Espaço destinado aos temas referentes principalmente ao Vêneto e a sua grande emigração. Iniciada no final do século XIX até a metade do século XX, este movimento durou quase cem anos e envolveu milhões de homens, mulheres e crianças que, naquele período difícil para toda a Itália, precisaram abandonar suas casas, seus familiares, seus amigos e a sua terra natal em busca de uma vida melhor em lugares desconhecidos do outro lado oceano. Contato com o autor luizcpiazzetta@gmail.com
quinta-feira, 14 de agosto de 2025
Vozes Silenciosas: A Luta das Mulheres no Passado
segunda-feira, 16 de junho de 2025
O Destino de Vittorio Belomonte
O Destino de Vittorio Belmonte
Na fria alvorada de 2 de julho de 1904, Vittorio Belomonte fechou a pequena mala de couro que sua mãe havia lhe dado e, com um último olhar para a casa onde crescera, saiu sem olhar para trás. O destino o chamava.
Nascido em 1882, em um vilarejo esquecido nas montanhas do Friuli, Vittorio passara a juventude trabalhando nos bosques, cortando lenha para senhores que nunca lembravam seu nome. Seu pai, Giovanni, morrera cedo, deixando a mãe e três irmãos na miséria. A fome tornara-se uma sombra constante, e, à medida que os anos passavam, Vittorio percebeu que seu destino não estava ali, mas além-mar.
A viagem até Longarone foi silenciosa. Seus companheiros, jovens de sua vila, compartilhavam a mesma melancolia. O condutor da carroça bradou impaciente para que subissem, e um nó apertou a garganta de Vittorio. Com um último olhar melancólico, ele contemplou seu vilarejo: as casas de pedra aconchegadas umas às outras, como se buscassem calor, e as montanhas imponentes ao fundo, seus picos eternamente coroados de neve. O vento gelado trouxe o cheiro da terra úmida e da lenha queimada nas lareiras. Vittorio suspirou fundo, gravando aquela imagem na memória.
Em Longarone, pegou seus documentos para deixar o país e seguiu para Veneza. As ruas estreitas e os canais da cidade lhe pareceram um outro mundo. Mas não havia tempo para contemplação. O passaporte foi carimbado, e, com os trocados que tinha, comprou pão, salame e um frasco de vinho, o suficiente para a jornada. Quando o trem para Gênova chegou, ele embarcou sem hesitação. Não havia mais volta.
A Estação de Gênova fervilhava de emigrantes, um turbilhão de rostos ansiosos e mãos calejadas segurando malas gastas pelo tempo. Homens e mulheres, vestidos com suas melhores – e muitas vezes únicas – roupas de viagem, deslocavam-se em meio à multidão, esbarrando-se sem querer, trocando olhares de cumplicidade e medo.
Poucos tinham dinheiro suficiente para um hotel decente, então amontoavam-se em uma pequena estalagem de teto baixo e paredes úmidas, escondida em uma viela sombria perto do porto. O lugar era abafado, impregnado pelo cheiro de suor e peixe salgado, e os murmúrios dos hóspedes misturavam-se ao ranger do assoalho gasto. Todos temiam os perigos daquela cidade portuária, onde golpistas e ladrões rondavam como lobos à espreita de presas fáceis. Qualquer descuido e o pouco que possuíam poderia desaparecer em um instante.
Ainda assim, mesmo em meio à incerteza, havia um sentimento pulsante no ar: a promessa de um novo começo, a esperança de um destino melhor do outro lado do oceano. A tensão e a expectativa eram quase palpáveis, como a eletricidade antes de uma tempestade.
Vittorio dividiu um quarto apertado e mal ventilado com outros três friulanos. Os beliches rangiam a cada movimento, e o cheiro de mofo misturava-se ao odor de corpos cansados e roupas úmidas. O sono veio apenas em fragmentos inquietos, interrompido pelo barulho da cidade que nunca dormia e pelo medo latente do que estava por vir.
Ao amanhecer, espreguiçaram-se sob a luz fraca que se infiltrava pelas frestas da janela e, sem muito a fazer além de esperar a hora do embarque, decidiram explorar a cidade. Caminharam pelas ruelas estreitas de Gênova, onde vendedores gritavam ofertas em dialetos diversos e carroças espirravam lama nos transeuntes. O cheiro de pão recém-assado se misturava ao odor forte do porto, onde o mar e o suor dos estivadores se fundiam em uma atmosfera pesada.
Então, ao dobrarem uma esquina, a visão do vapor Regina Elena os fez parar. Ele estava ancorado no cais, imenso e imponente, como um colosso de ferro e vapor. Suas chaminés erguiam-se como torres de um castelo flutuante, e a madeira dos conveses reluzia sob o sol da manhã. Para Vittorio, o navio era uma promessa e uma ameaça ao mesmo tempo. Dentro dele estava seu futuro, sua esperança e também o medo do desconhecido.
Por um instante, o mundo ao redor pareceu silenciar. O burburinho dos estivadores, o ranger das cordas sendo puxadas, até mesmo o tilintar das moedas nas mãos dos vendedores ambulantes — tudo pareceu distante, abafado, como se o tempo tivesse parado.
Vittorio sentiu o coração bater pesado no peito. O gosto salgado do ar encheu seus pulmões, misturado ao cheiro de carvão queimado que escapava das entranhas do navio. O Regina Elena estava ali, gigantesco, como um portão entre dois mundos — o passado que ele deixava para trás e o futuro incerto que o aguardava.
