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segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Os Ecos de um Destino

 


Os Ecos de um Destino 


Capítulo 1: A Partida

San Gimignano estava mergulhada em uma quietude densa, como se a própria cidade medieval, com suas torres altivas e vielas estreitas, soubesse do peso da decisão que pairava sobre a família de Domenico. A notícia foi dada numa manhã fria de outono, enquanto o sol, tímido, mal conseguia atravessar a névoa que cobria os campos. Domenico, filho único de um pai camponês e uma mãe tecelã, havia crescido à sombra das dificuldades. A terra magra que seu pai cultivava mal sustentava a família, e os fios que sua mãe entrelaçava noite adentro raramente geravam o suficiente para pagar as dívidas acumuladas. Desde pequeno, ele ouvia os viajantes que passavam pela região falando do Brasil – "terra de oportunidades", diziam, onde a terra era fértil e o trabalho recompensado com fartura. Por anos, essas histórias alimentaram sua imaginação e, aos 21 anos, impelido pela fome que apertava o estômago e pelas dívidas que esmagavam o espírito, Domenico finalmente decidiu partir. Seu destino seria Campinas, no interior de São Paulo, onde parentes distantes haviam se estabelecido como colonos. A decisão foi um golpe para a família. Angela, a irmã caçula de apenas 17 anos, foi a primeira a se opor, protestando com veemência. Apesar de sua juventude, a responsabilidade de cuidar da pequena propriedade familiar agora recaía sobre seus ombros. Domenico tentou acalmá-la, prometendo que enviaria dinheiro regularmente e que escreveria cartas para manter viva a conexão com o lar. Contudo, nem mesmo suas palavras gentis conseguiam conter as lágrimas que corriam pelo rosto de Angela, revelando o medo de perder o irmão e a insegurança sobre o futuro. Brigida, a mãe de Domenico, permaneceu em silêncio durante a maior parte da discussão. Apenas seus olhos marejados denunciavam a tempestade que se formava em seu coração. Quando finalmente falou, sua voz tremia como uma folha ao vento. "Você promete que voltará, Domenico? Promete que não nos esquecerá?" Ele respondeu com convicção, mas no fundo Brigida temia que aquelas palavras fossem levadas pelo vento, tal como as promessas de tantos outros jovens que haviam partido e nunca mais retornaram. A despedida na estação foi marcada por um misto de esperança e desolação. Domenico carregava uma pequena mala com seus poucos pertences: uma muda de roupas, um pedaço de pão e o medalhão de São Francisco que sua mãe lhe entregara com a bênção de um padre local. Angela segurava sua mão com força, como se pudesse impedir a separação com um último gesto de amor fraternal. Já Brigida, envolta em um xale, olhava o trem que se aproximava com um misto de temor e resignação. Quando finalmente o apito ecoou, sinalizando a partida, Domenico subiu a bordo, acenando para a família até que suas figuras se tornassem apenas sombras na distância. Enquanto o trem cortava os campos, Domenico olhou pela janela, sentindo o peso da responsabilidade que agora carregava. O Brasil, outrora um sonho dourado, agora era um desafio real, repleto de incertezas. E, embora suas palavras houvessem tranquilizado sua mãe e irmã, ele sabia que, no fundo, a promessa de retorno talvez fosse uma ilusão – algo que só o tempo poderia confirmar.

Capítulo 2: O Novo Mundo

Domenico desembarcou no porto de Santos após uma exaustiva travessia de 30 dias pelo Atlântico, marcada por tempestades, ansiedade e um estranho misto de esperança e medo. Ao pisar em solo brasileiro, foi imediatamente golpeado pelo calor úmido que parecia envolver cada pedaço de pele, um contraste brutal ao clima ameno da Toscana que ele deixara para trás. A imponência da natureza também o assombrou: palmeiras altíssimas, montanhas cobertas de verde exuberante e pássaros de cores que ele jamais imaginara existir. Contudo, o que mais o impactou foi o caos das ruas de Santos. A cidade fervilhava de pessoas de todas as partes do mundo, gritos em línguas desconhecidas, charretes cruzando ruas enlameadas e mercadores oferecendo de tudo, desde frutas tropicais até ferramentas rudimentares. Na primeira carta que enviou à família, escrita sob a luz trêmula de um lampião em uma hospedaria modesta, Domenico tentou descrever a experiência com um misto de fascínio e cautela. "É um mundo tão diferente, Angela," escreveu. "A terra é vermelha como o fogo, e o céu parece arder com o calor do sol. Aqui, tudo é maior, mais intenso, mas também mais confuso." Ele mencionou a gentileza de outros imigrantes que conhecera e a promessa de trabalho nas plantações de café do interior, embora não ocultasse o desconforto de estar tão longe de casa. Após alguns dias em Santos, Domenico embarcou em um trem para Campinas, deixando para trás o tumulto do porto e adentrando os campos que logo se tornariam sua nova realidade. O cheiro de terra e o som das cigarras acompanhavam o balanço do vagão, enquanto ele tentava imaginar a vida que o aguardava. Chegando à cidade, foi rapidamente contratado para trabalhar em uma das muitas fazendas de café que espalhavam-se pela região. As cartas seguintes pintavam um quadro mais sombrio. Domenico descreveu a dureza da vida nos cafezais com uma sinceridade que transparecia até nas palavras mais cuidadosas. O trabalho era extenuante; de sol a sol, ele e outros imigrantes arrancavam ervas daninhas, carregavam sacas de café e colhiam grãos sob um calor abrasador. Os fazendeiros, donos de vastas propriedades, frequentemente exploravam os trabalhadores, impondo dívidas que os prendiam a condições quase de servidão. "Há dias em que sinto como se fosse um dos grãos que esmago com as mãos, sufocado pela dureza da vida aqui," confessou em uma das cartas. Ainda assim, Domenico mantinha um fio de esperança. Ele via o Brasil como uma oportunidade que, embora dura, oferecia a chance de construir algo que jamais seria possível na Itália. Nas noites de domingo, quando o trabalho era suspenso, ele descrevia os momentos de alívio, reunido com outros italianos em improvisados serões. As canções da terra natal ecoavam pelos alojamentos, enchendo os corações de nostalgia. Domenico cantava com uma voz trêmula, as letras carregadas de saudade, enquanto imaginava Angela cuidando da propriedade da família e sua mãe, Brigida, acendendo velas para protegê-lo. Porém, nas entrelinhas de cada carta, Angela sentia a solidão que se infiltrava na vida do irmão. Ele mencionava com frequência o consolo de receber suas respostas, guardando-as como um tesouro raro em meio ao cansaço diário. "É como se, ao ler suas palavras, eu pudesse sentir o cheiro do trigo dos nossos campos e ouvir o som dos sinos de San Gimignano," escreveu em um momento de emoção. E, embora Domenico tentasse parecer forte, Angela sabia que as noites no Brasil eram longas e frias, mesmo sob o calor tropical, para um jovem que carregava nos ombros o peso de um futuro incerto e a saudade de um lar distante.

