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quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O Eco do Mera sob o Sol do Brasil

 


O Eco do Mera sob o Sol do Brasil


O rio Mera, em seu curso rápido pelas encostas íngremes da Val Chiavenna, carregava mais do que a neve derretida das montanhas: levava histórias de resistência e saudade. À sua sombra nasceu, em 1869, Elisabetta Vassalli, filha de um pedreiro que passara temporadas longe, trabalhando nas obras ferroviárias da Lombardia, e de uma mãe que mantinha o lar aquecido com o tecer incessante de lã e linho.

A vida no vale era medida pelo som dos cascos dos mulos que desciam trazendo farinha e pelo murmúrio constante das águas geladas batendo nas pedras. Foi ali que Elisabetta cresceu, entre invernos longos e verões curtos, até se casar, em 1891, com Lorenzo Cantù, agricultor de poucas posses, descendente de uma família que vira suas terras minguarem geração após geração.

A partir do início da década de 1890, cartas amareladas vindas de parentes instalados no Brasil começaram a chegar ao vale, percorrendo um longo caminho de navios, trens e mensageiros até repousarem sobre a mesa da cozinha. Eram escritas com caligrafia apressada, às vezes manchadas por gotas de suor, terra ou borrões de tinta, e traziam descrições de lugares que pareciam extraídos de um sonho distante. Falavam de lavouras de café que se estendiam até onde a vista alcançava, de canaviais ondulando sob um sol constante, de pássaros de plumagem cintilante e de uma natureza tão abundante que, segundo diziam, uma semente lançada ao solo brotava em poucos dias.

Mas o conteúdo mais marcante não estava nas imagens idílicas, e sim na promessa velada que corria por entre as linhas: havia trabalho para quem tivesse força nos braços e disposição para suportar um clima que nunca conhecia o frio cortante do inverno alpino. O nome Piracicaba repetia-se nas cartas como um refrão hipnótico, carregado de possibilidades. Para Lorenzo, evocava a imagem de rios largos e caudalosos, capazes de alimentar plantações inteiras; para Elisabetta, soava como um antídoto contra as geadas súbitas que, no vale do Mera, podiam transformar uma lavoura saudável em um campo de hastes negras durante uma única noite.

Essas cartas, lidas e relidas à luz trêmula do lampião, plantaram no casal uma inquietação silenciosa. Cada relato parecia corroer, pouco a pouco, as raízes que os prendiam àquela terra pedregosa e imprevisível, até que a ideia de partir deixou de ser apenas uma possibilidade e começou a ganhar a força de um destino inevitável.

No inverno de 1895, depois de venderem quase tudo que possuíam e empenharem o pouco que restara, Elisabetta e Lorenzo deixaram a Val Chiavenna. Desceram até Gênova em vagões frios e lotados, embarcando num vapor misto que cruzaria o Atlântico. A travessia foi marcada pelo balanço incessante, pelo cheiro de carvão queimado e por noites abafadas nos porões da terceira classe. Para quem viera do ar rarefeito das montanhas, o calor do oceano parecia quase irrespirável.

A chegada ao Porto de Santos trouxe um impacto imediato: umidade espessa, aroma de sal misturado a frutas maduras e uma língua que soava como um turbilhão de sons desconhecidos. Do cais, foram conduzidos junto a outros recém-chegados para a Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo, um vasto edifício de tijolos que parecia uma fortaleza, mas cuja função era acolher. Ali, os corredores ressoavam com um mosaico de idiomas — dialetos italianos, espanhol, português, húngaro, alemão, até murmúrios em línguas eslavas — formando uma música estranha que acompanhava cada passo.

As longas mesas do refeitório se enchiam de homens e mulheres de diferentes nacionalidades, partilhando pratos simples de arroz, feijão, carne e pão, que para alguns era novidade e para outros um sabor de casa distante. As crianças, curiosas, exploravam os pátios internos, correndo entre malas de couro e baús de madeira marcados com nomes e destinos. A cada refeição, a sensação de exaustão cedida pela travessia marítima começava a dar lugar a um alívio cauteloso: estavam em terra firme, sob um teto seguro, com alimento garantido e a promessa de trabalho à frente.

Nos dormitórios coletivos, beliches de ferro alinhados lado a lado recebiam famílias inteiras. As noites eram interrompidas por tosses, choros de bebês e conversas sussurradas até tarde, mas havia também um clima de solidariedade improvisada — um empréstimo de coberta, um pedaço de pão repartido, uma tradução improvisada para quem não compreendia as ordens dos funcionários.

Lá permaneceram por alguns dias, tempo suficiente para que o cansaço se diluísse e para que a esperança se infiltrasse de novo nos gestos. Quando chegou a hora de partir, embarcando novamente em outro trem rumo ao interior, Elisabetta e Lorenzo deixaram a hospedaria com a impressão de terem passado por um ponto de cruzamento invisível: o último abrigo do velho mundo antes de entrarem, de fato, no novo.

O destino final foi uma fazenda nas proximidades de Piracicaba. Lorenzo, acostumado ao arado de madeira, precisou aprender o manejo rápido da foice na colheita da cana. O sol tropical castigava a pele clara e fazia arder cada movimento. Elisabetta, além de cuidar da alimentação dos empregados da fazenda, dedicou-se a um pequeno canteiro ao lado da casa de madeira, onde cultivava ervas trazidas do vale: alecrim, sálvia, basílico. Esses aromas, libertos no ar quente da tarde, eram seu último vínculo sensorial com o lugar de origem.

As estações no interior paulista se sucediam com violência: chuvas torrenciais que arrastavam o solo, seguidas por estiagens que rachavam a terra. Lorenzo guardava moedas com o objetivo de adquirir um pedaço próprio, mas o custo era alto. A vida seguia num compasso de trabalho exaustivo e paciência.

Em 1901, após seis anos de economia rígida e de incontáveis sacrifícios, conseguiram finalmente comprar um pequeno sítio. Não era a terra fértil e macia dos sonhos, mas um chão exausto de colheitas passadas, marcado por sulcos antigos e pedras que afloravam sob o sol. Ainda assim, pertencia a eles, e isso bastava para transformá-lo no território da esperança.

Entre os limites irregulares da propriedade, alguns pés de café sobreviviam, retorcidos pelo tempo e com folhas de um verde opaco, como se esperassem uma nova chance de frutificar. Havia também um pomar esquecido, onde árvores mal podadas guardavam frutos pequenos e ásperos, mas cujo perfume se espalhava pelo ar nas primeiras horas da manhã. No quintal mais próximo da casa, Elisabetta iniciou, quase de imediato, a construção de sua horta. Revirou a terra endurecida com as próprias mãos, misturou cinzas de fogão à lenha, plantou sementes guardadas com cuidado desde a travessia e, pouco a pouco, ergueu um refúgio verde que se tornaria sua marca.

