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sexta-feira, 24 de outubro de 2025

O Eco das Montanhas: A Jornada de Chiara Rossetta

 

O Eco das Montanhas 

A Jornada de Chiara Rossetta


A história começa na primavera de 1898, em um pequeno e pitoresco vilarejo chamado Zoldo Alto, localizado nas encostas mais ao norte da província de Belluno, onde os picos nevados dos Dolomitas se erguiam como guardiões silenciosos de um mundo que parecia alheio à modernidade. Após um inverno rigoroso, os primeiros sinais de vida ressurgiam; a neve começava a se dissolver sob o calor tímido do sol, expondo os campos férteis que logo se transformariam em um vibrante tapete de flores silvestres. Chiara Rossetta, uma jovem de 17 anos, estava no quintal de sua casa simples, construída de pedras gastas pelo tempo e pela chuva. Seus olhos, de um castanho profundo, seguiam o contorno das montanhas ao longe, como se buscassem respostas no horizonte. O ar da manhã era fresco, impregnado do perfume das árvores de pinho que circundavam a aldeia. Chiara segurava um lenço vermelho em suas mãos ágeis, dobrando-o cuidadosamente antes de amarrá-lo com firmeza sobre seus cabelos escuros e trançados. Aquele lenço não era apenas um acessório. Era um símbolo da tradição, herdado de sua mãe, e que agora ela usava com um misto de orgulho e saudade. Com o olhar ainda fixo nas montanhas, suspirou profundamente, sentindo o vento frio beijar suas bochechas coradas. Ali, naquele instante de quietude, Chiara se sentia parte de algo maior, um elo invisível com a terra que sustentava sua família há gerações, mas também com os segredos e as incertezas que o futuro poderia trazer. Chiara vinha de uma família humilde. Seus pais, Domenico e Teresa, lutavam para sustentar os cinco filhos com a pequena colheita de batatas e o leite de algumas vacas. As noites eram longas, preenchidas pelo som do vento entre as árvores e pelo murmúrio das preces de sua mãe, pedindo por um futuro melhor.

Um dia, um murmúrio diferente percorreu o vilarejo, carregado pelo vento frio que descera das montanhas. A chegada de uma figura austera conhecida por organizar o recrutamento de trabalhadores para as colheitas no Trento, trouxe um burburinho de curiosidade e inquietação. A mulher, com sua voz firme e postura imponente, anunciou na praça: “Eles precisam de braços fortes para a colheita na Val d’Adige. Pagam bem, e o trabalho dura toda a estação.” Suas palavras, simples e diretas, reverberaram como uma promessa de esperança para muitos, mas também como uma despedida inevitável para outros. Para Chiara, a oferta parecia mais que um simples trabalho sazonal; era uma janela para um mundo além das montanhas que confinavam seu vilarejo. Cada palavra da signora Dal Bosco soava como um eco de possibilidades, uma chance de escapar, mesmo que por poucos meses, do cotidiano monótono e das obrigações sufocantes que marcavam sua juventude. Zoldo Alto, com suas paisagens deslumbrantes, era também uma prisão onde as oportunidades eram tão raras quanto flores no inverno. Mais do que isso, a proposta carregava um brilho prático: era a chance de aliviar o peso que sua presença impunha à família. A pequena soma que prometiam pagar poderia comprar pão, pagar dívidas e, com sorte, começar a compor o dote que Chiara sabia ser essencial para um casamento digno. Cada moeda guardada seria um tijolo no alicerce de um futuro que, até aquele momento, parecia uma miragem distante. Ainda assim, o sonho de um futuro próprio era frágil, um fio tênue que se equilibrava entre a esperança e o realismo implacável da pobreza. Havia algo mais profundo em sua decisão: um anseio por independência, por provar a si mesma que era capaz de romper o ciclo de limitações que a cercava. Contudo, a promessa de liberdade trazia consigo um preço emocional. A ideia de partir significava deixar para trás tudo o que conhecia – os rostos queridos, as noites em volta da lareira, os campos que ela sabia como a palma da mão.

Esse dilema pulsava como um tambor silencioso em seu peito. Chiara sabia que, ao aceitar, não estava apenas enfrentando a distância física, mas também cruzando uma linha invisível entre o que era esperado dela e o que ela desejava para si mesma. A pobreza podia limitar seus recursos, mas não apagava sua determinação de lutar por algo maior. Naquela mesma noite, enquanto o resto da casa dormia, Chiara ouviu os sussurros baixos de seus pais na cozinha. A mãe, com a voz embargada, dizia que era perigoso deixar a filha ir tão longe. O pai, silencioso como sempre, respondia apenas com suspiros profundos e o ranger da cadeira contra o piso. Quando a discussão cessou, Chiara sabia que havia tomado sua decisão, mesmo que essa pesasse como uma pedra em seu coração.

Na madrugada seguinte, o vilarejo repousava em um silêncio sombrio, com as sombras ainda abraçando as fachadas de pedra e os telhados cobertos de musgo. A pequena praça, iluminada apenas pela pálida luz de um céu que prometia o amanhecer, parecia suspensa no tempo, como um cenário à espera de que algo marcante acontecesse. Chiara estava lá, tremendo não pelo frio, mas pela carga emocional do momento. Ao seu redor, outras jovens se reuniam em pequenos grupos, sussurrando palavras de conforto ou despedida, enquanto ajeitavam malas gastas e cachecóis remendados. Ela segurava firme sua pequena mala de couro, desgastada pelo tempo, mas suficiente para abrigar o pouco que possuía: uma muda de roupa cuidadosamente dobrada, um rosário que sua mãe lhe entregara na noite anterior, e um pedaço de pão envolto em um pano simples, símbolo tanto de sustento quanto de despedida. Era tudo o que precisava para começar a jornada – e, talvez, tudo o que podia levar sem olhar para trás. O lenço vermelho estava amarrado com cuidado sobre seus cabelos escuros, quase como um escudo contra o vento frio da madrugada e as incertezas do que viria. Mas enquanto seu corpo parecia firme e seu queixo erguido sugeria determinação, seus olhos, grandes e inquietos, revelavam o tumulto interior. Medo e esperança se misturavam em suas pupilas, pulsando com a mesma força de seu coração acelerado.

Chiara não era a única a enfrentar essa batalha silenciosa. Ao redor, as outras jovens exibiam expressões semelhantes, cada uma carregando não apenas malas, mas também sonhos, responsabilidades e angústias. Para todas elas, aquele momento era uma linha divisória, um ponto sem retorno, onde o conhecido e o incerto se encontravam. Enquanto o céu começava a clarear, prometendo a chegada de um novo dia, Chiara apertou as alças de sua mala, como se aquele gesto pudesse conter os pensamentos que a inundavam. Ela sabia que, ao dar o primeiro passo para fora da praça, estaria começando não apenas uma jornada física, mas também uma travessia emocional que mudaria sua vida para sempre.

Quando a carroça surgiu ao longe, cortando a neblina da manhã e levantando uma nuvem de poeira na trilha, Chiara sentiu uma fisgada no coração. Era o momento definitivo, aquele em que não haveria mais tempo para hesitações ou despedidas. Ela lançou um último olhar para as montanhas que haviam sido seu abrigo, seus desafios e, às vezes, sua prisão. A luz do amanhecer tingia os picos ainda cobertos de neve, como se a paisagem quisesse guardar sua silhueta em memória. O rosto de sua mãe, banhado em lágrimas, e o silêncio pesado de seu pai assaltaram sua mente com força inesperada. Ambos haviam transmitido amor e desaprovação em igual medida, como se tivessem chegado a um acordo tácito de que a decisão era dela, mas a dor era deles. Nesse instante, Chiara murmurou para si mesma uma promessa silenciosa: um dia, retornaria. Mas não como a menina que partia com uma mala cheia de esperanças e medos, e sim como uma mulher que tivesse moldado seu próprio destino, provando que o sacrifício valera a pena. 