Engoliu em seco. Não havia mais volta. A Itália, sua terra, sua infância, seus bosques familiares e os rostos que jamais voltaria a ver... tudo ficaria para trás no momento em que ele pisasse naquele convés. A única direção agora era para frente.
No dia 29, Vittorio pagou a passagem e submeteu-se à rigorosa inspeção médica. Os oficiais o examinaram com olhares frios e mecânicos, apalpando-lhe os braços, verificando seus dentes, como se avaliassem a resistência de um animal de carga. Foi vacinado com uma agulha áspera e sem cerimônia, sentindo a ardência do líquido em sua pele. Cortaram-lhe os cabelos sem cuidado, deixando fios grossos caírem sobre seus ombros como vestígios da vida que abandonava. Seus pertences foram revistados por mãos desconhecidas, que reviraram sua mala como se buscassem algo de valor escondido.
A noite anterior ao embarque foi longa e inquieta. O quarto apertado da decadente estalagem estava impregnado pelo cheiro de suor e mofo, o colchão fino não oferecia conforto algum. Ele escutava a respiração pesada de seus companheiros de quarto — roncos intermitentes, murmúrios febris de sonhos turbulentos — misturados ao som distante das ondas quebrando contra as pedras do porto. Cada rajada de vento que entrava pela janela mal fechada trazia o cheiro salgado do mar, lembrando-o de que, dali a poucas horas, sua vida mudaria para sempre.
Na manhã do dia 30, Vittorio caminhou até o porto com passos firmes, mas o coração acelerado. O cais fervilhava de gente. Homens gritavam ordens em dialetos diversos, carregadores passavam apressados equilibrando malas e fardos pesados nos ombros, e crianças agarravam-se às saias das mães, assustadas com a confusão ao redor. O cheiro do mar misturava-se ao de carvão queimado e peixe fresco, formando uma névoa espessa de sal e fuligem que pairava no ar.
Antes de seguir para o embarque, Vittorio comprou alguns limões — diziam que ajudavam contra o enjoo — e, apoiando-se em um caixote de madeira, escreveu uma última carta para a família. Escolheu as palavras com cuidado, tentando transmitir esperança, embora o peso da despedida lhe apertasse o peito.
A fila para embarque serpenteava pelo cais, arrastando-se lentamente como uma procissão de almas ansiosas. Os funcionários da companhia de navegação verificavam documentos com olhares indiferentes, enquanto os passageiros aguardavam sob o sol escaldante, segurando seus pertences com desconfiança. Quando chegou sua vez, Vittorio foi submetido a mais uma inspeção, os olhos atentos dos agentes percorrendo seu rosto e suas roupas como se buscassem algo suspeito.
Por fim, um funcionário lhe entregou um número rabiscado em um pedaço de papel sujo e indicou a entrada do navio. Descendo por corredores estreitos e abafados, iluminados apenas por lampiões oscilantes, Vittorio finalmente encontrou sua beliche: um espaço exíguo, onde mal cabia deitado. O colchão fino era pouco mais que um pedaço de pano gasto sobre tábuas duras, e a manta áspera cheirava a mofo. Ele se sentou devagar, sentindo o metal gelado da estrutura contra as mãos trêmulas.
Lá fora, os apitos soaram longos e solenes. A terra firme começava a se afastar. Pouco depois do meio-dia, soaram três apitos longos. As cordas foram soltas. O vapor Regina Elena moveu-se lentamente, afastando-se do porto. O barulho das despedidas ecoava no ar. Mães choravam, pais levantavam os chapéus, crianças acenavam sem entender. A bordo, Vittorio e seus companheiros retribuíam o gesto, engolindo as lágrimas. O hino real tocava, seguido pela Marcha Garibaldi. Uma pequena banda saudava aqueles que partiam, soldados de um exército invisível em busca de uma vida melhor.
Os primeiros dias foram um teste de resistência. No porão apertado onde dormia, o ar era denso, carregado do cheiro acre de suor, mofo e vômito. O calor sufocante tornava o ambiente ainda mais insuportável, e o balançar incessante do navio fazia com que muitos passageiros passassem mal. O som dos gemidos de náusea e da tosse seca de crianças doentes preenchia a escuridão.
A comida era pouca e sem sabor: pedaços de pão endurecido, caldo ralo que mais parecia água suja e, ocasionalmente, um punhado de batatas cozidas. As filas para receber as rações eram longas, e os mais fracos frequentemente ficavam sem nada.
Mas Vittorio resistia. Ele se recusava a ceder à fraqueza, mantendo a disciplina que aprendera nos campos de sua terra natal. Durante o dia, sempre que podia, escapava do porão e subia ao convés. Lá, o vento salgado refrescava sua pele, e a visão do oceano infinito lhe dava a ilusão de liberdade. Ficava horas observando as ondas, tentando ignorar o estômago vazio e a saudade crescente.
À noite, quando finalmente conseguia dormir, sua mente o levava de volta a Friuli. Sonhava com os bosques úmidos após a chuva, com o cheiro da terra revirada pelo arado, com a voz de sua mãe chamando-o para a ceia. Mas, ao acordar, tudo o que via eram paredes de ferro corroídas pelo tempo e corpos exaustos amontoados ao seu redor. A viagem mal havia começado, e já parecia uma eternidade.
No décimo quinto dia de viagem, o oceano, antes calmo, se transformou em um monstro furioso. O céu escureceu de repente, como se a noite tivesse caído em pleno dia. O vento uivava entre os mastros, e trovões ribombavam sobre as águas agitadas. Quando as primeiras ondas colossais atingiram o casco do Regina Elena, o navio estremeceu como se fosse feito de papel.
