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sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Entre Raízes e Horizontes


Entre Raízes e Horizontes

A Vida de Bartolomeo Mussioni


Bartolomeo Mussioni nasceu em 1868 na pequena localidade de San Giacomo di Veglia, pertencente ao município de Vittorio Veneto, na província de Treviso. O lugar era um recanto modesto do Vêneto, protegido pelas colinas, repletas de parreirais, que se erguiam como guardiãs silenciosas sobre os campos cultivados. Ali, a vida seguia o compasso antigo do trabalho rural, com sinos de igreja marcando os dias e as estações ditando o destino das famílias.

Desde cedo, Bartolomeo aprendera que a terra podia ser ao mesmo tempo generosa e cruel. As planícies ao redor da vila, recortadas por fileiras de trigo e vinhedos ralos, exigiam esforço sem tréguas. A cada verão, o calor secava os campos até quase matá-los; a cada inverno, a geada queimava o que havia sobrevivido. Havia anos em que a colheita não passava de um punhado de grãos, insuficiente para alimentar a família durante os meses mais duros. Nessas épocas, o silêncio da casa se tornava pesado, quebrado apenas pelo som das lamúrias abafadas das mães e pelo ranger dos arados puxados a custo pelos bois magros.

Mas o mundo de Bartolomeo não se limitava às dificuldades da lavoura. Desde a adolescência, rumores atravessavam os vales e corriam de boca em boca: histórias de terras distantes, de uma nova vida além do oceano. Nos encontros na pequena praça de Vittorio Veneto, entre o murmúrio dos anciãos e a curiosidade dos mais jovens, surgiam relatos de famílias que haviam partido rumo à América. Falava-se de um continente fértil e sem fim, onde a terra não precisava ser pedida em arrendamento e onde as colheitas se multiplicavam como bênçãos.

Essas histórias, muitas vezes exageradas e envoltas em mistério, alimentavam a imaginação dos camponeses. Para Bartolomeo, que desde cedo conhecia a incerteza da subsistência, a ideia de uma terra em que o pão e o mel pareciam brotar da própria natureza ganhava contornos de promessa divina. Era como se o destino oferecesse, além das colinas familiares de Treviso, um horizonte novo, vasto e luminoso, capaz de resgatar sua família da penúria e garantir-lhe um futuro de abundância. 

Em 1884, quando Bartolomeo completou dezesseis anos, sua vida sofreu o primeiro grande abalo. Naquele ano, seu tio Santo, homem de espírito inquieto e coragem rara, decidiu romper os limites da tradição e tentar a sorte além-mar. Partiu de Vittorio Veneto levando consigo a esposa e as duas filhas pequenas, deixando para trás a velha casa de pedra e os vinhedos que já não sustentavam a família. A despedida foi marcada por lágrimas contidas e pelo som pesado dos sinos da paróquia, que naquela manhã pareciam dobrar não apenas para os que ficavam, mas também para o fim de uma era.

Meses depois, começaram a chegar as primeiras notícias da travessia. Relatos inflamados descreviam um Brasil exuberante, onde a terra se abria generosa diante de quem tivesse braços fortes para cultivá-la. Falava-se de rios largos como mares, de campos tão vastos que os olhos não alcançavam o fim, de colheitas que superavam qualquer expectativa. Para os que viviam sob a penúria das encostas vênetas, tais notícias soavam como revelações de um Éden reencontrado.

A cada palavra que chegava, crescia no coração de Bartolomeo um turbilhão de sentimentos. Entre a dura realidade de San Giacomo di Veglia e as promessas de um continente sem fronteiras, instalava-se nele uma inquietação que não lhe permitia mais dormir em paz. O jovem, ainda marcado pela inocência dos dezesseis anos, começou a enxergar o mundo como uma bifurcação inevitável: permanecer preso às colinas que moldaram sua infância ou arriscar tudo na incerteza de terras desconhecidas.