A jornada até Trento foi tudo menos fácil. As primeiras horas foram passadas em silêncio, com o ranger das rodas da carroça e o estalar de cascos no caminho pedregoso oferecendo o único consolo rítmico. Às vezes, desciam para caminhar, as jovens seguindo a trilha estreita enquanto as carroças avançavam lentamente. O vento frio cortava seus rostos, e os pés, empoeirados e doloridos, começavam a se ressentir da distância.

Quando finalmente chegaram à estação de Tezze Valsugana, Chiara sentiu um misto de exaustão e maravilhamento. Diante dela, um trem fumegava como uma fera adormecida, o vapor se misturando ao ar gelado da manhã. Era a primeira vez que via algo tão grandioso e intimidador. O som metálico das rodas nos trilhos e os gritos dos condutores faziam seu coração disparar. Mas ela se manteve firme, segurando com força sua pequena mala e respirando fundo, como se quisesse absorver toda a coragem que aquele novo mundo exigia. Ao cruzar a fronteira, o primeiro teste aguardava. Um homem de expressão severa e roupas impecáveis pediu documentos. Chiara retirou, com mãos ligeiramente trêmulas, um certificado assinado pelo pároco do vilarejo, atestando sua “boa conduta”. O papel, amarelado e dobrado com cuidado, representava mais do que uma formalidade; era sua garantia de que pertencia àquele grupo, de que trazia consigo não apenas sonhos, mas também a dignidade que seu vilarejo lhe confiara. Enquanto o oficial analisava o documento, ela ergueu o queixo e encontrou força no pensamento de que, passo a passo, estava se aproximando do futuro que escolhera para si mesma.

Em Trento, a grandiosa Piazza del Duomo, com suas pedras desgastadas pelo tempo e a imponente catedral gótica ao fundo, parecia um cenário tirado de um conto de outro mundo. No entanto, para Chiara, a beleza do lugar foi eclipsada pela realidade crua que a esperava. O mercado das Ciòde era um espetáculo que misturava tradição e brutalidade, e ela sabia que seria um dia gravado em sua memória com ferocidade. Sob a sombra de um majestoso tiglio, o grande freixo que parecia testemunhar séculos de histórias de dignidade e humilhação, as jovens estavam alinhadas como se fossem parte de uma exposição silenciosa. Os agricultores locais, com mãos calejadas e rostos endurecidos pelo sol e pela vida nos campos, aproximavam-se com olhares críticos. Seus olhos percorriam cada jovem como se estivessem avaliando gado, fixando-se nas mãos, nos braços e até na postura. Alguns murmuravam entre si em dialetos ásperos, enquanto outros faziam perguntas diretas que pareciam cortar como navalhas. A experiência era avassaladora, uma mistura de julgamento e exposição que tornava o ar quase irrespirável.

Chiara, porém, manteve-se firme, ainda que sentisse o calor subir-lhe ao rosto, tingindo suas bochechas de um vermelho que combinava com o lenço em sua cabeça. Era um rubor de humilhação e raiva contida, mas também de determinação. Ela endireitou os ombros e olhou para frente, recusando-se a baixar os olhos como algumas das outras jovens faziam. Não daria àqueles homens o gosto de vê-la encolher-se. “Suas mãos são fortes?”, perguntou um homem de meia-idade, sua voz rouca. Ele segurou os dedos de Chiara com firmeza, virando-os para examinar as palmas. Chiara engoliu seco, o gesto invasivo desencadeando um arrepio que percorreu sua espinha, mas manteve a compostura. “Sim, senhor”, respondeu ela, com uma voz firme que desafiava o desconforto. Enquanto os minutos se arrastavam, ela percebeu que aquele momento era mais do que uma transação: era uma prova. Não apenas de sua força física, mas de sua resiliência. Sob os olhares avaliadores e os cochichos dos compradores, Chiara fez uma promessa a si mesma. Por mais degradante que fosse a experiência, ela não seria definida por aquele instante. Era uma batalha pequena dentro de uma guerra maior — e ela pretendia vencer. Foi contratada por uma família chamada Berti, donos de uma vasta plantação de maçãs. Seu trabalho começava ao amanhecer e só terminava com o cair da noite. Apesar do cansaço, Chiara encontrava consolo nas raras cartas que enviava e recebia de sua família. Mas nem tudo era sofrimento. Nos intervalos roubados entre as longas horas de trabalho, Chiara encontrou alívio na companhia de outras Ciòde, jovens que, como ela, haviam deixado seus lares em busca de algo melhor. Foi ali, entre as plantações e os alojamentos simples, que conheceu Lucia Zaniella, uma menina de apenas 15 anos, cujos olhos brilhavam com uma vitalidade que nem mesmo a exaustão conseguia apagar. Lucia tinha um jeito travesso, sempre pronta com um comentário espirituoso que arrancava risos até nos momentos mais difíceis. À noite, sob a luz suave da lua que banhava os campos da Val d’Adige, as duas se sentavam lado a lado, emolduradas pelo silêncio quebrado apenas pelo som distante do vento ou pelo murmúrio das cigarras. Aquele era o momento em que o peso do dia parecia se dissipar, ainda que brevemente. Entre goles de água ou bocados de pão duro, compartilhavam histórias de suas aldeias, falavam das famílias que haviam deixado para trás e sonhavam, cada uma à sua maneira, com um futuro menos cruel.

Lucia contava sobre os riachos gelados de sua terra natal e sobre os irmãos menores que esperavam por ela, enquanto Chiara falava das montanhas de Zoldo Alto e da promessa que fizera de retornar como uma mulher forte e independente. “Um dia, quero abrir uma pequena trattoria”, dizia Lucia com um sorriso tímido. “Nada grande, mas cheia de gente rindo e comendo. Você será minha sócia, Chiara.” A ideia, ainda que remota, iluminava seus rostos como uma vela num quarto escuro. Juntas, enfrentavam os desafios com mais coragem. O trabalho nos campos era extenuante, e os olhares desconfiados dos locais frequentemente adicionavam um peso extra aos seus ombros. Mas havia força na amizade, uma cumplicidade silenciosa que tornava as adversidades mais suportáveis. Quando uma hesitava, a outra encorajava. Quando uma caía, a outra ajudava a levantar. A amizade com Lucia tornou-se uma âncora para Chiara, algo que a lembrava de que, mesmo em tempos difíceis, a solidariedade podia florescer, criando laços mais fortes que as correntes da pobreza ou da humilhação. E assim, noite após noite, entre sussurros e risos abafados, as duas teciam não apenas sonhos, mas uma rede de esperança que as mantinha firmes, mesmo quando tudo ao redor parecia desmoronar. No final da colheita, Chiara retornou a Zoldo Alto com algumas moedas no bolso e um coração mais forte, mais moldado pelas adversidades que enfrentara. Ao contrário da jovem hesitante que partira meses antes, ela agora carregava dentro de si uma força silenciosa, fruto das longas jornadas sob o sol implacável, das noites insones em que sonhava com um futuro melhor, e das provações que a haviam feito crescer de maneira inesperada. Ao se aproximar da pequena aldeia, sentiu uma estranha sensação de pertencimento, como se, em algum nível profundo, as montanhas que a cercavam e a terra dura que ela pisava tivessem se integrado à sua própria essência. As majestosas montanhas de Zoldo Alto, que antes lhe pareciam vastas e intimidantes, agora pareciam menos ameaçadoras, quase como velhas amigas que observavam seu progresso. Elas estavam ali, sempre presentes, mas não mais intransponíveis. Pareciam agora fazer parte de quem ela era, como se a força delas tivesse sido transferida para ela ao longo de sua jornada.