No porão, o terror tomou conta dos passageiros. Cada balanço da embarcação lançava corpos contra as paredes de ferro. Gritos se misturavam ao estrondo das ondas. Algumas mães, apavoradas, agarravam os filhos contra o peito e rezavam baixinho. Outros simplesmente choravam, sem forças para reagir.
Vittorio segurava-se como podia, os dedos crispados na borda da beliche. Um homem ao seu lado foi jogado ao chão e bateu com a cabeça em uma viga. O sangue se espalhou pelo assoalho de madeira, mas ninguém teve tempo de socorrê-lo. Tudo o que importava era sobreviver àquela noite interminável.
Lá fora, o mar tentava engolir o Regina Elena. Ondas monstruosas varriam o convés, levando caixas, barris e qualquer coisa que não estivesse presa. Tripulantes gritavam ordens que ninguém conseguia ouvir, enquanto lutavam para manter o navio no curso.
Então, tão repentinamente quanto começou, a tempestade passou. O silêncio foi quebrado apenas pelo som do mar ainda revolto e dos soluços abafados no porão. O estrago era visível. Malas e roupas encharcadas espalhavam-se pelo chão, alguns passageiros estavam feridos, outros simplesmente paralisados pelo medo.
Mas o Regina Elena seguia firme. E com ele, os sonhos e as esperanças de centenas de almas que, apesar de tudo, ainda acreditavam em um futuro melhor.
No vigésimo quinto dia de viagem, um burburinho se espalhou pelo convés. Terra à vista! Vittorio correu para olhar. No horizonte, uma linha escura tomava forma, crescendo a cada minuto. O porto de Santos emergia da névoa matinal como uma miragem, um amontoado de galpões, mastros de navios e telhados vermelhos, cercado por colinas cobertas de vegetação densa. O cheiro salgado do mar começou a se misturar com algo novo: um aroma quente e pesado, de madeira úmida e café.
Conforme o Regina Elena se aproximava do cais, a agitação tomava conta dos passageiros. Alguns se benziam, outros choravam, abraçados. Homens seguravam seus chapéus contra o vento, mulheres ajeitavam os lenços e roupas amarrotadas. Os tripulantes gritavam ordens em italiano, tentando conter o tumulto, enquanto barcaças carregadas de sacas de café passavam ao lado, guiadas por remadores morenos de olhar curioso.
Quando finalmente desceram a rampa de desembarque, uma onda de calor pegajoso os envolveu. Vittorio sentiu o suor escorrer pelas costas enquanto tentava respirar aquele ar novo, carregado de umidade. O idioma ao redor soava como uma cacofonia incompreensível—ordens gritadas, risadas, discussões entre trabalhadores portuários. Ele mal teve tempo de assimilar o choque antes de ser empurrado junto com os demais imigrantes para um dos galpões imensos ao lado do porto.
Lá dentro, o cheiro de corpos suados e roupas molhadas tornava o ambiente ainda mais sufocante. Filas se formavam diante dos funcionários, que verificavam documentos, assinavam papéis, apontavam direções. Alguns homens, de pele bronzeada e olhar avaliador, caminhavam entre os recém-chegados, observando-os como se escolhessem mercadoria.
— Café! Todos para o interior! — bradou um deles em italiano rudimentar.
Vittorio engoliu em seco, sentindo o peso da incerteza apertar-lhe o peito. Não havia tempo para contemplação, nem espaço para hesitação. A engrenagem da imigração girava sem pausas, empurrando-os inexoravelmente para o próximo destino.
A exaustão da viagem ainda pesava nos corpos dos recém-chegados, mas ninguém se atrevia a reclamar. Homens de rostos severos davam ordens rápidas, chamando nomes, apontando direções. Vagões de trem, de madeira escura e janelas gradeadas, aguardavam na linha férrea próxima ao galpão. O cheiro de ferro e óleo queimado se misturava ao calor abafado da manhã tropical.
Vittorio sentiu um nó no estômago ao avistar as composições que os levariam para o desconhecido. Onde dormiria naquela noite? O que encontraria no fim daquela jornada?
O aviso veio curto e seco:
— Para os trens! Movam-se!
Ele pegou sua pequena trouxa e avançou com os demais, passos hesitantes no solo quente do novo mundo. Já não havia mais navios, nem mar. Apenas terra firme e um destino incerto.
Não havia mais volta.
Com uma mala de couro gasta e um coração pesado de incertezas, Vittorio seguiu em frente, empurrado pelo fluxo implacável dos recém-chegados. Atrás dele, a Itália se tornava apenas uma lembrança distante, um mundo ao qual jamais retornaria da mesma forma.
O chão de terra batida rangia sob suas botas, o calor escaldante grudava em sua pele. À sua volta, imigrantes caminhavam em silêncio, carregando sacos e baús, os rostos marcados pela fadiga e pela expectativa. Cada passo era um salto no desconhecido.
No Brasil, um novo capítulo se abria diante dele—não por escolha, mas por necessidade. O que o aguardava além da estação de trem? Campos intermináveis de café? Trabalho árduo sob o sol impiedoso? Ou talvez, quem sabe, a promessa de uma vida digna, algo que a terra natal lhe negara?
A única certeza era que não havia caminho de volta.