A cana, cultivada nas faixas mais ensolaradas, era cortada e vendida para um engenho próximo. Nos dias de moagem, o ronco cadenciado das moendas ecoava pelo vale, misturando-se ao cheiro adocicado da garapa quente que impregnava o ar e atraía nuvens preguiçosas de abelhas. O sítio, ainda modesto, começou a pulsar como um organismo vivo: cada nova folha que brotava e cada saca vendida eram sinais de que, mesmo num solo cansado, havia futuro a ser colhido. O tempo trouxe perdas silenciosas: a morte de um filho, de vizinhos levados pela febre amarela, enchentes que invadiam a lavoura, secas que queimavam folhas e esperanças. Mas também trouxe raízes. Elisabetta nunca dominou totalmente o português, mas aprendeu a entender o gesto das vizinhas, a forma como penduravam roupas, como rezavam nas procissões e como conservavam frutas em compotas que lembravam as da sua infância.

O casal envelheceu vendo a terra dar frutos e falhar, mas sempre recomeçando. Do rio Mera, restava apenas uma lembrança fria e sonora, que às vezes parecia ecoar no ruído do rio Piracicaba nas cheias. Nunca voltaram à Itália. A data exata de suas mortes perdeu-se nas páginas do tempo, mas ainda hoje, num ponto discreto de terra perto de Piracicaba, há quem mostre uma antiga parreira e diga que ela nasceu nas montanhas da Lombardia, trazida por uma mulher que atravessou o oceano para criar raízes onde o sol era mais forte que a neve.

Nota do Autor

Esta narrativa nasceu do desejo de resgatar um fragmento esquecido da experiência imigrante, dando voz a homens e mulheres que trocaram o conhecido pela incerteza, movidos apenas pela esperança de um futuro menos árido. A história que o leitor tem em mãos é ficcional, mas profundamente ancorada em fatos, cenários e testemunhos reais do final do século XIX e início do XX, quando milhares de famílias italianas, empobrecidas e pressionadas pelas crises agrícolas e sociais da Europa, embarcaram rumo ao Brasil.

O fio condutor desta história acompanha uma família que deixa o vale alpino para enfrentar a travessia marítima, o choque cultural, a adaptação ao clima tropical e a árdua conquista da terra própria. Piracicaba, com seus rios largos e solos quentes, foi escolhida como cenário não por acaso: foi um dos destinos que mais recebeu imigrantes, e cuja paisagem ainda guarda marcas da época em que as colônias agrícolas floresciam.

Escrevi esta história não apenas para reconstruir um percurso individual, mas para que os descendentes — e todos aqueles que se reconhecem no gesto de partir — possam enxergar, nas linhas e entrelinhas, um pedaço de si. É um tributo à coragem silenciosa, ao trabalho persistente e à fé obstinada de quem construiu, com suor e raízes, um novo lar num continente distante.

Dr. Piazzetta


segunda-feira, 28 de julho de 2025

Enrico Castellari A Odisseia de um Imigrante

 


Enrico Castellari 
A Odisseia de um Imigrante

No final do século XIX, Enrico Castellari, um agricultor lombardo, vivia os dias difíceis de uma Itália marcada pela fome, desemprego e crise social. Com 34 anos, Enrico era um homem dedicado à família e ao trabalho na pequena vila de Piubega. Contudo, as terras de sua região, empobrecidas por décadas de cultivo intensivo, já não ofereciam o sustento necessário para ele, sua esposa Rosa e seus dois filhos, Carlo e Bianca.

A decisão de emigrar surgiu como uma luz em meio às trevas. Um agente de imigração passava pelas vilas italianas prometendo um novo começo no Brasil, uma terra descrita como cheia de oportunidades. Movido pela esperança e pelo desespero, Enrico vendeu seus poucos pertences e comprou passagens para o outro lado do Atlântico.

A Travessia

A jornada começou em Gênova, onde embarcaram em um navio a vapor abarrotado de famílias que compartilhavam a mesma ambição: recomeçar. No convés inferior, o calor era insuportável, e o ar, pesado. Durante semanas, enfrentaram mares revoltos, doenças e a saudade do que haviam deixado para trás.

Enrico observava Rosa embalar Bianca em seus braços enquanto Carlo brincava com outras crianças. Ele se perguntava se havia tomado a decisão certa. Porém, a visão do porto do Rio de Janeiro, com suas montanhas imponentes e águas azuladas, renovou sua fé. Era o começo de uma nova vida.

Primeiros Dias no Brasil

Do Rio de Janeiro, a família seguiu para o Espírito Santo. Após dias costeando a praia, chegaram ao porto de Vitória e, dali, foram transportados em pequenos barcos para uma colônia chamada São Antônio. Giuseppe Artioli, um italiano que já vivia ali há anos, os acolheu e explicou as dificuldades que enfrentariam.

“Essa terra é generosa, mas precisa ser domada”, disse Giuseppe. As terras designadas a Enrico eram vastas, mas cobertas por uma floresta densa e desconhecida. Ele passou os primeiros dias limpando o terreno, aprendendo sobre o clima e tentando se adaptar à comida local. A mandioca, o feijão e as frutas tropicais eram estranhos ao paladar lombardo, mas, com o tempo, tornaram-se parte de sua dieta.

O Trabalho e a Superação

O cultivo do café era a principal promessa de riqueza. Enrico, com a ajuda de Rosa e Carlo, começou a plantar as primeiras mudas. O trabalho era extenuante, mas ele nunca reclamava. Cada semente plantada representava a esperança de um futuro melhor.

A floresta também era fonte de aventura e perigo. Carlo adorava explorar, mas Enrico sempre o alertava sobre os animais selvagens. Certo dia, um grupo de colonos encontrou uma preguiça gigantesca, que despertou a curiosidade de todos. “Esse lugar é cheio de surpresas”, disse Rosa, sorrindo.

O Vínculo com a Comunidade

A colônia era um mosaico de culturas. Italianos, alemães, franceses e suíços conviviam, trocando conhecimentos e experiências. As festas comunitárias, onde se misturavam músicas italianas e danças locais, eram momentos de união e alegria.

Enrico começou a ensinar os vizinhos sobre técnicas de cultivo que havia aprendido na Lombardia. Em troca, aprendeu a lidar com as particularidades do solo brasileiro. “Aqui, todos dependem de todos”, dizia ele.

A Saudade e o Futuro

À noite, quando o trabalho terminava, Enrico escrevia cartas aos parentes que haviam ficado na Itália. Contava sobre as dificuldades, mas também sobre as conquistas. “Esta terra é diferente de tudo que conhecemos, mas tem um potencial imenso. Se tivermos coragem, construiremos algo grandioso”, escreveu ao irmão Matteo.