A estrada de volta foi silenciosa, com Chiara refletindo sobre tudo o que havia vivido no Trento. As dificuldades do mercado das Ciòde, os olhares de avaliação dos agricultores, a solidão das noites à luz da lua — tudo isso a havia marcado profundamente. Mas também a fortaleceram. Ela já não era mais a menina que partira com um lenço vermelho amarrado na cabeça, com o rosto marcado pela inexperiência e pela insegurança. Chiara havia aprendido a suportar o peso das expectativas e das adversidades, a ser firme quando as circunstâncias tentavam quebrá-la. Agora, ela era uma mulher que carregava no olhar algo de irrevogável, uma determinação forjada nas experiências vividas. Ao atravessar a porta de casa, o cheiro da madeira queimada no fogão e o calor do lar acolheram-na de forma reconfortante, mas já não era a mesma menina que se despedira ali. A mãe, com seus olhos marejados de saudade, a abraçou com força, mas Chiara percebeu que, de algum modo, havia algo novo entre elas — um silêncio compartilhado, uma compreensão silenciosa sobre o quanto o mundo fora além de seus muros. Ela não era mais apenas filha. Era alguém que havia vivido, que tinha uma história para contar, uma história que a tornara mais inteira, mais capaz de enfrentar o futuro. E, apesar de ainda não saber ao certo o que o futuro lhe reservava, Chiara agora sabia que, de alguma forma, ela seria capaz de moldá-lo.

Anos depois, Chiara usaria as lições duramente conquistadas na Val d’Adige para liderar outras jovens de Zoldo Alto. As experiências de trabalho nas vastas vinhedos e a dureza das longas horas sob o sol implacável haviam deixado uma marca profunda em seu caráter, uma marca que ela carregava com uma dignidade silenciosa. Sua voz, antes hesitante e cheia de incertezas, agora era um reflexo de quem conhecia, de perto, o peso da exploração e da subordinação. Ela falava com a firmeza de alguém que soubera o que era ser tratada como mercadoria, a ser avaliada não pela sua humanidade, mas pela força de seus braços. Mas, ao mesmo tempo, havia em suas palavras algo mais — uma esperança inquebrantável, um brilho de luz que nunca se apagava, mesmo nas situações mais sombrias. Chiara acreditava na força do espírito humano, na capacidade de resistir, de se levantar e, acima de tudo, de transformar a dor em aprendizado e superação. Ela sabia que não podia mudar o passado, mas acreditava firmemente que podia ensinar as jovens do vilarejo a não se deixarem abater pelas dificuldades. Em sua postura, na forma como observava os outros com olhos atentos e acolhedores, havia a certeza de que elas também poderiam encontrar força dentro de si mesmas, assim como ela havia feito. Suas palavras eram como um farol para aquelas que, como ela, um dia se sentiriam perdidas diante da vastidão de um mundo que parecia imenso e implacável. Chiara não era mais a jovem ingênua que partira para Trento, mas uma mulher que conhecia a escuridão e sabia como encontrar a luz no fim do túnel. E, ao compartilhar suas histórias, ela se tornava um exemplo de resiliência, uma voz que poderia inspirar outras a lutar por seus direitos e sonhos. Ao liderar aquelas jovens, Chiara não apenas transmitia as lições da colheita, mas algo ainda mais importante: a crença de que, mesmo nas situações mais difíceis, era possível manter a esperança viva. Em cada palavra que dizia, em cada gesto de liderança que tomava, ela plantava as sementes de uma revolução silenciosa — não apenas contra as injustiças do mundo, mas também contra as limitações que cada mulher carregava dentro de si. Ela acreditava que, um dia, a Val d’Adige não seria apenas um lugar de trabalho árduo e exploração, mas um símbolo de superação e força coletiva.

A história de Chiara Rossetti é uma entre milhares, mas sua jornada ressoa com a intensidade das montanhas que cercavam sua terra natal, como se as rochas de Zoldo Alto tivessem guardado cada suspiro, cada lágrima, e cada passo que ela deu em direção ao futuro. É um testemunho de resistência, forjado nas circunstâncias mais difíceis, onde a sobrevivência não era apenas uma questão de força física, mas também de espírito indomável. Em tempos de adversidade, quando a vida parecia estar contra ela, Chiara se erguia, movida não apenas pelo desejo de escapar da miséria, mas pela necessidade de provar a si mesma e ao mundo que a mulher, assim como a terra que cultivava, podia florescer mesmo nas condições mais áridas. A sua luta não era apenas pela sobrevivência; era uma busca pela dignidade, pela autonomia, pela capacidade de tomar as rédeas de seu próprio destino. Ela representava a força silenciosa de tantas mulheres anônimas que, durante séculos, haviam sido empurradas para os limites da história, ignoradas por aqueles que escreviam os grandes feitos. Mas, como as montanhas que a viam crescer, a história de Chiara se erguia firme, impassível ao passar do tempo, e continuava a ser contada nas sombras das colinas, nas palavras sussurradas pelas gerações que viriam depois dela. Era uma história de coragem, onde cada obstáculo superado se transformava não apenas em uma vitória pessoal, mas em um símbolo de todas as mulheres que se viam, à sua maneira, refletidas em seu sofrimento e em sua força. As dificuldades que Chiara enfrentou eram as mesmas que milhões de outras mulheres experimentavam, mas a forma como ela as encarou, com uma determinação serena e uma visão implacável de futuro, tornava sua história universal. Ela não era apenas um nome perdido na memória de um pequeno vilarejo italiano; ela era o eco de todas as mulheres que, ao longo da história, lutaram para ser vistas e ouvidas. E, assim, sua vida permanece como um lembrete de que, mesmo nas épocas mais sombrias, as montanhas da adversidade podem ser escaladas, e as vozes daqueles que enfrentam a tempestade podem, finalmente, ser ouvidas e reverberadas por todas as gerações que virão.