A decisão foi se formando lentamente, como as estações que amadurecem a vinha. Movido por uma mistura de curiosidade, esperança e o desejo quase instintivo de quebrar o ciclo da escassez, Bartolomeo se uniu à onda migratória que se espalhava por sua região como uma maré silenciosa. No dia da partida, deixou Vittorio Veneto com o coração dividido: de um lado, a saudade pungente da pátria, das colinas familiares, dos rostos que jamais veria outra vez; de outro, a expectativa ardente do desconhecido, que o atraía como uma promessa de renascimento.

A travessia foi longa, trinta dias sobre o mar revolto até o porto de Santos. Mal desembarcou, Bartolomeo solicitou ser transferido para a Colônia Caxias, no Rio Grande do Sul, onde a família de seu tio já começava a se estabelecer. Chegaram a Porto Alegre em 13 de maio de 1888, um dia que entraria para a história do Brasil pela abolição da escravatura. Para Bartolomeo e os que chegavam, no entanto, o mundo novo era ainda cru e desafiador: não havia dinheiro, não havia crédito, não havia garantias. O peso da realidade pesava mais que o sonho da América.

Enquanto seu avô e seu tio Giovanni, ainda na Itália, sugeriam o retorno à pátria, Bartolomeo ouviu a determinação de seu pai Vittore e do tio Prosdocimo: a família já estava ali, e a oportunidade deveria ser cultivada, mesmo que lenta e penosamente. Embora Bartolomeo e sua tia Lucia inicialmente desejassem retornar à Itália, a persistência do pai e a força da comunidade os fizeram permanecer. Entre resmungos e lamentações, Lucia expressava seu desdém pela “terra de selvagens”, enquanto Bartolomeo, emocionado, buscava aceitar a vontade divina e o curso inevitável da vida.

O tempo, implacável e paciente, trouxe consigo a adaptação e os primeiros frutos do esforço. As mãos calejadas de Bartolomeo e de sua família começaram a transformar a terra bruta em campos ordenados. Onde antes havia apenas mato cerrado e chão pedregoso, surgiram fileiras de milho que se erguiam como estandartes verdes sob o sol tropical. As sementes de trigo, importadas em pequenas quantidades, encontraram resistência, mas aos poucos aprendeu a crescer naquele solo novo, como se também fosse um emigrante em busca de raízes. Outros cereais, plantados em parcelas menores, completavam a paisagem agrícola que se expandia a cada estação.

A grande virada veio com a implantação do primeiro vinhedo. Entre enxadas, estacas de madeira e paciência quase infinita, Bartolomeo via brotar não apenas videiras, mas o elo simbólico com a terra de onde viera. As parreiras, ainda frágeis, balançavam ao vento como lembranças vivas das colinas de Vittorio Veneto. Cada ramo que vingava representava mais que uma promessa de colheita: era a prova de que, mesmo longe, era possível reconstruir um pedaço da pátria.

Com o trabalho incessante, vieram os primeiros sinais de progresso. Os comerciantes locais, antes desconfiados, passaram a conceder crédito. O nome dos Mussoni começou a circular nos registros da colônia, associado à perseverança e ao cultivo bem-sucedido. Uma sensação discreta de estabilidade se insinuava, ainda frágil como um fio de vidro, mas suficiente para dar à família um novo alicerce.

Cada passo, cada colheita, cada pequeno progresso consolidava a presença dos Mussoni naquele solo estrangeiro. As casas de madeira erguiam-se ao redor dos campos, os armazéns guardavam os frutos de meses de trabalho, e a terra que no início parecia hostil começava a revelar-se parceira. Ainda assim, no fundo do coração de Bartolomeo permanecia um vazio insondável. A saudade da pátria natal nunca o abandonava: nas noites silenciosas, enquanto o vento atravessava as frestas da casa simples, ele sentia-se de novo em San Giacomo di Veglia, ouvindo o soar dos sinos da pequena igreja e vendo as colinas do Vêneto se tingirem de dourado ao entardecer.

A vida lhe ensinava que era possível criar raízes em terras distantes, mas jamais arrancar da alma a lembrança daquilo que havia sido perdido.