A saudade era uma constante. Rosa, às vezes, chorava ao lembrar dos campos da Lombardia. Mas Enrico a consolava dizendo: “Estamos plantando nossas raízes aqui. Um dia, nossos netos falarão deste lugar como sua casa.”

O Legado

Anos se passaram, e a família Castellari prosperou. O café floresceu nas terras de Enrico, e sua colônia tornou-se um exemplo de sucesso. Carlo cresceu e começou a ajudar o pai, enquanto Bianca se tornou uma jovem forte e alegre, adaptada à vida no Brasil.

Enrico Castellari nunca voltou à Itália, mas seu espírito aventureiro e sua dedicação deixaram um legado. Ele e Rosa encontraram no Brasil não apenas um novo lar, mas uma nova identidade, onde as raízes italianas se misturaram com o solo brasileiro, criando uma história de coragem, resiliência e esperança.


Nota de Autor


"Enrico Castellari: A Odisseia de um Imigrante" nasce de um desejo profundo de homenagear os milhares de homens e mulheres que, entre os séculos XIX e XX, deixaram suas terras natais em busca de uma nova vida em solo brasileiro. A história de Enrico é, ao mesmo tempo, ficção e memória; é a personificação de tantas vozes que ecoam nas cartas, diários e relatos deixados pelos imigrantes italianos, documentos preciosos que inspiraram este romance.

Para compor esta narrativa, mergulhei nas cartas autênticas de emigrantes, carregadas de emoção, esperança e dor. Esses testemunhos revelam um verdadeiro mosaico de experiências: o sonho de um futuro próspero, as dificuldades enfrentadas na travessia e a árdua adaptação ao Brasil. As palavras desses pioneiros foram as guias que moldaram cada detalhe da vida de Enrico Castellari e de sua família.

Escrever este romance em talian, a língua que brotou da convivência dos dialetos italianos com o português, é também um tributo à herança cultural que os imigrantes italianos construíram no Brasil. É um esforço para manter viva uma língua que reflete a força, a resiliência e a identidade de uma comunidade que tanto contribuiu para o desenvolvimento do país.

Enrico Castellari representa cada agricultor que enfrentou a selva desconhecida, cada mãe que perdeu o sono de preocupação, cada criança que brincava entre as plantações de café. É uma história de amor, perda e superação; um lembrete de que o sacrifício de nossos antepassados merece ser lembrado e valorizado.

A todos os descendentes de imigrantes italianos, dedico este trabalho como uma ponte entre o passado e o presente, para que as histórias de luta e conquista de nossos antepassados jamais sejam esquecidas.

Gràsie

Dr. Piazzetta

sábado, 24 de maio de 2025

Isabella di Castelverde Uma Mulher do Século XVIII

 

Isabella di Castelverde 

Uma Mulher do Século XVIII


Isabella veio ao mundo em uma madrugada fria de novembro de 1738, na pequena vila de Castelverde, um refúgio bucólico na província de Cremona, coração da Lombardia. A vila parecia intocada pelo tempo, com suas colinas suaves, os vinhedos que ondulavam como mantos verdes e os bosques que exalavam um perfume fresco após cada chuva. As casas eram simples, feitas de pedra, com telhados de barro tomados por suaves mantos de musgo, e os sinos da igreja ao centro do vilarejo marcavam o ritmo da vida local. A família de Isabella vivia em uma casa modesta na periferia da vila, cercada por campos que pertenciam ao senhor feudal local, um homem poderoso e distante, cuja presença era sentida mais pelas cobranças de tributos do que pela palavra falada. Lorenzo, o pai de Isabella, era um homem robusto, de mãos calejadas e rosto marcado pelo sol, que passava longas horas arando a terra e cuidando dos parreirais. Trabalhava com uma devoção incansável, movido pela esperança de sustentar sua família e garantir que nada lhes faltasse, mesmo que isso significasse sacrificar seus próprios sonhos. Teresa, a mãe de Isabella, era o motor que mantinha a casa funcionando. Pequena e ágil, com olhos azuis vivazes que escondiam a melancolia de uma vida de privações, ela dividia seu tempo entre cuidar das crianças, fiar lã e preparar os alimentos simples que vinham do pequeno pomar da família. Apesar das dificuldades, Teresa mantinha a casa limpa e organizada, infundindo nela uma atmosfera calorosa que contrastava com a dureza da vida no campo. Desde os primeiros anos de vida, Isabella foi cercada pelos sons e cenários do trabalho árduo. Ela costumava observar o pai no campo, fascinada pela maneira como ele domava o solo, e a mãe na cozinha, sempre ocupada, mas nunca sem uma palavra gentil para os filhos. No entanto, desde pequena, Isabella também ouvia, quase como um mantra, que seu futuro não seria determinado por suas próprias escolhas ou talentos, mas por um destino já traçado pela sociedade: o casamento.

"Você deve aprender a costurar bem, minha menina, porque um dia será esposa de alguém", dizia Teresa enquanto mostrava à filha como manejar a agulha. Isabella não compreendia por que seu destino já estava decidido antes mesmo que pudesse sonhar. Ela queria correr pelos vinhedos, sentir o vento no rosto e imaginar um mundo além das colinas, mas sabia que essas liberdades tinham prazo curto.

Ainda assim, em seu coração jovem, pulsava um desejo silencioso de algo mais. Nos dias em que ficava sozinha, Isabella sentava-se sob a sombra de uma figueira centenária, que crescia no limite entre os vinhedos e os campos de trigo. As folhas balançavam suavemente ao vento, produzindo um murmúrio que ela imaginava ser uma voz sussurrando segredos de terras distantes. Ali, enquanto o sol dourava o horizonte e os sons do vilarejo ficavam distantes, Isabella deixava sua mente vagar. Ela sonhava com um mundo além das colinas que cercavam Castelverde, um lugar onde as mulheres poderiam escolher seus destinos e onde sua voz teria valor. Naquela época, poucas mulheres tinham escolhas. Trabalhar fora de casa, possuir terras ou ter direitos legais era inconcebível para alguém como Isabella, especialmente em uma vila onde as tradições eram lei e qualquer desvio era visto como uma ameaça à ordem estabelecida. Isabella sabia que sua vida seria uma sucessão de deveres: ajudar nas tarefas domésticas, aprender a bordar com perfeição para agradar um futuro marido e, acima de tudo, tornar-se uma boa esposa e mãe.

Mas cada vez que olhava para o horizonte, uma inquietação crescia dentro dela. A repetição monótona dos dias não apagava as perguntas que a assombravam: por que as mulheres deveriam ser definidas apenas por suas utilidades? Por que os sonhos de uma menina eram apagados antes mesmo de serem plenamente formados? Isabella sentia que havia algo injusto naquele ciclo imutável de obediência e sacrifício.