Nota do Autor


Este romance foi inspirado em pesquisas e relatos históricos sobre as vivências e desafios enfrentados pelos habitantes da região de Belluno, no Vêneto, durante os séculos XIX e XX. Embora os eventos narrados sejam fictícios, eles refletem as dificuldades reais de uma época marcada pela luta pela sobrevivência, pelas mudanças sociais profundas e pelo êxodo em busca de melhores oportunidades em terras distantes. Ao escrever esta obra, busquei dar voz a personagens que, embora fruto da imaginação, carregam em suas trajetórias os sentimentos, os medos e os sonhos que poderiam ter sido os de qualquer pessoa daquela época. O sofrimento diante das guerras, a luta contra a miséria, e a resiliência necessária para sobreviver em meio às adversidades são elementos que perpassam esta narrativa, concebida com profunda admiração pelas vidas de nossos antepassados. Nenhuma das figuras retratadas aqui representa pessoas reais, e a história foi construída como um tributo às histórias anônimas que moldaram comunidades inteiras. As paisagens descritas, as aldeias, e os eventos refletem o contexto histórico e cultural da região, enriquecidos com a liberdade criativa que a ficção permite. A pesquisa que embasou este romance envolveu a consulta a textos históricos, artigos, e memórias coletivas. Entre as fontes consultadas, um relato particular sobre os desafios das mulheres de Belluno foi uma importante inspiração para construir o pano de fundo deste enredo, ainda que o mesmo tenha sido amplamente reelaborado para criar uma narrativa original e independente. Espero que esta obra inspire não apenas uma reflexão sobre o passado, mas também uma apreciação pela força humana em tempos de adversidade, enquanto nos conectamos com as vozes que ecoam através da história.
Com respeito e gratidão,

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Sob o Céu do Utopia – A Travessia da Esperança

 


Sob o Céu do Utopia 

A Travessia da Esperança


Era o ano de 1886, muitos italianos estavam deixando a sua terra natal em busca de uma vida melhor no Brasil. Entre eles, estavam os seis membros da família Rossi, o casal e quatro filhos menores de idade, que embarcaram no navio Utopia rumo ao novo mundo. A viagem prometia ser longa e desafiadora, mas eles estavam determinados a chegar ao seu destino.
Na pequena vila onde viviam, os Rossi se despediram dos amigos e parentes com lágrimas nos olhos, mas com a esperança de um futuro melhor. O Utopia partiu do porto de Gênova, na Itália, em uma manhã ensolarada, porém com muito frio, característica do começo do inverno. Durante os primeiros dias de viagem, tudo correu bem. O navio fez uma parada programada no porto de Nápoles, onde subiram à bordo mais algumas centenas de imigrantes provenientes do sul da Itália. Os passageiros à bordo eram todos imigrantes italianos, e se acostumaram com a dura rotina do navio. A bordo se ouvia a algazarra provocada pelas dezenas de dialetos dos passageiros, muitos deles incompreensíveis entre si, como se fossem falados por pessoas de um outro país.
Quando atingiram a linha do Equador, a calmaria da viagem logo seria interrompida por uma tempestade terrível. Os ventos aumentaram e as ondas ficaram mais altas, balançando violentamente o antigo navio. Os Rossi se agarraram aos corrimãos e aos móveis para não cairem no chão. O barulho dos trovões era ensurdecedor e o mar parecia querer engolir o navio com volumosas ondas que despejavam toneladas de água no convés.
A tempestade durou mais do que um dia e os passageiros tiveram que se amarrar uns aos outros para não serem jogados para fora do navio. A comida ficou escassa pela dificuldade de se cozinhar e a água também começou a ser racionada. A esperança de sobreviver a essa tempestade parecia estar cada vez mais distante.
Mas, mesmo diante de todas as dificuldades, os imigrantes italianos mantiveram a esperança de chegar ao Brasil. Eles rezaram para os seus santos de devoção e pediram forças para suportar aquela tempestade. Em meio às orações e às lágrimas, a família Rossi se uniu aos demais passageiros em um coro de esperança e fé.
Finalmente, na parte da tarde do segundo dia a tempestade começou a diminuir e o sol aos poucos voltou a brilhar. Os passageiros puderam sair dos seus pavilhões e sentir o cheiro do mar. O navio Utopia havia sobrevivido à tempestade e a esperança voltou a se renovar nos corações dos imigrantes italianos.
Após alguns dias de calmaria, o navio Utopia finalmente avistou a costa brasileira. A emoção tomou conta de todos os passageiros, que aguardavam ansiosamente para desembarcar. Os Rossi avistaram a cidade do Rio de Janeiro ao longe e não puderam conter as lágrimas de felicidade.
Ao desembarcarem no porto do Rio de Janeiro, a família Rossi e os demais imigrantes italianos foram recebidos com muita alegria. Eles se abraçaram, cantaram e dançaram em agradecimento por terem sobrevivido à tempestade. As autoridades brasileiras os receberam com carinho e os encaminharam para os alojamentos, onde ficariam hospedados nas instalações da Hospedaria dos Imigrantes até serem encaminhados ao lugar de destino e se instalarem definitivamente no país. Depois de alguns dias continuaram a viagem, agora embarcados em um pequeno vapor costeiro que os levou até o porto de Santos. Desta cidade foram de trem até uma pequena cidade do interior de São Paulo, perto de onde onde uma irmã do Sr. Rossi estava vivendo já há alguns anos.
Os Rossi começaram a vida no Brasil com muita dificuldade, mas com muita determinação. Eles trabalharam duro para conseguir emprego e garantir o sustento da família. Aos poucos aprenderam a língua portuguesa e se adaptaram aos costumes do novo país. Mas a esperança de uma vida melhor sempre esteve presente em seus corações.
Com o tempo, quando também os filhos começaram a trabalhar, a família Rossi conseguiu comprar um pequeno sítio na zona rural e começaram a produzir alimentos para vender nas cidades vizinhas. O trabalho árduo era recompensado com o sorriso dos clientes satisfeitos e com o dinheiro que ajudava a sustentar a família.
Ao longo dos anos, os filhos cresceram e se tornaram brasileiros de coração. Eles aprenderam a valorizar a cultura e as tradições do Brasil, sem esquecerem as suas raízes italianas. Os Rossi nunca esqueceram a tempestade que enfrentaram no navio Utopia, mas também nunca esqueceram a esperança que os guiou até o novo mundo.
A história da família Rossi se tornou uma das muitas histórias de imigrantes que enfrentaram desafios para construir uma nova vida no Brasil. Eles ajudaram a construir o país com o seu trabalho e a sua determinação. Hoje, muitos brasileiros descendem de italianos que enfrentaram a tempestade no navio Utopia e que nunca perderam a esperança de uma vida melhor.

Nota do Autor

Esta história nasceu do desejo de dar voz a milhares de italianos anônimos que, entre o fim do século XIX e o início do XX, abandonaram sua terra natal movidos por uma fé inabalável no futuro. A família Rossi é uma representação simbólica dessas multidões de homens, mulheres e crianças que, apertados nos porões dos navios de emigrantes, cruzaram o Atlântico sonhando com um pedaço de chão onde pudessem recomeçar.

Utopia, nome real de um navio que transportou imigrantes italianos durante aquele período, tornou-se aqui um emblema do destino coletivo — um destino marcado por sofrimento, mas também por coragem e esperança. A travessia dos Rossi é, antes de tudo, um retrato da alma humana quando confrontada com o desconhecido: o medo, a fé e o instinto de sobrevivência se entrelaçam para dar sentido à jornada.

Em cada lágrima de despedida e em cada prece sussurrada no convés durante a tempestade, ecoa o mesmo sentimento que impulsionou a construção do Brasil moderno — um país erguido por mãos estrangeiras, mas aquecido por corações que aprenderam a amar esta nova pátria.

Escrever esta narrativa é, portanto, um ato de memória e de gratidão. É lembrar que, por trás de cada sobrenome italiano hoje misturado à língua portuguesa, há uma história de coragem que o mar não conseguiu apagar.