Vittorio mal teve tempo de se recuperar da exaustiva travessia. Assim que desembarcou em Santos, foi rapidamente selecionado e encaminhado para o interior de São Paulo, onde um fazendeiro necessitava de trabalhadores para sua vasta plantação de café. A viagem de trem foi longa e desconfortável, o vagão de madeira sacolejando sobre os trilhos enquanto o calor e o cheiro de suor tornavam o ar quase irrespirável.
Quando finalmente chegou à fazenda, nos arredores da emergente Ribeirão Preto, foi recebido com poucas palavras e um olhar avaliador. Ali, o trabalho não fazia concessões. Antes mesmo do sol despontar no horizonte, já estava nos cafezais, arrancando os grãos vermelhos sob um calor implacável que fazia sua camisa grudar no corpo. Os cestos se enchiam rápido, e logo vinham os sacos pesados, que ele e os outros imigrantes carregavam até os secadores. Os ombros ardiam, as mãos se cobriam de calos, mas não havia descanso.
A barreira da língua o isolava no início. O português soava rude, estranho, como um código indecifrável. Mas, entre ordens gritadas e murmúrios trocados à sombra dos cafezais, Vittorio começou a entender. Aprendia com os outros imigrantes, muitos deles tão perdidos quanto ele. E, pouco a pouco, o desconhecido tornava-se familiar.
Os anos se passaram, marcados por trabalho árduo e sacrifícios silenciosos. Vittorio economizava cada tostão, recusando-se a gastar com qualquer coisa que não fosse essencial. Dormia pouco, comia o suficiente para se manter de pé e sonhava com o dia em que teria sua própria terra. A ideia de ser dono do próprio destino era o que o fazia resistir.
Em 1910, esse dia finalmente chegou. Com o que havia juntado, arrendou uma chácara nas proximidades de Araraquara. Não era grande, nem rica, mas era sua. A terra, escura e fértil, prometia sustento, mas cobrava um preço alto. Trabalhar sozinho significava acordar antes do sol e seguir até a última luz do dia, preparando o solo, plantando, colhendo. A cada estação, enfrentava novos desafios: a fúria das chuvas tropicais que castigavam as lavouras, as pragas traiçoeiras que ameaçavam destruir meses de esforço.
Mas Vittorio aprendeu. Observava os fazendeiros mais experientes, testava métodos, enfrentava as falhas e tentava de novo. Cada safra era uma lição. Cada derrota, um aprendizado. Seus calos engrossavam, suas costas se curvavam sob o peso do trabalho, mas, junto com o cansaço, crescia também a convicção de que, naquela terra, fincaria suas raízes.
O sucesso veio devagar, como a germinação das mudas que plantava. Primeiro, conseguiu comprar uma carroça, o que lhe permitiu levar sua colheita diretamente ao mercado. Depois, contratou ajudantes, homens tão determinados quanto ele, que viam no café uma chance de prosperar. A pequena chácara transformou-se em uma propriedade produtiva, e os sacos de grãos empilhavam-se na varanda antes de seguirem para a venda.
Em 1915, quando finalmente sentiu que havia construído algo sólido, casou-se com Maria, filha de um imigrante calabrês. Ela trazia no olhar a mesma resiliência de quem cruzara o oceano em busca de uma vida melhor. Juntos, trabalharam lado a lado, expandindo as plantações e cuidando da terra como se fosse um membro da família.
Com o tempo, a propriedade deixou de ser apenas um campo de cultivo e tornou-se um lar. Seus três filhos cresceram correndo entre os cafezais, os pés descalços tocando o solo que ele tanto lutou para conquistar. O som das risadas infantis misturava-se ao canto dos pássaros e ao farfalhar das folhas ao vento. Ali, no coração do Brasil, Vittorio não era mais apenas um imigrante. Tornara-se parte da terra que o acolheu.
Nos anos seguintes, o suor de Vittorio se transformou em prosperidade. Sua pequena fazenda expandiu-se além do que ele jamais imaginara. Com paciência e estratégia, adquiriu terras vizinhas, uma a uma, até tornar-se um dos maiores fornecedores de café da região. O aroma dos grãos recém-colhidos impregnava o ar, misturando-se à promessa de um futuro cada vez mais próspero.
Mas a riqueza de Vittorio não se media apenas em sacas de café. Ao lado de outros imigrantes italianos, ajudou a moldar uma comunidade forte e vibrante. Doou terras para a construção de uma escola, pois sabia que o conhecimento era a chave para que seus filhos tivessem um destino melhor. Contribuiu para erguer uma igreja, onde os fiéis se reuniam para rezar, buscar conforto e celebrar a vida. A vila cresceu, impulsionada pelo trabalho árduo de homens e mulheres que, como ele, haviam deixado tudo para trás em busca de uma nova chance.
No entanto, Vittorio jamais esqueceu o dia de sua partida. O último olhar lançado sobre sua terra natal permanecia gravado em sua mente, como uma fotografia desbotada pelo tempo. Sabia que nunca voltaria, que as ruelas estreitas e as montanhas de Friuli permaneceriam apenas em sua memória.