Durante as raras visitas à feira de uma vila vizinha, Isabella observava as mulheres que se destacavam, como a velha herborista que vendia seus remédios naturais com confiança e autoridade. Ouviu, em cochichos, que ela havia se recusado a se casar e vivia sozinha em uma casa nos limites da floresta. Essas figuras, embora vistas com desconfiança por muitos, acendiam uma chama no coração de Isabella. Elas eram provas vivas de que, apesar das expectativas sufocantes da sociedade, era possível viver de outra maneira, mesmo que à margem. À noite, quando o céu se enchia de estrelas, Isabella deitava-se em sua cama simples e imaginava histórias para si mesma. Em suas fantasias, ela era uma viajante que explorava terras distantes, uma escritora que registrava os segredos do mundo em pergaminhos ou uma curandeira que conhecia os mistérios da natureza. Essas histórias, contadas apenas para seu coração, eram um consolo e um lembrete de que, mesmo presa às limitações de sua época, sua alma ansiava por liberdade. No entanto, a realidade era implacável. O olhar de Lorenzo, seu pai, carregava a preocupação de um homem que sabia que o dote de Isabella seria mínimo, e Teresa frequentemente mencionava que a filha mais velha de uma família humilde não poderia se dar ao luxo de sonhar. Isabella escutava em silêncio, guardando suas ambições como um segredo precioso, temendo que, se verbalizasse seus desejos, eles fossem esmagados pela força brutal da tradição. Ainda assim, Isabella nutria a esperança silenciosa de que sua vida pudesse ser diferente. Talvez, de alguma forma, houvesse um espaço para ela, uma oportunidade inesperada que lhe permitisse transcender os limites que lhe foram impostos. Sob a figueira centenária, ela fechava os olhos e fazia um voto silencioso: se houvesse uma chance de mudança, ela a agarraria com toda a força de sua alma.

O destino inevitável

Quando Isabella completou 16 anos, a atmosfera em sua casa começou a mudar. Seu pai, Lorenzo, assumiu uma expressão mais séria, passando longas horas em conversas discretas com os homens mais velhos da vila. O momento que Isabella temia desde criança havia chegado: ele começara a buscar um noivo para ela. Naquele tempo, o casamento não era um ato de amor, mas uma transação cuidadosamente calculada. Os sentimentos não tinham lugar nessa equação, e a ideia de unir-se a alguém por escolha própria era tão distante quanto os horizontes que Isabella sonhava alcançar. Para Lorenzo, essa era uma tarefa árdua e cheia de implicações. Ele precisava equilibrar as necessidades de sua família e a honra de sua filha. Sem um dote significativo, encontrar um noivo que aceitasse Isabella seria um desafio. A negociação envolvia visitas a potenciais pretendentes, conversas com intermediários e até consultas com o pároco local, que conhecia todos os segredos e as virtudes das famílias de Castelverde. Por outro lado, Isabella sentia como se estivesse sendo empurrada para um destino inevitável, sem qualquer controle sobre sua própria vida. Ela ouvia as conversas abafadas entre os adultos, os sussurros que tratavam seu futuro como um problema logístico, e não como uma escolha pessoal. Cada palavra a fazia sentir-se menos como uma pessoa e mais como uma mercadoria a ser trocada.
A lógica era clara: o casamento garantiria a ela um teto seguro, comida na mesa e a proteção de um homem. Em troca, o noivo receberia uma jovem obediente, preparada desde a infância para gerir um lar, cuidar da prole e jamais questionar as decisões do marido. A beleza de Isabella, que muitos na vila elogiavam, era vista como um trunfo, uma qualidade que poderia compensar a ausência de um dote considerável. Teresa, sua mãe, tentava consolar a filha, mas suas palavras eram impregnadas de resignação. “É assim que as coisas são, minha querida. Foi assim comigo e com minha mãe antes de mim. Você será bem cuidada, terá sua própria casa. Não se preocupe com amor; ele pode vir com o tempo, ou talvez não, mas a vida seguirá.”

No entanto, para Isabella, a perspectiva de casar com um homem que mal conhecia – ou sequer admirava – era sufocante. Em sua mente, ecoavam as histórias das mulheres mais velhas da vila, cujas vidas haviam se tornado um ciclo interminável de trabalho, obediência e sacrifício. Ela temia que seu espírito, tão ansioso por liberdade e significado, fosse esmagado sob o peso de expectativas que nunca havia escolhido carregar. Enquanto Lorenzo continuava suas buscas, Isabella tentava conter a angústia. Sob a figueira centenária, seu refúgio desde a infância, ela contemplava o que poderia ser de sua vida. Embora sua voz interna clamasse por algo mais, a realidade insistia em lembrá-la de que suas escolhas eram limitadas. O casamento, ainda que indesejado, era o caminho que lhe restava. Mas, no fundo de seu coração, Isabella ainda alimentava a centelha de um desejo: que talvez, de alguma forma, ela pudesse desafiar o destino que lhe fora imposto.

O escolhido foi Giuseppe, um homem de 38 anos, viúvo e pai de dois filhos pequenos, que residia na mesma região. Sua aparência era marcada pelo trabalho árduo: mãos calejadas, ombros curvados pela labuta e olhos que carregavam o peso de uma vida cheia de desafios. Ele não era rico, mas possuía uma pequena vinícola herdada do pai, que, embora modesta, assegurava o sustento de sua família. A escolha de Giuseppe foi recebida com alívio por Lorenzo e Teresa, que viam nele um homem honesto, trabalhador e capaz de proporcionar alguma estabilidade à filha. Para Isabella, entretanto, o anúncio foi como uma sentença. Giuseppe era um estranho, alguém que ela conhecia apenas de vista e de histórias contadas na vila. Ele não representava um companheiro, mas uma obrigação. A decisão foi tomada em conversas às quais ela não foi convidada, em acordos selados sem que sua opinião fosse sequer considerada. Sua vida, até então já limitada pelas circunstâncias, parecia agora ser retirada completamente de suas mãos. Na noite anterior ao casamento, Isabella se refugiou sob a figueira centenária, seu lugar de consolo e reflexão. O silêncio ao redor contrastava com o turbilhão em sua mente. Ela sabia que sua nova vida traria responsabilidades que iam muito além de cuidar da casa: ela seria madrasta de duas crianças que não conhecia e parceira de um homem que, embora parecesse bondoso, não compartilhava de seus sonhos ou anseios. Enquanto o vento suave balançava as folhas da figueira, Isabella chorou em silêncio, permitindo-se expressar a dor que mantinha reprimida. Era um choro contido, carregado de resignação, mas também de luto. Luto por uma liberdade que nunca conhecera plenamente, mas que sempre desejara em segredo. Seus sonhos – de viajar para além das colinas de Castelverde, de aprender mais sobre o mundo, de decidir seu próprio destino – agora pareciam se desvanecer, como a névoa ao amanhecer.