Autor:
Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS


quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Alvise Pavesa – Entre a Terra e o Destino


Alvise Pavesa – Entre a Terra e o Destino


Alvise Pavesa veio ao mundo em 1857 na pequena localidade de San Vigilio, em Castiglione delle Stiviere, situado nas colinas da província de Mantova, onde os campos magros sustentavam mal aqueles que deles viviam. Desde a infância aprendera que a terra podia ser madrasta, oferecendo apenas colheitas ralas e trabalho sem descanso. A unificação da Itália não trouxera alívio; os impostos eram mais altos, os soldados levavam os jovens, e as famílias pobres viam-se esmagadas pelo peso das dívidas. Para os Pavesa, a sobrevivência era uma sucessão de invernos difíceis e verões ingratos.

Foi nesse cenário que começou a ouvir falar da América. As cartas vindas do outro lado do oceano enviadas por milhares de emigrantes que já tinham partido se tornavam cada vez mais frequentes e falavam de terras vastas, de colheitas fartas, de patrões sedentos por braços fortes. Homens bem falantes percorriam as aldeias espalhando papéis impressos, prometendo prosperidade do outro lado do mar. A miséria tornava aquelas palavras mais convincentes do que qualquer sermão. Alvise resistiu quanto pôde, mas o peso das dívidas e o medo de não poder alimentar os filhos que viriam o empurraram para a decisão irreversível. Vendeu o pouco que possuía, despediu-se do vilarejo e, com a esposa e a filha de 7 anos em novembro de 1888 e pôs-se a caminho do porto de Gênova.

O embarque foi o primeiro choque. O navio estava abarrotado de famílias inteiras, velhos, mulheres grávidas, crianças de colo, todos comprimidos em porões úmidos que cheiravam a mofo e a maresia. A travessia do Atlântico foi um suplício de semanas. O ar rarefeito misturava o cheiro de corpos, vômito e fezes. Cada tosse que ecoava no escuro parecia anunciar mais um condenado. Muitos sucumbiram à febre antes mesmo de ver terra firme, e os mortos eram enrolados às pressas em panos gastos e lançados ao mar, sob o olhar apavorado dos sobreviventes. Alvise rezava em silêncio a cada corpo que desaparecia nas ondas, temendo que sua própria família fosse a próxima.

Quando, enfim, surgiram as primeiras silhuetas da costa brasileira, um clamor percorreu o navio. Alguns se ajoelharam, outros choraram, e muitos agradeceram a Deus por estarem vivos. Alvise permaneceu calado, os olhos fixos na linha do horizonte. Aquela terra prometida não se parecia em nada com a Itália que deixara para trás. O verde intenso das florestas, o calor sufocante e o céu pesado anunciavam que ali nada seria familiar.

Instalado em Campinas, no interior de São Paulo, descobriu rapidamente a distância entre a promessa e a realidade. O clima úmido e abrasador castigava sem piedade. As lavouras de café e cana de açúcar, que dominavam a região, exigiam uma disciplina quase sobre-humana: o trabalho começava ao raiar do sol e só terminava quando a escuridão caía. O contrato com os patrões não era melhor do que servidão. Os salários mal bastavam para comprar farinha e feijão, e a possibilidade de um pedaço de terra própria parecia uma miragem cada vez mais distante.

Em janeiro de 1889, sua esposa deu à luz uma menina, chamada Caterina nome de uma das avós de Alvise. Foi recebida como sinal de esperança, uma pequena vitória contra a dureza do destino. Mas o calor e a febre o impediram de batizá-la de imediato. Decidiu esperar o tempo esfriar, como se o simples adiamento pudesse proteger a criança da morte precoce que rondava tantas famílias. Sua filha mais velha, Maria, estava doente havia semanas, a febre queimando-lhe o corpo. Alvise via nela o reflexo de sua impotência: a distância dos médicos, a falta de remédios, a única esperança depositada na providência divina.

A vida em Campinas era uma luta contra inimigos invisíveis. Os insetos penetravam na pele dos pés, deixando feridas que nunca cicatrizavam. A malária ceifava vidas sem aviso, e a febre amarela reaparecia em surtos que aterrorizavam a colônia. Muitos colonos, tomados pelo desespero, amaldiçoavam a América e até o nome de Colombo, acusando-o de ter aberto ao mundo uma terra que se revelava mais castigo do que bênção. Outros, resignados, repetiam que, se ao menos pudessem viver sem dívidas, estariam melhor na Itália.

Em São Paulo, a insatisfação explodira em rebelião. Colonos italianos, enganados por promessas falsas de terras, levantaram-se contra seus exploradores. A repressão foi dura, mas a notícia chegou rapidamente ao interior. Alvise sentia crescer entre os imigrantes uma nuvem de descrença. Muitos sonhavam em retornar, mas sabiam que a travessia custava mais do que poderiam juntar em anos de trabalho. Outros, já endividados com os próprios patrões, não tinham sequer a possibilidade de partir.

Ainda assim, pequenos gestos de fé sustentavam os que não sucumbiam à desesperança. Alvise fazia promessas silenciosas. Pedia para os parentes na Itália que missas fossem celebradas em sua aldeia natal, agradecendo a sobrevivência em meio a tantos perigos. Guardava consigo a lembrança das procissões de Castiglione, o toque dos sinos da igreja de São Luís Gonzaga, a imagem dos santos iluminados por velas. Essas memórias se tornaram seu consolo, a ponte invisível entre a vida que perdera e a que agora tentava construir.

A colônia italiana em torno de Campinas se reorganizava com solidariedade. Famílias dividiam sementes, ferramentas, pedaços de pão. As noites eram preenchidas por conversas à luz fraca de lamparinas, em que cada um recontava sua história, talvez na esperança de não se esquecer de quem fora antes. Mas a saudade corroía. Muitos sentiam a Itália mais viva nas lembranças do que o Brasil diante dos olhos. Alvise, que tantas vezes amaldiçoara os campos magros de sua província, agora os recordava como um lugar menos cruel do que a selva tropical que precisava enfrentar.

A pequena roça de milho recém-plantado entorno da casa prometia uma colheita modesta, mas suficiente para garantir alimento por muito tempo. A cana de açúcar, por sua vez, exigia esforço incessante, arrancando-lhe forças que julgava não ter. Cada manhã, ao pegar a enxada, Alvise sentia os ossos pesarem como chumbo. Mas sabia que, se fraquejasse, sua família pereceria.

No íntimo, compreendia que a vida lhe havia imposto o papel de geração de sacrifício. Não colheria a prosperidade que lhe fora prometida. Não teria descanso nem terras próprias. Mas alimentava a esperança de que seus filhos, e os filhos deles, herdariam mais do que penúria. Herdariam raízes fincadas nesta terra estranha, regadas com o suor e as lágrimas de quem pagara o preço mais alto.

E assim, entre dias de calor sufocante e noites de febre, entre memórias da Itália e orações murmuradas sob o céu estrelado de Campinas, Alvise Pavesa foi moldando sua vida ao destino que escolhera. A travessia não terminara no porto; estendia-se em cada jornada pelo cafezal, em cada lágrima diante da filha doente, em cada pedaço de pão dividido com vizinhos. Um homem arrancado da Lombardia pela fome, lançado no coração do Brasil pela esperança, e que agora compreendia que sua verdadeira herança não seriam riquezas nem terras, mas a resistência silenciosa de quem se recusa a ceder diante da adversidade.

Alvise Pavesa envelheceu entre o calor sufocante das lavouras e a sombra das colinas distantes de sua terra natal. Cada gota de suor, cada dor e cada oração se transformaram em raízes invisíveis, firmes no solo estranho que agora chamava de lar.

Seus filhos cresceram ouvindo histórias de uma Itália distante, aprendendo que o valor da vida não se mede em terras ou moedas, mas na coragem de atravessar oceanos, enfrentar doenças e manter a esperança acesa.