Ainda assim, ao caminhar entre os cafezais floridos, sentindo o perfume adocicado das flores brancas e ouvindo o riso de seus netos ecoando pelos campos, percebia que havia encontrado mais do que um lugar para trabalhar. Ali, fincara suas raízes. Ali, seu nome viveria além dele.
sexta-feira, 20 de dezembro de 2024
Fragmentos de Amor: As Histórias de Dona Clara
Fragmentos de Amor
As Histórias de Dona Clara
Em um tranquilo lar para idosos, cercado por árvores frondosas e jardins floridos, uma velha senhora chamada Dona Clara passava suas tardes sentada em uma poltrona confortável, de tecido azul desbotado. O ambiente ao seu redor era acolhedor, com o suave cheiro de flores que entrava pelas janelas abertas e o canto dos pássaros que se aninhavam nos galhos das árvores. Seus cabelos brancos, finos como algodão, emolduravam seu rosto sereno, e seus olhos azuis brilhavam com a luz de memórias passadas, mas também com uma sombra de tristeza.
Hoje, ela decidiu folhear um álbum de fotografias antigas que guardava com carinho. A capa de couro desgastada do álbum refletia os anos vividos, e ao abrir a primeira folha, Dona Clara encontrou uma foto de seu casamento. Nela, ela usava um vestido branco simples, mas elegante, com detalhes em renda que pareciam ter sido feitos à mão. O sorriso radiante de seu marido, Antônio, iluminava a imagem como um farol em meio à escuridão do tempo. Ela podia quase ouvir as risadas e o tilintar das taças de champagne daquele dia especial. Lembranças do salão decorado com flores frescas e da música suave que preenchia o ar dançavam em sua mente. “Ah, Antônio”, murmurou ela, sentindo uma onda de nostalgia. “Quantas danças nós tivemos naquela noite!”
Seguindo em frente nas páginas amareladas pelo tempo, Dona Clara encontrou fotos dos filhos brincando no quintal da antiga casa. A imagem deles correndo atrás de um cachorro que parecia tão feliz quanto eles a fez rir baixinho. Os rostos sorridentes eram como raios de sol em um dia nublado; a alegria pura e inocente da infância transbordava em cada clique. Contudo, enquanto revivia essas memórias felizes, uma mágoa profunda a envolvia: fazia meses que seus filhos e netos não a visitavam. A ausência deles pesava em seu coração como uma nuvem escura sobre um dia ensolarado.
Ela se lembrou das histórias que contava à noite, quando os pequenos se aninhavam ao seu redor, com os olhos brilhando de expectativa e as bochechas coradas pela emoção. Cada risada e cada abraço eram tesouros que ela guardava no coração como pérolas preciosas. Mas agora, o silêncio do lar parecia ecoar sua solidão; as visitas que antes eram frequentes tornaram-se raras e distantes.
Enquanto folheava as páginas do álbum, Dona Clara percebeu que as fotografias não eram apenas imagens; eram fragmentos de amor e conexão. Cada rosto trazia consigo uma história única e uma emoção palpável. Ela se lembrou das dificuldades enfrentadas ao longo da vida: as noites insones cuidando dos filhos doentes, as lágrimas derramadas nas despedidas e as alegrias simples que tornavam tudo suportável. “Se ao menos eu pudesse compartilhar essas memórias com eles agora”, pensou, sentindo-se um pouco solitária em meio àquelas recordações vibrantes. Mas logo sua mente se iluminou com a ideia de que essas histórias poderiam ser contadas novamente.
Inspirada por essa reflexão e pela necessidade de se conectar mais uma vez com sua família, Dona Clara decidiu que iria escrever suas memórias para seus filhos e netos. Com um sorriso nos lábios e um brilho nos olhos que refletiam a determinação renovada — mas também um toque de tristeza — ela começou a planejar como organizaria suas histórias em um livro. As palavras dançavam em sua mente como folhas ao vento; cada memória era uma página em branco esperando para ser preenchida com amor e sabedoria.
“Essas memórias não podem ficar apenas nas páginas do álbum”, disse para si mesma enquanto acariciava a capa do livro com ternura. “Elas precisam viver.” A ideia de deixar um legado para sua família encheu seu coração de alegria e esperança, mas também um desejo profundo de reencontrar aqueles que tanto amava.
Com o coração aquecido pela nova missão que se apresentava diante dela — embora ainda marcado pela mágoa da ausência dos filhos — Dona Clara fechou o álbum e olhou pela janela do lar. As folhas das árvores dançavam ao vento como se estivessem celebrando sua decisão; o sol filtrava-se através dos galhos, criando padrões luminosos no chão coberto de grama verdejante. Naquele momento mágico, a velha senhora branca não era apenas uma guardiã de memórias; ela estava prestes a se tornar uma contadora de histórias, unindo passado e presente através da magia das palavras.
E assim, naquela tarde ensolarada, Dona Clara sorriu para o futuro que se desenrolava diante dela, cheia de esperança e determinação para compartilhar sua rica história de vida com aqueles que mais amava — mesmo na ausência deles.