No entanto, em meio às lágrimas, Isabella também sentiu uma pequena chama de determinação. Se sua vida havia sido moldada por escolhas que outros fizeram por ela, talvez houvesse uma maneira de encontrar pequenas liberdades dentro das limitações impostas. Talvez, de alguma forma, ela pudesse transformar seu destino, nem que fosse um pouco, para se aproximar do que realmente desejava. Com o coração pesado, mas decidido a enfrentar o que viria, Isabella levantou-se e caminhou de volta para casa. Na manhã seguinte, sob o olhar de toda a vila, ela vestiria o traje simples que sua mãe havia costurado e iniciaria uma nova etapa. Apesar do vazio que sentia, prometeu a si mesma que, mesmo nesse novo papel, encontraria uma forma de preservar sua essência, seus sonhos, e a força que sempre habitara seu espírito inquieto.


A vida de casada

A vida ao lado de Giuseppe revelou-se um desafio constante e exaustivo para Isabella. Seus dias eram preenchidos por um ritmo implacável de tarefas que pareciam não ter fim. Desde as primeiras horas da manhã, ela já estava de pé, cuidando da casa com uma dedicação quase automática — varrendo o chão de terra batida, organizando os poucos móveis, e garantindo que tudo estivesse em ordem para a família. Além disso, Isabella assumira a responsabilidade pelos dois enteados de Giuseppe, crianças pequenas e inquietas que ainda sentiam a falta da mãe, e que exigiam sua atenção constante. Não tardou para que também viessem seus próprios filhos, nascidos em meio à rotina pesada e à falta de tempo para descanso. Entre fraldas, choro e noites mal dormidas, Isabella via suas forças se esgotarem, mas não podia permitir-se fraquejar. Durante o dia, era comum vê-la lavando roupas nas margens do rio que serpenteava pela vila, suas mãos enregeladas e trêmulas pelo frio da água, enquanto murmurava preces silenciosas para obter forças. Cozinhar era outra tarefa que consumia horas: preparar refeições simples, porém nutritivas, com ingredientes colhidos na horta ou adquiridos com esforço na feira da vila. A vindima exigia de Isabella um trabalho físico pesado; ela passava horas colhendo uvas sob o sol abrasador, os dedos manchados pelo suco roxo, enquanto a respiração se tornava cada vez mais difícil. Nas horas vagas, ainda tinha de fiar tecidos, uma habilidade tradicional transmitida pelas mulheres da família, que mantinha a casa abastecida com roupas e mantas feitas à mão. Giuseppe era um homem de poucas palavras e emoções contidas, com uma rigidez que não admitia questionamentos. Pragmático e severo, ele esperava obediência absoluta, impondo suas decisões sem espaço para discussões. O afeto, o carinho, o apoio emocional — tudo isso parecia ser um luxo distante e inacessível naquela relação. Isabella nunca recebeu um gesto de ternura, um olhar de compreensão, ou um sorriso que aliviasse o peso da rotina. Apesar de tudo, Isabella suportava o silêncio que a envolvia, guardando seus sentimentos para si mesma, como se fossem tesouros proibidos. Suas lágrimas, raras e secretas, eram derramadas apenas na solidão de seu quarto modesto, ou sob a sombra protetora da velha figueira, seu refúgio silencioso. Ali, em seus momentos furtivos, ela sonhava com um mundo onde pudesse ser mais do que uma esposa e mãe resignada — uma mulher livre para sonhar, escolher e viver plenamente.

Mas naquele tempo e lugar, para mulheres como Isabella, a sobrevivência exigia resistência silenciosa. Cada dia vivido, cada tarefa cumprida, era uma pequena vitória contra um destino que parecia imutável. E, mesmo sem demonstrar, a força que a mantinha de pé vinha dessa resistência invisível, desse desejo oculto de um futuro melhor — um futuro que ela esperava, um dia, alcançar. Às vezes, durante breves momentos de pausa em meio às inúmeras tarefas que consumiam seus dias, Isabella se detinha à janela da cozinha simples, deixando o olhar vagar além das colinas ondulantes que cercavam Castelverde. O horizonte, pintado por vinhedos e bosques, parecia guardar segredos e promessas de uma vida diferente — uma vida onde ela pudesse respirar livremente, escolher seu caminho e, sobretudo, ser dona de si mesma. Nessas horas, sua mente se preenchia de sonhos silenciosos, quase proibidos. Imaginava-se trabalhando, não apenas para os outros, mas para si mesma; ganhando um dinheiro que fosse fruto do próprio esforço, capaz de garantir não apenas a sobrevivência, mas a liberdade de decidir. Pensava em ter pequenos objetos de valor, talvez um pedaço de terra para cultivar, ou até mesmo um pequeno comércio na vila onde pudesse vender produtos feitos por suas mãos. Mas, por mais que esses desejos surgissem, Isabella conhecia bem os limites impostos pela realidade em que vivia. Para uma mulher de sua condição e época, tais aspirações eram encaradas como irreais, até mesmo perigosas. A ideia de ganhar dinheiro próprio não era apenas inatingível, mas considerada uma ruptura com a ordem social estabelecida — uma ordem onde ela dependia inteiramente de Giuseppe, seu marido, e, indiretamente, dos homens da vila. Pensar em independência era como desafiar uma regra invisível, mas absoluta, que ditava que as mulheres deviam se submeter e confiar na proteção masculina, mesmo que essa proteção fosse acompanhada de severidade e silêncio. Qualquer tentativa de questionar essa estrutura era vista como uma afronta, um desrespeito à tradição e àquilo que a sociedade considerava natural.

Assim, Isabella guardava seus sonhos no íntimo do coração, como quem protege uma chama frágil do vento impiedoso. Ela sabia que a liberdade que desejava não estava ao seu alcance, mas também não podia deixar de desejá-la. Era um segredo seu, um anseio silencioso que dava sentido às longas jornadas de trabalho e à rotina pesada — a esperança de que, um dia, as coisas poderiam ser diferentes, mesmo que esse dia estivesse distante e oculto no futuro. Enquanto a luz do sol se filtrava pela janela, tocando seu rosto cansado, Isabella fechava os olhos por um instante e, só por alguns segundos, permitia-se acreditar que aquele mundo além das colinas poderia, algum dia, ser seu.