E assim, no silêncio das noites tropicais, Alvise compreendeu que sua verdadeira travessia não havia sido o Atlântico, mas a vida inteira: uma jornada de resistência, amor e fé, que floresceria em gerações futuras. A pátria que perdera permanecia em suas lembranças, mas a terra que conquistara com esforço se tornara eternamente sua.

Nota do Autor

A história de Alvise Pavesa – Entre a Terra e o Destino, aqui apresentada em forma resumida, é uma narrativa inspirada em relatos reais de imigrantes italianos que, no final do século XIX, atravessaram o Atlântico em busca de uma vida melhor no Brasil. Embora os personagens e os eventos aqui descritos sejam ficcionais, eles refletem a experiência coletiva de milhares de homens, mulheres e crianças que enfrentaram a fome, doenças, trabalho exaustivo e saudade de uma terra natal distante.

Ao escrever esta obra, procurei permanecer fiel ao espírito da época: à dureza das colônias agrícolas, às dificuldades impostas pelo clima e pelo trabalho, e, sobretudo, à resiliência e à esperança silenciosa que sustentava aqueles que se lançaram no desconhecido. O leitor encontrará nas páginas desta narrativa não apenas sofrimento e luta, mas também o poder da memória, da solidariedade e da coragem de quem, mesmo diante do destino mais adverso, não perdeu a fé na vida.

Este livro é, acima de tudo, uma homenagem a todos os imigrantes que construíram suas histórias e, através de seu esforço, plantaram raízes em terras estranhas, deixando um legado de resistência e esperança que atravessa gerações.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta



quarta-feira, 6 de agosto de 2025

A Longa Espera dos Rozzo

 


A Longa Espera dos Rozzo

No inverno de 1878, quando as geadas já haviam queimado as últimas folhas das parreiras e o vento atravessava os vales do Vêneto com um frio cortante, a família Rozzo tomou a decisão que mudaria para sempre a sua história. Pequenos agricultores na encosta pedregosa próxima a Vicenza, viviam de terras emprestadas, onde a colheita mal bastava para pagar o arrendamento e alimentar os nove filhos. A miséria não chegava como uma tragédia súbita, mas como uma visita constante, feita de invernos compridos, verões exaustivos e mesas onde a polenta cozida com algumas ervas era o único alimento disponível e ainda assim dividida em pedaços cada vez menores. 

A notícia da emigração corria pelas aldeias como uma esperança silenciosa. Falava-se de terras distantes e desconhecidas, além do oceano, onde o governo brasileiro prometia lotes e liberdade aos colonos. As passagens, subsidiadas pelas autoridades, eram a única possibilidade para famílias como a dos Rozzo, que não possuíam sequer moedas de prata para comprar a farinha do mês. Na primavera seguinte, uma parte da família, o filho Giovanni com a mulher e um filho pequeno embarcaram em Gênova rumo ao desconhecido, com um velho baú de madeira, um crucifixo, algumas sementes e a fé de que a terra nova pudesse oferecer um futuro diferente.

Após a travessia extenuante que durou bem mais de trinta dias, desembarcaram no Rio Grande do Sul, sendo destinados à recém-formada colônia Dona Isabel. A terra era bruta, a mata densa e o isolamento quase absoluto. As casas, erguidas com toras verdes, abrigavam mais frio do que calor. A floresta, embora fértil, não perdoava: exigia anos de trabalho para ceder espaço às lavouras. O esforço consumia os dias, e o calendário se media mais pelo corte das árvores do que pelas datas do almanaque.

Enquanto isso, dois irmãos mais novos de Giovanni Rozzo — Matteo e Pietro — também haviam deixado o Vêneto, mas seu destino fora diferente. Embarcaram no ano seguinte, rumando para o interior da província de São Paulo, onde foram contratados como trabalhadores braçais em uma grande fazenda de café nas proximidades de Campinas. Ali, viviam sob condições árduas, confinados à realidade fechada da fazenda. O único comércio disponível era o pequeno armazém da própria fazenda, onde os preços eram quase o triplo daqueles praticados em Campinas. Essa diferença não era fruto do acaso, mas parte de um mecanismo que garantia ao patrão lucros extras sobre a pobreza de seus empregados. As compras — farinha, sal, querosene, um pedaço de toucinho — eram registradas em cadernos amarelados, e o acerto de contas acontecia apenas na época do pagamento, quando o saldo, quase sempre, ficava no vermelho.

A comunicação com outras localidades existia, as distancias entre as cidades menores, mas ainda era bastante precária. Havia, de fato, um acesso um pouco melhor aos correios do que nas colônias isoladas do sul, mas o sistema era frágil e permeado por desonestidade. Muitas cartas, sobretudo as que carregavam pequenas quantias de dinheiro, desapareciam no caminho e jamais chegavam ao destino. As notícias, quando vinham, já traziam o sabor amargo da demora, misturando-se à incerteza e ao silêncio que separava famílias por anos a fio.O Brasil, contudo, era imenso, e a distância entre as duas realidades era mais do que geográfica: era também um abismo de informação.

Os primeiros anos em Dona Isabel foram mergulhados num silêncio denso, quase mineral. O mundo parecia terminar nas bordas da mata fechada, e qualquer sinal vindo de fora era raro como ouro. As cartas, quando existiam, precisavam ser levadas a pé até a sede da colônia, a vários quilômetros de distância, por trilhas enlameadas no inverno e cobertas de pó no verão. Mesmo quando finalmente alcançavam o correio, não havia garantia de chegada: muitas se perdiam no caminho, extraviadas por descuido ou simplesmente esquecidas em algum depósito improvisado. 

O isolamento não era apenas geográfico, mas também humano. Giovanni desconhecia completamente que Matteo e Pietro estavam nas terras paulistas. As estações se sucediam como páginas de um mesmo livro sem novidades: a primavera chegava com suas promessas, o verão com seu calor opressor, o outono com o aroma das uvas esmagadas, e o inverno com sua resignação silenciosa — mas nenhuma carta trazia notícias.

A vida naquela região isolada era um esforço contínuo contra a solidão e a natureza bruta. Os vizinhos mais próximos viviam quase um quilômetro de distância, e no início cada encontro era um acontecimento.Os filós e as festas religiosas, realizadas em capelas simples de madeira, eram mais do que momentos de fé: tornavam-se o único elo social, ocasiões para partilhar bênçãos e murmúrios. Nelas, os nomes de parentes e conhecidos distantes eram sussurrados como quem tenta chamar de volta vozes desaparecidas, mas nenhum deles trazia notícias concretas.

O tempo passava pesado, medido não pelo calendário, mas pela abertura de clareiras, pela colheita das primeiras videiras e pelo crescimento lento dos filhos. No fundo das arcas, junto aos poucos objetos trazidos da Itália, permanecia a esperança de um envelope, de um pedaço de papel que rompesse aquele silêncio imenso e dissesse que, em algum lugar, os Rozzo ainda eram lembrados.

Anos depois, uma reviravolta inesperada aconteceu. Maria Rozzo, irmã mais velha, que havia emigrado para os Estados Unidos com o marido, estabeleceu-se em uma comunidade ítalo-americana em Illinois. Lá, o acesso às comunicações era melhor, e por intermédio de outros conterrâneos que mantinham vínculos com brasileiros e argentinos, chegou aos seus ouvidos a existência de Matteo e Pietro, vivos e estabelecidos em Campinas.