Bartolomeo, moldado por desafios e esperanças, aprendeu que a verdadeira viagem não estava apenas na travessia do Atlântico, mas na construção de uma vida digna em terras que, embora distantes e inóspitas, podiam tornar-se lar para aqueles que perseverassem. Entre a memória das colinas de Treviso e os horizontes abertos do Rio Grande do Sul, encontrou seu destino — uma existência de trabalho árduo, conquistas tímidas e, acima de tudo, a promessa de um futuro construído com suas próprias mãos.

Nota do Autor

Escrever esta história foi, para mim, mais do que um exercício de imaginação: foi um mergulho profundo na memória coletiva de milhares de famílias que, como Bartolomeo Mussioni, deixaram sua terra natal em busca de uma vida melhor. Ao revisitar os caminhos de um personagem ficcional, inspirado na realidade de tantos imigrantes do Vêneto e de outras regiões da Itália, procurei dar voz à experiência universal de quem se vê dividido entre o amor pelas raízes e a necessidade de olhar para novos horizontes.

A escolha por narrar a vida de Bartolomeo nasceu do desejo de compreender o drama silencioso da emigração: o peso da fome, das colheitas incertas, das despedidas carregadas de lágrimas, mas também a esperança quase teimosa que movia homens e mulheres a atravessarem o oceano. Escrever sobre ele foi, portanto, uma forma de homenagear não apenas uma geração de italianos que ajudou a construir o Brasil, mas também as histórias de luta, adaptação e fé que permanecem vivas na memória de seus descendentes.

Ao longo da narrativa, busquei mostrar que a travessia de Bartolomeo não se restringiu ao Atlântico: ela foi também uma travessia interior. Cada vinhedo plantado, cada pedaço de terra cultivado, representava não só um gesto de sobrevivência, mas também uma tentativa de recriar, em solo estrangeiro, a pátria que ficara para trás. É nesse ponto que a história se torna universal: todos nós, em algum momento da vida, precisamos aprender a equilibrar aquilo que carregamos de origem com aquilo que nos espera adiante.

Decidi escrever Entre Raízes e Horizontes porque acredito que a literatura tem a força de resgatar aquilo que o tempo muitas vezes tenta apagar. A saga de Bartolomeo Mussioni é, no fundo, um tributo à coragem, à persistência e à saudade. É também um convite ao leitor para refletir sobre suas próprias raízes e horizontes — sobre o que deixamos para trás e sobre aquilo que nos move a seguir em frente.

Dr. Luiz Carlos Piazzetta



segunda-feira, 7 de abril de 2025

A Travessia de Domenico Valtieri


A Travessia de Domenico Valtieri


Domenico Valtieri tinha 31 anos quando decidiu abandonar sua cidadezinha natal, San Pietro di Barbozza, uma pequena localidade nas belas colinas de Valdobbiadene. A terra na verdade era boa, mas, naqueles tempos, em finais do século XIX, o trabalho era muito escasso, e o futuro para ele, sua esposa Elena e a filha pequena, Maria, parecia cada vez mais sombrio. Toda a zona rural do Veneto sofria com safras magras, inclemência do clima, preço baixo dos grãos, desemprego cada vez maior e fome. As cartas de parentes e vizinhos que já haviam emigrado para o Brasil falavam de terras férteis, acessíveis e oportunidades, ainda que conquistadas com muito esforço. Para Domenico, o apelo de um novo começo era irresistível.

No outono de 1892, ele vendeu tudo o que possuía: algumas galinhas, uma velha mula e utensílios de arado. Com o dinheiro arrecadado e um empréstimo feito a um comerciante local, comprou passagens para o vapor L'Esperanza, que partiria do porto de Gênova rumo ao Rio de Janeiro. A viagem seria longa e cheia de incertezas, mas Domenico acreditava que nada poderia ser pior do que o desespero de permanecer na miséria.