domingo, 8 de setembro de 2024
Sob o Céu do Veneto: A Jornada de uma Família de Agricultores
O sol se punha sobre as montanhas dos Dolomitas, tingindo o céu de um laranja vibrante. Em um pequeno município na província de Belluno, na fronteira norte do Vêneto, a família Benedettini reunia-se ao redor de uma mesa de madeira antiga, marcada pelo tempo e pelo uso. Giovanni Benedettini, o patriarca, era um homem de mãos calejadas e olhos que guardavam séculos de história. Ele observava seus filhos, Rosa e Pietro, e sua esposa Augusta Aurora, sentada silenciosa com o rosário entre os dedos. “Era diferente no tempo da Serenissima”, murmurou Giovanni, quebrando o silêncio. “Nós almoçávamos e jantávamos. Tínhamos pão e vinho, e o trabalho na terra nos sustentava. Mas agora, sob os Savoia, mal conseguimos uma refeição. A fome bate à nossa porta, e a terra, que antes nos dava vida, agora parece nos condenar.” Maria assentiu, seus olhos refletindo a mesma preocupação. Ela sabia que a mudança estava se aproximando, uma mudança que seria definitiva. A memória da Serenissima Republica de Veneza ainda era viva na comunidade, uma época de relativa prosperidade e dignidade, antes da invasão de Napoleão e a subsequente dominação austríaca. Sob Francisco José, o imperador “Cesco Bepi” como os venetos o chamavam, a vida se tornou mais difícil, mas ainda suportável. Com a unificação da Itália e a anexação do Vêneto ao Reino da Itália sob a Casa de Savoia, a situação deteriorou-se rapidamente. As promessas de liberdade e prosperidade eram mentiras vazias; o que restou foi a miséria. A crise econômica se agravava, e a família Benedettini, como muitos outros pequenos agricultores e artesãos, se via à beira do colapso. A terra que Giovanni cuidava com tanto zelo pertencia a um grande senhor que vivia distante, em Veneza. O gastaldo, encarregado da administração, era implacável e não tolerava qualquer falta. As dívidas se acumulavam, e a fome se tornava uma companheira constante.
Em uma manhã fria de outubro, durante a missa dominical, o padre Don Luigi, um homem respeitado por toda a aldeia, subiu ao púlpito e, com uma voz que ecoava pelas paredes da igreja, não mediu as palavras e mesmo contra os interesses dos ricos proprietários de terras, incentivou a emigração. “Meus filhos, a nossa terra é abençoada, mas os tempos são difíceis. Deus nos deu coragem, e devemos usá-la. Há terras além-mar, terras que prometem uma vida melhor. A fome não deve ser o nosso destino. Emigrem, encontrem nova vida. Essa é a vontade de Deus.” As palavras do padre reverberaram no coração de Giovanni. Ele sabia que permanecer significava a morte lenta da sua família, mas partir era uma aposta no desconhecido. Muitos proprietários de terras, contrários a emigração, pois, ficariam sem mão de obra ou, pela falta, teriam que pagar muito mais por ela, faziam circular entre o povo, boatos e desinformações que criavam temor e medo naqueles que estavam querendo emigrar. Contudo, naquela noite, ao olhar para os rostos de seus filhos, ele tomou uma decisão. Eles deixariam o Vêneto.
A decisão de emigrar não foi fácil, mas o destino estava traçado. Em uma manhã nebulosa, a família Benedettini juntou seus poucos pertences e se preparou para a longa jornada até o porto de Gênova. Ali, embarcariam em um navio rumo ao Brasil, um país do qual sabiam pouco, mas que prometia novas oportunidades. Antes de partir, Giovanni foi até a igreja. Ele se ajoelhou diante da imagem de São Marco, padroeiro de Veneza, e rezou em silêncio. Sentia o peso de séculos de história sobre seus ombros, mas também sabia que não havia outra escolha. O dia da partida foi marcado por lágrimas e abraços apertados. A pequena aldeia se reuniu para se despedir dos Benedettini. Amigos e vizinhos ofereciam orações e promessas de cartas. A tristeza era palpável, mas havia também uma centelha de esperança nos olhos daqueles que partiam. “Não esqueçam quem vocês são, onde nasceram. Levem o Vêneto no coração,” disse o velho Paolo, o amigo mais antigo de Giovanni, enquanto apertava a mão do patriarca.
A travessia do Atlântico foi longa e cheia de desafios. No porão do navio, os Benedettini compartilhavam um espaço apertado com dezenas de outras famílias, provenientes de várias regiões da Itália, todas em busca de uma nova vida. O mar era implacável, e muitos dias se passavam sem que a luz do sol penetrasse as profundezas do navio. Rosa, a filha mais velha, adoecera durante a viagem. Maria fazia o possível para cuidar dela, mas a falta de médicos e as condições insalubres tornavam a recuperação difícil. Em momentos de desespero, Giovanni questionava sua decisão de partir, mas Maria o lembrava das palavras de Don Luigi: “Essa é a vontade de Deus.”
Finalmente, após semanas no mar, avistaram a costa brasileira. O porto de Santos se estendia diante deles, uma visão que misturava alívio e incerteza. Era o início de uma nova vida, mas também o fim de tudo o que conheciam. O Brasil os recebeu com um calor sufocante e uma vegetação exuberante. A adaptação foi difícil. A língua, os costumes, a própria terra eram estranhos. Contudo, os Benedettini eram resilientes. Giovanni encontrou trabalho em uma fazenda de café, enquanto Maria cuidava dos filhos e da pequena horta que conseguiam manter. O trabalho era árduo, mas pela primeira vez em anos, havia esperança. Com o tempo, outras famílias italianas se uniram a eles, criando uma comunidade onde as tradições do Vêneto eram preservadas. Em meio às dificuldades, havia também a alegria das colheitas, das festas religiosas, e do nascimento de novos filhos, que traziam consigo a promessa de um futuro melhor.
Rosa recuperou a saúde e, anos depois, se casou com um jovem agricultor também vindo do Vêneto. Pietro, o filho mais novo, cresceu forte e cheio de sonhos. A nova geração dos Benedettini não conhecia a fome que havia marcado a vida de seus pais. Anos se passaram, e Giovanni envelheceu. Sentado na varanda de sua modesta casa, ele observava os campos ao redor, que se estendiam até onde a vista alcançava. O Brasil, tão distante de sua terra natal, agora era seu lar. Giovanni nunca esqueceu o Vêneto. Contava histórias para os netos sobre as montanhas, os campos e as tradições da sua terra. Mas ele também sabia que o futuro estava ali, na terra que ele e sua família haviam adotado. “Somos como as árvores”, dizia ele. “Nossas raízes estão no Vêneto, mas aqui, nesta terra, crescemos e damos frutos.”