Maria iniciou um esforço incansável para restabelecer o contato. Cartas atravessaram oceanos e fronteiras, demorando meses para ir e voltar. No entanto, quando finalmente a notícia chegou às mãos de Giovanni, já em Bento Gonçalves, mais de uma década havia se passado desde a separação. O reencontro físico nunca se realizou, pois as distâncias, a idade e as dificuldades econômicas tornavam a viagem impossível.

Ainda assim, a troca de cartas e alguma fotografia esparsa reacendeu o elo familiar. Os Rozzo de Bento Gonçalves passaram a saber das colheitas de café em São Paulo; os Rozzo paulistas ouviam falar das videiras que finalmente davam fruto no sul. Maria, nos Estados Unidos, tornou-se o ponto de ligação invisível, o fio frágil que unia três mundos separados pelo Atlântico e pela vastidão do Brasil.

A história dos Rozzo foi uma de milhares de famílias italianas: partidas marcadas pela esperança, desencontros selados pelo isolamento, e reencontros possíveis apenas pela palavra escrita. No silêncio das cartas que ainda sobrevivem, guardadas em arcas antigas, permanecem a saudade e a certeza de que a emigração, mais do que mudar destinos, moldou gerações inteiras com a marca indelével da distância. 

Nota do Autor

Escrever A Longa Espera dos Rozzo foi mais do que reconstruir uma narrativa histórica — foi um exercício de escuta. Escuta das vozes que, há mais de um século, partiram das aldeias silenciosas do Vêneto com a coragem de quem se despede sem saber se haverá reencontro. Escuta das cartas que atravessaram oceanos e fronteiras, carregando, em poucas linhas, todo o peso da saudade e da esperança. Escuta, enfim, dos silêncios — esses que se estendem entre uma notícia e outra, entre uma despedida e uma resposta que talvez nunca chegue.

A história dos Rozzo é fictícia, mas é também real em cada detalhe. Ela ecoa o que tantas famílias viveram: irmãos separados por milhares de quilômetros, pais que envelheceram sonhando com um abraço que nunca veio, mães que esperaram notícias até o último dia. É a história de todos os que deixaram para trás uma terra pobre, mas carregada de afetos, e encontraram no Brasil e em outras partes do mundo um novo lar — nunca totalmente separado do antigo.

Dedico esta história aos descendentes dos imigrantes italianos, que herdaram não apenas sobrenomes, mas também memórias feitas de distâncias. Que esta narrativa seja, para cada um, uma ponte imaginária que une de novo os Rozzo dispersos — e, junto deles, tantas outras famílias que o tempo separou, mas que a história insiste em reunir.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta




domingo, 27 de julho de 2025

La Zornada de Giovanni e Maria Do emigranti Véneti in Brasil

 


La Zornada de Giovanni e Maria
Do emigranti véneti in Brasil

Giovanni Z. e Maria B. lori i ga nassesto ´nte'l 1855 e ´nte'l 1857, rispetivamente, ´nte la pìcola e modesta vila de San Martino Buon Albergo, un posto quasi sconossùto ´nte le campagne de la provìnsia de Verona, region del Veneto. La vila la zera 'n grovìlio de poche strade strete e case de piera consumà dal tempo, schierà lungo coline dolse, pien de vignai e campi de orso. No obstante la belessa campestre, la vita là la zera 'na lota contìnua contro la povertà. Giovanni e Maria, fiòi de contadin, i ze cressesto in condision ùmili, con le so infansie segnà dal laoro ´ntei campi e da la preocupasion costante de mantegner la famèia.

L’economia local la stava decadendo da deseni, consumà da 'na combinasion de fatori implacàbili. El pìcolo tocheto de tera che i coltivava, in afito da 'n paron de tera distante e indiferente, no rendea gnanca 'l necessàrio par garantir 'na sopravivensa dignitosa, e solo se i cieli i zera generosi e la natura no riservava sorprese crudeli. I ùltimi ani i zera sta particolarmente duri: piove tarde e gelate improvise le gavea rovinà le racolte de formento e de orzo, mentre pestilense le infestava i vignai, portando via ogni speransa de 'na bona racolta. No bastava, le tase imposte dal governo austrìaco, che comandava la zona fino al 1866, i zera pesanti, lassando poco o gnente ai contadin. Con la unificassion de l’Itàlia, le promesse de miliora e alìvio fiscal no le ze mai rivà. Invese, nove imposte le ze sta messe, alimentando el malcontento popular. Desocupasion e fame le zera deventà ospiti quotidiani de San Martino. El marcà del paese, che ´na volta el zera 'n punto de scámbio e de ritrovo, adesso el zera silensioso, con bancarele sconde e voci disperà. Giovanni, ancora toseto, el ricordava ben so papà che rientrava dal marcà con la fassia scura e le man vote, sensa gnanca aver vendù quel poco che i gavea coltivà.

Maria, da parte soa, la gavea cressiuta vardando so mare spartir le ùltime brìcole de pan fra i fiòi, tante volte restando sensa magnar par darghe qualcosina ai putei. Era usuale che le famèie le se indebitasse con i afituari, cascando ´nte un sìclo sensa fin de laoro duro e rendimenti insufisenti. Sto panorama griso no gavea solo formà la resistensa de Giovanni e Maria, ma anca el desidèrio profundo de scampà da 'sto destino, anca se ancora no savea come o ndove andar.

La vila, con la so pìcola cesa de piera consumà e el campanil che segnava le ore con 'na nota malincónica, el zera tanto la cuna quanto la prigion dei so sòni.

Sercando 'n futuro meior par i so fiòi, i ga deciso de imigrar in Brasil inte'l 1880, imbarcandose su'l bastimento Conte Verde, che partìa dal porto de Genova verso Rio de Janeiro. El viaio la ga durà sirca 40 zorni in condision durìssime: nave tropo pien, poca ària fresca, poco da magnar e malatie contìnue che le minassiava i passegieri. Giovanni e Maria i ga suportà febri, mal de mare e 'na nostalgia profonda par la so tera natale.

Quando lori i ze rivà in Brasil, i ze sta mandà ´nte la colónia italiana de Dona Isabel, ´nte le montagne de la Serra Gaúcha, uno dei nùcleo pì importanti de l’imigrassion italiana in Rio Grande do Sul. Là, i ga ricevù lote de tera da coltivar, ma la lota la gavea solo scominsià. L’isolamento, el clima rigoroso e la mancansa de infrastruture i gavea resa la vita ´nte la colónia 'na batàlia ogni zorno.

Maria e Giovanni i ga laorà duro, desboscando, piantando vigneti, formento e granoturco, e costruindo con le so man la so casa. La nostalgia dei parenti rimasti in Itàlia la gavea ogni zorno, ma la speransa de 'n futuro mèio la ghe dava forsa par superar ogni dificoltà. Pian pian la colónia la xe cresciuta e la comunità italiana la ze diventà forte, preservando i costumi e la lèngoa véneta. Dopo ani de sacrifìssi, la famèia la ze riusì a construir 'na vita dignitosa. Giovanni el ze diventà riconossù par la so dedision ´nte la viticoltura, mentre Maria, con le so abilità culinàrie, la mantenea viva la tradision italiana tra i visin.