A realidade da travessia revelou-se cruel. Na terceira classe, onde estavam Domenico e sua família, havia uma mistura de corpos, vozes e odores. Homens, mulheres e crianças dividiam espaços apertados, com camas de madeira dura e pouca ventilação. Os dias no mar eram monótonos, interrompidos apenas por tempestades que traziam momentos de tensão. À noite, o som de tosses persistentes, sussurros de orações e o choro de crianças famintas preenchiam o ambiente. Elena tentava distrair Maria com histórias sobre a nova vida que os aguardava, enquanto Domenico, observador, via na travessia uma metáfora de sua luta: um intervalo entre o sofrimento deixado para trás e a esperança que brilhava no horizonte.

Porém, a jornada foi mais implacável do que poderiam imaginar. Uma epidemia de sarampo se espalhou entre as crianças nos porões do navio, e Maria foi uma das primeiras a adoecer. Domenico e Elena fizeram tudo o que podiam, mas a falta de medicamentos e atendimento transformou cada dia em uma batalha perdida. Maria faleceu uma semana antes da chegada ao Brasil. Seu corpo foi dolorosamente sepultado no mar, enrolado em uma mortalha feita de lençóis, amarrada com cordas envolta ao corpo, seguido de uma despedida silenciosa e devastadora, que marcou para sempre a memória dos pais e de tantos outros passageiros e tripulantes que presenciaram aquela impressionante cena.

Ao desembarcarem no Rio de Janeiro, Domenico e Elena encontraram um mundo novo, mas longe do que haviam sonhado. Após alguns dias na Hospedaria dos Imigrantes, foram enviados para o sul do país, para uma colônia agrícola no interior do Rio Grande do Sul. A viagem até lá foi mais uma prova de resistência: dias de viagem rio acima, em pequenos bracos, depois em carroças puxadas por bois, atravessando picadas lamacentas e enfrentando o frio das serras. Quando finalmente chegaram à colônia de Dona Isabel, encontraram uma paisagem desafiadora, mas promissora: florestas densas, rios caudalosos e terras férteis, que exigiriam esforço para serem cultivadas.

A vida na colônia começou de forma precária. Domenico, junto a outros colonos, derrubava árvores para construir uma casa de madeira simples. Enquanto isso, Elena cuidava do pouco que tinham e preparava o terreno para a nova rotina. Não havia médicos por perto, e o isolamento entre as famílias fazia da saudade uma presença constante. A lembrança de Maria e dos parentes deixados na Itália era dolorosa, mas o trabalho árduo mantinha o casal focado no futuro.

Com o tempo, os sacrifícios começaram a dar frutos. Domenico conseguiu quitar as terras adquiridas do governo e expandir sua propriedade. Tinham finalmente conseguido realizar o sonho da propriedade. Ele plantou videiras, como fazia na sua terra natal que, anos depois, deram origem a um grande vinhedo, tornando-se um dos pioneiros na produção de vinho da região. A família cresceu com o nascimento de novos filhos, e os Valtieri se tornaram um símbolo de resiliência e trabalho árduo na colônia.

Nos momentos de descanso, Domenico gostava de caminhar entre as videiras, contemplando os cachos de uvas balançando ao vento. Sentia orgulho do que havia construído, mas também carregava o peso das perdas do passado. Ele sabia que a vida na colônia era difícil, mas representava uma vitória sobre as adversidades.

O sacrifício de Maria e de tantas outras crianças que não sobreviveram à travessia não foi em vão. Para Domenico, a saga dos imigrantes era uma lição sobre a força e a fragilidade humanas. Cada um era, ao mesmo tempo, testemunha e vítima de um sistema que prometia um futuro brilhante, mas frequentemente entregava abandono e exploração.

Anos depois, já bem estabelecido, Domenico costumava sentar no alpendre de sua casa e contemplar os campos cultivados. Ali, refletia sobre os sacrifícios feitos, os sonhos interrompidos e as vidas perdidas durante a travessia. Sua história, como a de tantos outros, era um testemunho de coragem e resiliência. Movidos pela necessidade e pela esperança, ele e Elena ousaram atravessar o oceano, construindo uma nova chance para si e para os filhos que viriam.