A luta silenciosa

Apesar de todas as dificuldades e limitações que a cercavam, Isabella cultivava uma força interior que a tornava resiliente diante das adversidades diárias. Em meio ao cansaço físico e à opressão silenciosa, encontrou uma forma de resistência sutil, mas poderosa: a educação dos seus filhos. Naquele tempo, para as famílias camponesas como a sua, o aprendizado formal era um luxo raramente considerado essencial, especialmente para as meninas, cuja vida parecia destinada a repetir o ciclo de submissão e trabalho pesado das mães. Porém, Isabella não aceitou essa realidade como inevitável. Com muita determinação, fez da alfabetização de sua filha mais velha, Lucia, um ato quase revolucionário, um gesto de esperança que transcendeu as limitações da época. Ensinar a menina a ler e escrever tornou-se para Isabella uma pequena chama de liberdade, um modo de plantar no coração da filha a possibilidade de um futuro diferente daquele que tantas mulheres haviam vivido. Em voz baixa, quase como um segredo sagrado, dizia para Lucia: “Um dia, você poderá escolher seu destino.” Essas palavras, carregadas de um significado profundo, eram muito mais do que um simples ensinamento; eram uma promessa silenciosa, um sonho que Isabella ousava nutrir apesar das circunstâncias. Ela sabia que o simples ato de dar à filha o poder da escrita era abrir uma janela para um mundo onde as mulheres poderiam ter voz, autonomia e talvez até mesmo o direito de decidir por si mesmas. Isabella dedicava longas horas para que Lucia aprendesse as letras, pegando pedaços de carvão e riscando palavras em tábuas de madeira ou em folhas amareladas que conseguia guardar. Era um esforço quase clandestino, pois a sociedade ao seu redor não valorizava nem incentivava a educação feminina, vendo-a como desnecessária para o papel tradicional de esposa e mãe. Mas para Isabella, aquele gesto humilde era uma semente plantada no terreno árido da tradição, destinada a florescer numa geração que pudesse respirar o ar da liberdade. Seu olhar carregava uma esperança firme, e mesmo em silêncio, sua alma lutava para que a história da opressão começasse a ser reescrita — uma letra de cada vez, um sonho por vez.


O legado de Isabella

Isabella viveu até os 54 anos, partindo em 1792 após enfrentar uma prolongada e debilitante febre que varreu sua região, deixando um rastro de sofrimento entre as famílias camponesas. Sua existência jamais foi registrada em grandes livros de história ou celebrada em narrativas oficiais, mas o legado que deixou foi profundo e duradouro, gravado no coração daqueles que a conheceram e, principalmente, na vida de sua filha Lucia. Ela, incentivada desde a infância pela determinação e coragem de sua mãe, cresceu com um espírito diferente do que o costume exigia. Tornou-se uma das primeiras mulheres da vila a conquistar sua independência econômica, trabalhando como costureira autônoma — uma verdadeira raridade para uma mulher de Castelverde naquela época. Ao costurar vestidos, remendar roupas e fazer bordados, Lucia não apenas sustentava sua família, mas também carregava consigo o sonho silencioso que Isabella plantou: o desejo de uma vida com mais liberdade e escolhas. Embora Isabella não tenha vivido para testemunhar as profundas transformações sociais e econômicas que a Revolução Industrial traria no século seguinte, sua vida foi uma semente lançada em solo fértil. A persistência com que ensinou sua filha a ler e escrever, sua coragem em desafiar as normas impostas e sua luta silenciosa por um futuro melhor foram pedras fundamentais para a mudança de mentalidade que lentamente começou a brotar na região. A história daquela mulher simples de Castelverde é um lembrete de que grandes revoluções nem sempre nascem em palácios ou salões, mas sim nas pequenas batalhas travadas em casas modestas, entre vinhedos e colinas. O impacto de Isabella reverberou para além de sua própria existência, ajudando a moldar não apenas o destino de sua família, mas também contribuindo para a lenta, porém irrevogável, emancipação das mulheres que viriam depois dela. Seu nome pode ter sido esquecido pelo tempo, mas sua força e coragem ecoam na história silenciosa das vidas transformadas por seus gestos de esperança e resistência.

Nota do Autor

Isabella di Castelverde: Uma Mulher do Século XVIII é, acima de tudo, um convite ao leitor para adentrar um universo complexo e fascinante: o da mulher camponesa de Cremona, na Itália, no século XVIII. Este trabalho nasce do anseio de explorar, com profundidade e empatia, as camadas ocultas da vida feminina em uma sociedade marcada pelas estruturas rígidas de uma economia agrária, pela opressão patriarcal e pelas contradições de uma época que oscilava entre o conservadorismo do Antigo Regime e os ventos renovadores do Iluminismo.

Ao longo das páginas, Isabella emerge como um arquétipo das muitas mulheres que viveram à sombra de poderes maiores que suas próprias vontades, mas que, ainda assim, encontraram formas de resistir, sonhar e lutar por pequenos e significativos gestos de emancipação. Não se trata apenas de uma história de sobrevivência; é um relato de desejos contidos, de confrontos velados, de um clamor silencioso por autonomia em uma época em que o destino da mulher camponesa parecia estar irremediavelmente atado à terra e às convenções sociais.

Para compor este retrato, empreendi um mergulho profundo nas fontes históricas, antropológicas e culturais, na tentativa de reconstruir, com fidelidade e sensibilidade, os dilemas e as nuances do cotidiano feminino em um contexto de pobreza, submissão e dependência. A voz de Isabella ecoa não apenas os dramas da vida rural – marcada pela dureza do trabalho, pela precariedade e pela sujeição aos caprichos da natureza –, mas também as aspirações por um mundo mais amplo, onde sonhos de amor, liberdade e conhecimento pudessem se realizar.

Este livro, portanto, é mais do que uma narrativa histórica; é um diálogo entre passado e presente. É uma reflexão sobre as forças que moldam as vidas humanas – gênero, classe, cultura – e sobre como, em meio às adversidades, a experiência feminina revela-se capaz de ressignificar as limitações impostas, criando novas formas de existência e resistência.

Espero que esta obra, além de informar e emocionar, inspire reflexões sobre as dinâmicas sociais e os desafios que, embora enraizados no passado, ainda encontram ecos em nosso tempo. A história de Isabella é, de certo modo, a história de todas as mulheres que ousaram questionar o lugar que lhes foi atribuído, abrindo espaço para imaginar um futuro diferente.

Com respeito à memória dessas vidas silenciadas, entrego-lhes este relato. Que ele possa tocar o espírito do leitor com a mesma intensidade com que moldou o meu durante sua criação.

