares eram as condições de viagem dos camponeses do sul do Piemonte, Lombardia, Veneto e Itália Central indo para a América. Para milhares e milhares deles, aquela travessia permanecerá na memória como a memória do inferno. 

Continua De Amicis: “À medida que a coluna do termômetro aumentava, as ocupações e os aborrecimentos do Comissário aumentavam; o mais importante deles era o dormitório feminino, onde ela tinha que ir com frequência, dia e noite, para restaurar a ordem ou para zelar pela limpeza. Mesmo levando em conta o que fazer, aquele espetáculo obrigatório teria bastado para fazer qualquer cavalheiro perder o amor pelo escritório. Imagine dois andares abaixo do convés, como dois grandes mezaninos, iluminados por uma luz de adega, e em cada um deles três fileiras de beliches colocados um em cima do outro, ao redor das paredes e no meio, e ali cerca de quatrocentos entre a amamentação e mulheres e crianças mimadas, e trinta e dois graus de calor. Aqui, no beliche de baixo, uma mulher grávida dormia com uma criança de dois anos, acima dela uma mulher de setenta anos, acima dela uma menina na primeira flor; ali, um camponês da Calábria estendeu-se ao lado de uma senhora que havia caído na pobreza; mais à frente, uma aventureira da cidade maquilando-se no escuro, ao lado de uma camponesa temente a Deus, que dormia com o rosário nas mãos. "




Esta ilustração de Arnaldo Ferraguti aparece nas primeiras páginas da luxuosa edição de 1890 de Sull'Oceano, onde De Amicis descreve o embarque: “Então as famílias se separaram: os homens de um lado, do outro as mulheres e os meninos foram levados aos seus dormitórios. E foi uma pena ver aquelas mulheres descerem com dificuldade as escadas íngremes e tatearem por aqueles dormitórios amplos e baixos, entre aqueles inúmeros beliches dispostos no chão como caixas de vermes, e aquele, ofegante, pedindo contas de um perdidos para um marinheiro que não os compreendia, os outros se jogam onde estavam, exaustos e espantados, e muitos vão e vêm ao acaso, olhando com preocupação para todos aqueles companheiros de viagem desconhecidos, inquietos como estão, confusos também daquela aglomeração e daquela desordem ”. Mais uma vez, o escritor lança luz sobre uma declaração lacônica de Mosè Bertoni ("mulheres alojadas nos piores lugares") e retoma o argumento mais tarde, no capítulo intitulado O dormitório feminino: "Imagine dois andares abaixo do convés, como dois mezaninos muito grandes, iluminados por uma luz de adega, e em cada um deles três fileiras de beliches colocados um em cima do outro, ao redor das paredes e no meio, e ali cerca de quatrocentas mulheres e crianças bebês amamentados e mimados e trinta e dois graus de calor. [...] Indo lá à noite, cabelos grisalhos, tranças loiras, panos enfaixados, canelas horríveis e senis e lindas pernas de menina, e um trapo de xales, vestidos e saias pendurados nos beliches de todas as cores naturais e adquiridas imagináveis ​​e possíveis, como bandeiras do exército infinito da miséria: e no embarque os montes confusos de botas, tamancos, chinelos, cadarços, sapatinhos, meias, para assustar pensar que havia pilhas de problemas e contendas preparadas para amanhã, na hora do nascer ”.