E assim, a história dos Benedettini se entrelaçou com a história do Brasil, um legado de coragem, resiliência e esperança, que continuaria a viver nas gerações futuras. Os Benedettini nunca mais voltaram ao Vêneto. Mas, nas suas orações e nos seus corações, a Serenissima Republica de Veneza continuava viva, como um símbolo de tempos melhores, de uma dignidade que o mundo moderno tentara roubar, mas que eles mantiveram intacta através da fé, do trabalho e da unidade familiar. O Brasil lhes deu uma nova vida, mas o espírito do Vêneto, forjado em séculos de história, nunca os deixou. Sob o céu estrelado da nova terra, Giovanni Benedettini encontrou paz, sabendo que, apesar de todas as adversidades, ele e sua família haviam construído um novo futuro sem jamais esquecer o passado.
quinta-feira, 29 de agosto de 2024
Raízes de Esperança
sexta-feira, 23 de agosto de 2024
A Jornada de Antonio Mansuetto
Em 1946, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, a pequena cidade de Marano di Castelnovo, na Emilia Romagna, estava lentamente se recuperando dos estragos do conflito. Antonio Mansuetto, um jovem aventureiro de 34 anos, havia decidido que seu destino estava além das fronteiras da Itália. Com um espírito indomável e um desejo ardente de explorar novas terras, Antonio deixou a segurança de sua casa e da família para buscar fortuna em terras distantes.
Com uma formação sólida como mecânico-eletricista e uma experiência valiosa servindo no exército italiano, Antonio tinha a habilidade e a determinação necessárias para prosperar. O Brasil, então em plena fase de crescimento industrial, oferecia oportunidades que pareciam feitas sob medida para suas habilidades. Com um pouco de dinheiro economizado e uma esperança ilimitada, ele embarcou em um navio rumo ao desconhecido.
São Paulo, a vibrante metrópole sul-americana, recebeu Antonio com a energia frenética de uma cidade em transformação. Rapidamente encontrou trabalho na indústria do aço, na siderúrgica nacional, um setor em franca expansão. A sua expertise foi bem recebida, e, com o tempo, ele se estabeleceu na cidade. Seus primeiros anos foram marcados por uma série de mudanças de residência, mas o destino parecia sempre o levar ao bairro do Bixiga, onde a comunidade italiana era forte e acolhedora.
O Bixiga, conhecido por suas casas de comércio italianas e a imersão cultural, tornou-se o novo lar de Antonio. Foi ali que encontrou Maria, uma mulher encantadora que compartilhava suas raízes italianas e seus sonhos de uma vida melhor. Casaram-se e formaram uma família, tendo quatro filhos e, eventualmente, dez netos. A vida de Antonio foi marcada por trabalho árduo, dedicação à família e uma profunda gratidão por suas novas oportunidades.
A aposentadoria, aos 65 anos, trouxe a Antonio a chance de refletir sobre sua jornada. Ele se aposentou com orgulho, mas nunca deixou de ser ativo na comunidade. Seus filhos e netos eram sua maior alegria, e ele se dedicou a passar adiante os valores e a cultura italiana que sempre amou.
Antonio Mansuetto faleceu aos 91 anos, deixando um legado de trabalho duro e determinação. Sua história é um testemunho do espírito aventureiro e da capacidade de transformar desafios em oportunidades, sempre com uma visão voltada para um futuro melhor.
domingo, 7 de julho de 2024
O Ocaso da Vida: Uma História de Coragem e Amor
domingo, 23 de junho de 2024
O Eco das Memórias
O Eco das Memórias
Isabel sentava-se junto à janela do seu pequeno quarto de 12 metros quadrados, observando o movimento silencioso do jardim do lar de idosos. As árvores balançavam suavemente ao vento, como se sussurrassem segredos antigos que só elas conheciam. As flores, cuidadas com esmero por algum jardineiro anônimo, exibiam suas cores vivas, contrastando com a monotonia cinzenta que Isabel sentia em seu coração.
Ela pensava nos filhos, quatro ao todo. Cada um seguiu seu caminho, construindo suas vidas, criando seus próprios filhos. Isabel nunca foi de reclamar, mas a saudade era uma companheira constante. Seus netos, onze pequenas extensões do seu amor, eram a razão de muitos dos seus sorrisos solitários. Os bisnetos, dois pequeninos que ela mal conhecia, eram como um sonho distante, quase irreal.
"Como chegamos a isso?", perguntava-se. Isabel lembrava-se das noites em que fazia nuggets e ovos recheados, e dos almoços de domingo com rolos de carne moída que tanto agradavam a todos. Lembrava-se das risadas ecoando pela casa, dos brinquedos espalhados, das brigas infantis e das reconciliações rápidas. Era uma casa cheia de vida.
Agora, a vida dela estava limitada a este pequeno quarto. Não havia mais a sua casa, nem as suas coisas amadas. Os móveis que escolheu com tanto carinho foram substituídos por peças impessoais. Ela tinha quem arrumasse seu quarto, quem lhe preparasse as refeições, quem lhe fizesse a cama, quem lhe controlasse a pressão e a pesasse. Mas não tinha mais a alma do lar que tanto amava.