Com gratidão,
Dr. Piazzetta

segunda-feira, 17 de março de 2025

A Jornada dos Irmãos Morette: Italianos que Forjaram um Legado em São Paulo



A Jornada dos Irmãos Morette: 
Italianos que Forjaram um Legado em São Paulo

Em 1878, no final do século XIX, em uma pequena vila nas planícies de Mantova, na Lombardia, Itália, os irmãos Giuseppe e Angelo  Morette passavam seus dias ajudando os pais no cultivo da pequena propriedade rural da família. A vida apesar de tranquila, não dava sinais de  trazer melhorias nas condições financeiras daqueles pobres agricultores. Apesar do pai ser proprietário do pequeno terreno, herdado dos seus antepassados, e o fato de estarem financeiramente muito melhores que a maioria dos outros habitantes do lugar, não os faziam imunes ao que estava acontecendo em todo o país, especialmente no período que se seguiu a unificação da Itália em um único reino. O crescente aumento dos preços dos produtos que precisavam adquirir, impulsionados por uma inflação crônica, somados a criação de novos impostos e,  principalmente, pela concorrência com os grãos importados, tornavam insustentável a continuação daquele trabalho na agricultura, já considerado sem futuro para os pequenos produtores. As frustrações seguidas de safras, devido alterações climáticas, agravavam a situação na zona rural também na Lombardia. Inúmeros outros produtores rurais, até mais abastados que eles, já tinham vendido as suas propriedades e partido em emigração para outros países, tanto vizinhos da Itália como, principalmente, para a distante América. O desejo de melhorar de vida, de fugir daquela falta de perspectiva de futuro e o desejo de aventura  estava gravado em seus corações.
Em 1893, movidos por histórias de sucesso no Brasil contadas pelas cartas que chegavam dos emigrantes, Giuseppe, que era o irmão mais velho, e Angelo, o caçula, decidiram embarcar em uma jornada incerta. Com a benção dos pais deixaram para trás sua família, esperando que a promessa de terras distantes e oportunidades os recompensasse. Para os pais asseguraram que assim que se estabelecessem no Brasil mandariam dinheiro para as passagens para eles os encontrar.
Depois de uma longa e tumultuada viagem, que durou um mês, chegaram no interior de São Paulo, onde começaram a vida em uma terra estrangeira. Aos poucos, com tenacidade foram construindo suas vidas em solo brasileiro. Com o pouco dinheiro que o pai lhes deu Giuseppe se aventurou no comércio local, abrindo uma pequena loja para venda de secos e molhados  que se tornou uma referência na cidade. Mais tarde ele também investiu em uma olaria, fabricando tijolos e telhas para atender  as necessidades de uma cidade em constante crescimento.
Angelo, por outro lado, viu uma oportunidade na criação suínos que os engordava e vendia para uma fábrica de salames e banha de uma cidade vizinha. Suas atividades muito contribuíram  para o desenvolvimento da economia local. Depois de cinco anos, como tinham prometido, mandaram dinheiro para os pais que então passaram a morar no Brasil.
Em 1913, Giuseppe, agora casado e pai de seis filhos, decidiu fazer uma viagem de volta à Itália para rever parentes e amigos que ainda lá moravam. Infelizmente, sua visita coincidiu com o início da Primeira Guerra Mundial, e ele foi recrutado, deixando para trás sua família e seu comércio. Só conseguiu retornar ao Brasil em 1919, onde foi recebido com alegria pela esposa e filhos, incluindo o seu sétimo filho, que recebeu por isso o nome de Settimo, que ainda não conhecia.
Nos anos que se seguiram, Giuseppe fez várias viagens à Itália, uma das quais acompanhado pelo filho mais velho Attilio, que permaneceu na península por três anos, absorvendo a cultura de seus ancestrais.
Infelizmente, em 1930, uma tragédia abalou a família Morette quando Angelo faleceu prematuramente, deixando para trás sua esposa e sete filhos. A família se uniu para superar a adversidade, mantendo o legado de trabalho árduo e perseverança deixado por Angelo.
Hoje, os descendentes dos irmãos Giuseppe e Angelo Morette estão espalhados em diversas cidades dos estados de São Paulo e Paraná, preservando as tradições e histórias de seus antepassados italianos, que deixaram sua marca na história da região.






domingo, 18 de agosto de 2024

Sonhos em Terra Nova: A Jornada dos Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul



No final do século XIX, a Itália, então um reino recém unificado, estava marcada pela diminuição drástica de trabalho, pobreza e pelo desespero. A falta de empregos no campo trazia para as pequenas cidades levas de famílias em busca de uma vida nova que o país, por falta de recursos, infelizmente, não podia oferecer. Trento, Vêneto e Lombardia eram regiões particularmente afetadas pela crise econômica que assolava o país. As terras eram secas em algumas zonas e sofriam com inundações em outras, sendo a fome um inimigo constante, especialmente nas zonas montanhosas, acostumadas  a séculos com essas dificuldades. Entre as aldeias e vilarejos, a esperança de melhora era uma mercadoria escassa. No entanto, o rumor de uma terra prometida, do outro lado do oceano, começava a se espalhar como um bálsamo para aqueles que lutavam pela sobrevivência.

Giovanni e Maria, pequenos trabalhadores rurais, moradores em uma vila de Trento, viviam com seus três filhos – Carlo, Lucia e Antonio – em uma velha e precária casa, que a família ja não tinha recursos para os devidos reparos, mas, por outro lado, cheia de sonhos. Giovanni, como agricultor lutava contra a terra ingrata, a inclemência do clima e os preços baixos dos grãos que colhia e dos poucos produtos que conseguia obter, sentia agora que sua família estava à beira do desespero. Ao ouvir histórias sobre a vastidão das terras brasileiras e as oportunidades que se abriam no Novo Mundo, decidiu que era hora de buscar um futuro melhor. Com apenas alguns poucos bens e muito mais esperança, a família se preparou para deixar para trás o que conheciam e partir rumo ao desconhecido.

Enquanto isso, em Treviso, Elisa e seu pai, Giuseppe, estavam imersos em um sentimento de perda e esperança. Giuseppe, um viúvo marcado pela dor da perda recente de sua esposa, viu na emigração uma chance de dar a sua filha uma vida que ele não podia mais proporcionar na Itália. Eles embarcaram em um navio, cheios de expectativas e com o coração pesado pela despedida, rumo ao Brasil.

Na Lombardia, a situação era igualmente desesperadora. Luigi, um jovem artesão, viu a emigração como a única saída para mudar sua sorte e garantir um futuro melhor para seus irmãos mais novos. O navio que os transportava estava cheio de pessoas como ele – homens e mulheres que, carregavam consigo sonhos e esperanças.

A travessia para o Brasil não foi fácil. O oceano, imenso e imprevisível, desafiou a resistência dos imigrantes com tempestades e doenças. A comida era escassa e as condições de vida, precárias. No entanto, a fé e a determinação mantiveram todos em frente. A promessa de um novo começo estava sempre presente, um farol na escuridão das dificuldades.

Quando os navios finalmente chegaram ao Brasil, a visão que se apresentava era muito diferente daquilo que haviam imaginado. Os portos estavam abarrotados de pessoas, a vegetação era densa e o calor, abafante. Os imigrantes foram distribuídos em várias regiões, mas foi no Rio Grande do Sul que encontraram a maior concentração de novas colônias.