La stòria de Giovanni e Maria la raconta l’essensa de la saga de miliaia de emigranti italiani che, spinti da misèria e disperasion in Europa, i ga intrapreso un viaio tanto pericoloso quanto inserto. I ga lassà la familiarità de le so vilete, el rintoco del campanel de le so vècie cesete e la tera àrida che ormai no i poteva pì sostegner, par sercar un futuro pì iluminà de là dal mar.

Là, ´nte le vali e le coline de la Serra Gaúcha, i ga piantà no solo vigneti, ma anca radisi profonde de 'na nova cultura. Con resiliensa e determinasion, i ga costruì vilagi, cesete e tradision che univa la nostalgia de 'l vècio mondo con le esigense del novo. El lassà de Giovanni e Maria el contìnua vivo ancora incòi, ´ntei vigneti, ´ntele feste, ´nte le tradision che arichisse l’identità brasilian.

Nota de l’Autore

Sta stòria la ze 'na omaio al coraio, a la resilienzsa e a la determinasion dei emigranti italiani che i ga lassà la so tera natìa par sercar 'na vita meior in Brasil, specialmente ´nte la region de la Serra Gaúcha. Inspirà da fati stòrici, ma tessù con elementi de fantasia, lei la serca de descrivar no solo i sfidi che ste famèie le ga afrontà, ma anca de valorisar la so contribussion a la costrussion del mosaico cultural e económico brasilian.

La narativa de Giovanni e Maria la ze rapresentativa de mìla de vite segnà da selte difìssili, pèrdite dolorose e 'na speransa che no la moriva mai. Sti emigranti i ga sfidà la fame, la desocupasion e i tassi pesanti ´nte la so tera natìa. Quando i ze rivà in Brasil, i ga trovà novi sfidi: l’isolamento ´nte le colònie, le foreste dense da desboscar e el ricordo de chi che i gavea lassà drio. Ma, no obstante le aversità, ste persone le ga lassà un legado de valore incalcolàbile. Le ga contribuì a formar l’identità de la Serra Gaúcha, criando comunità basà sul laoro duro, la solidarietà e la celebrasion de le tradission culturai. I so dessendenti i contìnua a onorar sto património, tegnendo viva la memòria dei so antenati e perpetuando i so valori.

Spero che sta stòria la inspira 'na riflession su la forsa del spìrito umano davanti a le adversità e sul’impatto duraduro de chi che ga avuto el coraio de ripartir. Che la sia anca un tributo a la memòria dei pionieri italiani, de chi che con el so coraio el risuona ancora tra le montagne e le vali che i ga contribuì a trasformar in ´na casa.

Con gratitùdine e rispeto,

Dr. Luiz C. B. Piazzetta



segunda-feira, 26 de maio de 2025

As Aventuras de Giuseppe Morettini: Um Legado Entre Dois Mundos


 

As Aventuras de Giuseppe Morettini: 

Um Legado Entre Dois Mundos


A Partida

Albettone, Itália, 1886

Giuseppe Morettini sentou-se na beira da cama, com as mãos calejadas segurando o chapéu velho. A decisão estava tomada: ele partiria para o Brasil em busca de uma vida melhor. As cartas de um conhecido que emigrara dois anos antes falavam de terras vastas e promessas de trabalho. “Volto em poucos anos, com dinheiro suficiente para recomeçar aqui”, dizia a todos que questionavam sua partida. Mas em seu íntimo, sabia que talvez nunca mais visse sua terra natal.

Sua mãe, Giulia, chorava em silêncio enquanto colocava um rosário na bagagem do filho. “Reze, Giuseppe, e Deus o protegerá. Não importa quão longe esteja, estaremos sempre ligados pela oração.”

No porto de Gênova, Giuseppe embarcou no Vittoria, um navio abarrotado de esperanças e incertezas. Entre os passageiros, conheceu a família Zanetti, que, como ele, buscava reconstruir a vida em um lugar desconhecido.


A Quarentena

Ilha das Flores, Brasil, 1886

A travessia foi dura, com pouca comida e o medo constante de doenças. Quando o navio atracou no porto do Rio de Janeiro, todos os passageiros foram obrigados a tomar a vacina contra a varìola. Giuseppe, porém, não respondeu bem ao procedimento tendo uma forte reação. Ele foi isolado em uma instalação de quarentena na Ilha das Flores, enquanto os Zanetti seguiram viagem.

Durante semanas, Giuseppe lutou contra a solidão e a angústia. A cada dia, observava os navios partindo e imaginava o que seria de sua vida. “Estou só, em um lugar que nem sei pronunciar. Será este o fim do meu sonho?”

Finalmente liberado, chegou a São Paulo sem saber ler, escrever ou falar português. Sentia-se perdido em uma cidade que crescia rapidamente, mas era movido por uma determinação inabalável.

O Fazendeiro

Na estação de imigração, Giuseppe foi notado por Bartolomeu Franco, um fazendeiro de Araraquara, que buscava trabalhadores italianos. Mas as famílias já haviam sido destinadas. Sem alternativas, Bartolomeu aceitou levar Giuseppe que era sozinho e sem família.

A viagem de trem para Araraquara parecia interminável. Quando chegaram ao ponto final da linha férrea, Giuseppe descobriu que o resto do caminho seria feito a pé, através da floresta. A fazenda Monte Alegre era isolada, rodeada por mata virgem. Giuseppe foi um dos primeiros italianos a trabalhar ali, enfrentando condições quase insalubres e jornadas exaustivas.

Uma Nova Comunidade

Após a abolição da escravatura em 1888, a fazenda começou a receber mais imigrantes italianos. Entre eles estava a família Paolon, de Treviso. Giuseppe logo se encantou por Elena Paolon, uma jovem de olhos vivos e sorriso acolhedor. Apesar da resistência inicial do pai dela, o casal casou-se em uma cerimônia simples na pequena capela da fazenda.

Elena trouxe esperança para Giuseppe. Juntos, começaram a construir uma vida sólida, cultivando café, criando algum gado, economizando cada centavo que ganhavam e, aos poucos, adquiriu uma pequena chácara em uma pequena cidade que se formava perto da fazenda.


O Legado

Entre 1890 e 1905, Giuseppe e Elena tiveram oito filhos. A fazenda crescia, assim como a comunidade italiana em Monte Alegre. Giuseppe, que aprendera a ler e escrever com a ajuda de Elena, tornou-se um líder local, mediando conflitos e ajudando os recém-chegados a se adaptarem. Mas, era preciso deixar a fazenda para trabalhar na pequena propriedade adquirida com grande dificuldade.

A saudade da Itália nunca desapareceu, mas o sonho de voltar ficou cada vez mais distante. Giuseppe manteve contato com sua família na Itália por meio de cartas, nas quais narrava as dificuldades e os triunfos de sua jornada. “Aqui não é fácil, mas a terra é generosa com quem trabalha. Estamos construindo algo que nossos filhos e netos poderão se orgulhar.”

Uma Marca no Tempo

Em 1938, aos 72 anos, Giuseppe Morettini faleceu, rodeado por sua grande família. No funeral, muitos relembraram sua coragem e resiliência. O terreno que um dia era mata fechada agora abrigava plantações, casas e uma comunidade vibrante.

No coração da pequena cidade, um pequeno marco foi erguido em sua homenagem, com a inscrição:

Àquele que transformou sonhos em raízes profundas. O legado de Giuseppe Morettini vive em cada colheita e em cada geração.”

A história de Giuseppe tornou-se um símbolo da força e do espírito dos imigrantes italianos no Brasil, que, mesmo diante de adversidades inimagináveis, ergueram suas vidas e deixaram um legado eterno.