As visitas dos filhos e netos eram raras. Alguns vinham a cada quinze dias, outros a cada três ou quatro meses. Alguns, nunca. Isabel tentava não se abater com isso, mas a ausência deles era um fardo pesado. Não fazia mais sentido preparar seus pratos favoritos ou decorar a casa para recebê-los. Sua alegria era agora contida em passatempos solitários, como o sudoku, que a entretinha por alguns momentos.
Naquele lar, Isabel conheceu outras pessoas. Muitas estavam em condições piores que a dela. Ela se apegava a algumas, ajudava no que podia, mas evitava criar laços muito fortes. "Eles desaparecem frequentemente", pensava. A vida no lar era uma constante dança com a morte. O tempo passava devagar, mas cada dia parecia trazer a notícia de uma nova partida.
Dizem que a vida é cada vez mais longa. "Por quê?", questionava Isabel em seus momentos de solidão. Quando estava sozinha, olhava para as fotos da família e para algumas memórias que trouxera de casa. Isso era tudo o que lhe restava. A decisão de ir para o lar não foi fácil. Isabel ainda se lembrava da reunião de família, quando todos se sentaram ao redor da grande mesa de jantar que agora pertencia a outra pessoa. Seus filhos tentaram convencê-la de que era o melhor para ela. “Mãe, você não pode mais viver sozinha”, disseram. “É perigoso, e no lar você terá todos os cuidados de que precisa.”
Ela sabia que estavam certos, mas doía pensar em deixar a casa onde criou sua família. A casa tinha alma, e cada canto estava impregnado de lembranças. Quando fechou a porta pela última vez, Isabel sentiu como se um pedaço de seu coração ficasse para trás.
O lar parecia mais uma instituição hospitalar do que uma casa. Os corredores eram amplos e frios, as paredes brancas e sem vida. O quarto que lhe designaram era pequeno, mas ela tentou decorá-lo com alguns objetos pessoais: fotos dos filhos e netos, um quadro que ela mesma pintara, e uma colcha de crochê feita por sua mãe. Mas nada conseguia mascarar a sensação de solidão.
Os primeiros dias foram os mais difíceis. Isabel estava acostumada à sua rotina, à liberdade de fazer o que queria quando queria. No lar, tudo era controlado. As refeições tinham hora marcada, assim como os remédios e as atividades. Era uma mudança brusca e dolorosa. Com o passar do tempo, Isabel começou a conhecer os outros moradores. Havia Dona Maria, uma senhora de 90 anos com um sorriso contagiante, mas que sofria de Alzheimer. Seu José, um ex-marinheiro com histórias fascinantes, mas com uma saúde frágil. E Dona Clara, uma mulher que, como Isabel, fora deixada pelos filhos no lar e nunca recebia visitas.
Essas novas amizades traziam algum alívio à solidão de Isabel. Ela passava horas ouvindo as histórias de Seu José e ajudando Dona Maria a lembrar dos nomes dos filhos. Mas cada nova amizade vinha com o medo da perda. As despedidas eram frequentes, e Isabel começou a se proteger, evitando se apegar demais.
A terapia ocupacional era uma das atividades que Isabel mais apreciava. Ela se sentia útil, ajudando a organizar eventos, fazendo artesanato e até ensinando as enfermeiras a fazerem os pratos que um dia preparou para sua família. Mas mesmo esses momentos de alegria eram sombreados pela tristeza da ausência daqueles que ela mais amava. Isabel passava muito tempo refletindo sobre a vida e o que ela ensinara. Lembrava-se das palavras da própria mãe: “A família se constrói para ter um amanhã”. Ela criara seus filhos com amor e dedicação, esperando que um dia eles retribuíssem com o mesmo cuidado. Mas a realidade era diferente. Eles estavam ocupados com suas próprias vidas, seus próprios filhos e problemas.
Ela não os culpava. Entendia que o mundo mudara, que as pressões do trabalho e da vida moderna afastavam as pessoas. Mas ainda assim, doía. Isabel queria que as próximas gerações entendessem a importância de cuidar daqueles que nos cuidaram. Que vissem além da correria do dia a dia e encontrassem tempo para estar com os mais velhos, para ouvir suas histórias, para retribuir o amor que receberam.
Certa noite, Isabel estava sentada à janela, observando as estrelas. Pensava na vida, na morte e no que viria depois. Sentiu uma calma profunda ao perceber que, apesar de tudo, vivera uma vida plena. Criara uma família, amara e fora amada. E mesmo que agora estivesse sozinha, tinha suas memórias e a certeza de que fizera o melhor que pôde. O tempo passou, e Isabel tornou-se uma memória no lar onde viveu seus últimos dias. Mas suas palavras e ensinamentos permaneceram. Os filhos e netos, tocados pela ausência e pelas reflexões tardias, começaram a valorizar mais o tempo com suas próprias famílias. O ciclo da vida continuava, mas com uma nova consciência sobre a importância da presença, do cuidado e do amor.
Isabel se foi, mas deixou um legado. Seu quarto de 12 metros quadrados, que um dia fora um símbolo de solidão, tornou-se um símbolo de esperança. Uma lembrança de que, no final, o que realmente importa são os laços que construímos e o amor que deixamos para trás.
quinta-feira, 20 de junho de 2024
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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024
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quarta-feira, 15 de novembro de 2023
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Dr. Luiz Carlos B.Piazzetta
Erechim RS