As colônias de Caxias do Sul, Dona Isabel e Conde d'Eu foram fundadas com o propósito de oferecer terras e condições para que os imigrantes pudessem prosperar. No entanto, a adaptação à nova vida não foi fácil. As terras eram vastas e selvagens, e a infraestrutura era quase inexistente. A comunicação com o mundo exterior era limitada e os primeiros anos foram marcados por um intenso esforço para transformar a mata virgem em campos férteis.

Giovanni e Maria enfrentaram o desafio com coragem. A família começou a desbravar a terra, com Giovanni trabalhando a terra e Maria cuidando da casa e dos filhos, além de ajudar o marido no pesado trabalho da roça. As dificuldades eram muitas, mas o trabalho árduo e a esperança de uma colheita promissora eram a motivação diária. O clima quente e as doenças desconhecidas representavam desafios constantes, mas a perseverança da família era inabalável.

Elisa e Giuseppe por sua vez, lutaram para se estabelecer em sua nova casa. Encontraram apoio em outros imigrantes e, juntos lentamente, foram formando uma pequena comunidade. Giuseppe usou suas habilidades agrícolas para cultivar a terra, enquanto Elisa cuidava da casa e procurava fazer amizade com os vizinhos para se adaptar à vida nas colônias.

Luigi e seus amigos enfrentaram desafios semelhantes. A terra era rica, mas o trabalho era intenso. Sua aptidão na construção foi útil, encontrando nesse setor o se ganha pão. As condições em que viviam eram duras e a grande distância entre as famílias aumentava o sentimento de isolamento. No entanto, a camaradagem entre os imigrantes ajudava a superar as dificuldades. Além do trabalho na construção, se dedicava com afinco na pequena roça e a primeira colheita foi uma grande conquista. O sentimento de realização começou a brotar, mesmo diante das adversidades.

Com o tempo, os imigrantes italianos começaram a ver os frutos de seu trabalho. As colônias prosperaram, e as terras, uma vez inóspitas, transformaram-se em áreas férteis e produtivas. As dificuldades iniciais foram superadas pela determinação e pelo espírito de comunidade. Os laços entre os imigrantes se fortaleceram, e a vida nas colônias tornou-se cada vez mais gratificante.

O legado dos imigrantes italianos no Rio Grande do Sul é uma história de resiliência e superação. Eles chegaram em busca de uma vida melhor e, através de trabalho árduo e determinação, conseguiram transformar suas vidas e a terra em que estabeleceram suas raízes. Hoje, suas contribuições são celebradas e a influência italiana é uma parte fundamental da cultura e da história da região. A saga dos imigrantes italianos é um testemunho poderoso do espírito humano e da capacidade de transformar desafios em conquistas duradouras.


terça-feira, 26 de março de 2024

Jornada de uma Família de Imigrantes da Lombardia aos Cafezais de São Paulo

 


Girolamo Bianchetto e Maddalena Bresciano, ambos nascidos em pequenas cidades do norte da Itália, uniram-se em matrimônio com a promessa de enfrentar juntos os desafios da vida. Girolamo, nasceu em 1829 em Mozzanica, província de Bergamo, vinha de uma família de agricultores meeiros, enquanto Maddalena, nascida em 1834 em Castiglione degli Stiviere, província de Mantova, cresceu também em um ambiente rural, onde seu pai trabalhava em uma pequena propriedade da família, aprendendo desde cedo o valor do trabalho árduo e da união familiar. 
Juntos, eles deram vida a uma prole numerosa: Giacomo, Juditha, Isabella, Gioachino, Bartolomeo e Pietro. Apesar das dificuldades financeiras, a família Bianchetto era unida e cheia de esperança. Porém, as precárias condições de vida na Itália, unificada apenas dez anos antes, o sonho por uma vida melhor para os filhos os levou a tomar uma decisão ousada: emigrar para o Brasil. A emigração italiana transoceanica estava ainda dando os primeiros passos mais consistentes, para se transformar, já nas décadas seguintes, em um verdadeiro êxodo, quando milhões de italianos do norte ao sul da península abandonaram o país.
No ano de 1877, Girolamo Bianchetto e Maddalena Bresciano, juntamente com seus seis filhos e os avós paternos, Giacomo Bianchetto e Amabile Ceratto, nascida em Monzambano, embarcaram em Genova no vapor Sud America em direção ao Rio de Janeiro, deixando para trás sua terra natal, seus amigos e parentes, em busca de oportunidades além-mar.
A jornada foi árdua, com dias de travessia tumultuada pelo oceano revolto por fortes ventos, enfrentando doenças e desconfortos a bordo. No entanto, a esperança de uma vida melhor os impulsionava adiante. Após desembarcarem no Brasil, seguiram para a Hospedaria dos Imigrantes no Rio de Janeiro, onde foram acolhidos e aguardaram por alguns dias antes de continuar mais uma viagem de navio até Santos, no estado de São Paulo.
Do Porto de Santos, os imigrantes foram recebidos e encaminhados por um representante da Fazenda Santa Marta até o Vale do Paraíba. Eles e outras famílias que viajaram juntas, tinham sido contratados ainda na Itália com a promessa de viagem gratuita e emprego nas vastas plantações de café da região. A vida na fazenda era dura, mais difícil até do que aquela na Itália, com longas jornadas de trabalho ao sol escaldante e condições precárias de moradia. Foram abrigados em antigos alojamentos usados pelos escravos até alguns anos antes, uns casebres de madeira sem pintura, tendo algumas paredes internas de barro e como piso somente terra batida. Alguns poucos e tocos móveis completavam a mobília do pobre casebre. Infelizmente, dois anos após a chegada, o patriarca nono Giacomo veio a falecer consequência dos ferimentos sofridos em um trágico acidente de trabalho, deixando a família devastada.
Após dez anos de incansável batalha e resiliência, a família finalmente conquistou economias suficientes para adquirir um modesto lote de terra na periferia da pequena cidade de São José dos Campos, a mais próxima da fazenda. Renovados em sua determinação, após quitarem todas as dividas com o patrão, deixaram para trás os campos da fazenda e deram início à construção de uma nova vida em seu próprio pedaço de terra. Girolamo encontrou emprego em uma olaria local, um trabalho que ele já conhecia da Itália, enquanto Maddalena assumia os afazeres domésticos, cuidando dos filhos e cultivando uma pequena horta, contando com a ajuda da nona Amabile. Os filhos mais velhos, Giacomo, Juditha e Isabella, prontamente se inseriram nos empregos oferecidos pelas fábricas e comércio locais, ao passo que os mais jovens ainda continuavam dedicados aos estudos, nutrindo os sonhos de um porvir mais auspicioso. Apesar dos inúmeros obstáculos, a família Bianchetto permaneceu coesa, encarando em conjunto cada desafio que a vida lhes impunha.

Obs. Os nomes dos personagens desse conto são fictícios