Capítulo 3: Laços e Conflitos

Com o passar dos anos, Domenico ascendeu à posição de capataz na fazenda de café, um feito notável para um jovem imigrante que começara sua jornada como simples colhedor. O novo cargo lhe trouxe algum alívio financeiro, permitindo que enviasse remessas regulares à família em San Gimignano. Contudo, a prosperidade relativa não apagava as cicatrizes de uma vida de labuta incessante. As responsabilidades acumulavam-se, e a pressão de comandar outros trabalhadores, muitos deles tão exaustos e frustrados quanto ele, começou a pesar. Nas cartas enviadas à família, a escrita de Domenico tornou-se cada vez mais carregada de conselhos práticos e, por vezes, de um tom quase imperativo. Ele insistia que Angela deveria gerir a pequena propriedade com eficiência, vendendo ferramentas e terras marginais para pagar as dívidas que ainda assombravam a família. "Angela, não podemos nos apegar a pedaços de terra que não nos dão retorno," escreveu em uma de suas cartas, numa tentativa de convencê-la. "O futuro da nossa família depende de escolhas racionais, não de sentimentalismos." Para Angela, contudo, o terreno familiar era muito mais do que um ativo financeiro. A casa, os campos áridos e as oliveiras que resistiam teimosamente ao tempo eram os últimos vestígios tangíveis de sua conexão com Domenico. Ela temia que vender qualquer parte da propriedade fosse como apagar a memória do irmão e do passado compartilhado. Em sua resposta, sua resistência transparecia em palavras cuidadosas, mas firmes. "Domenico, esta casa é o coração da nossa família. Vender qualquer parte dela seria como perder uma parte de nós mesmos." Com o tempo, os laços que antes uniam os irmãos começaram a se tensionar. As cartas, que outrora eram fontes de conforto mútuo, passaram a refletir uma relação em constante oscilação entre afeto e conflito. Domenico, por um lado, tentava proteger a família à distância, mas seu tom tornou-se, muitas vezes, autoritário, marcado pela frustração de sentir-se impotente. Angela, por outro lado, resistia ao que via como uma tentativa de controle sobre suas decisões, mesmo sabendo que o irmão agia com as melhores intenções. As correspondências alternavam entre momentos de ternura e recriminações veladas. Em uma das cartas, Domenico desabafou: "Angela, não posso trabalhar aqui como um burro de carga e assistir vocês se afogarem nas mesmas dívidas que me forçaram a partir. Façam o que for necessário para se manterem de pé." Em resposta, Angela escreveu: "Domenico, seu esforço é admirável, mas esta é a nossa casa. Não posso abandoná-la tão facilmente quanto você sugere. Cada pedra desta propriedade tem um pedaço de nossa história." O abismo entre os dois parecia crescer a cada troca de palavras. Domenico via-se isolado, não apenas fisicamente, mas emocionalmente, enquanto Angela se sentia pressionada e incompreendida. Apesar disso, o amor fraternal ainda pulsava nas entrelinhas, nos momentos em que Domenico perguntava pelo bem-estar da mãe ou Angela mencionava o quanto sentia saudades de suas canções de domingo. Eram lembranças que serviam como frágeis pontes entre duas vidas cada vez mais distintas, mas ainda ligadas por raízes profundas e indestrutíveis.

Capítulo 4: Um Amor no Brasil

Domenico encontrou consolo em Emilia, uma jovem imigrante da Calábria que trabalhava na mesma fazenda. Emilia era uma mulher de olhar doce e temperamento forte, características que conquistaram Domenico em meio aos dias árduos e solitários no Brasil. O relacionamento floresceu rapidamente, como uma flor que teima em crescer em solo pedregoso. Depois de alguns meses de convivência, decidiram se casar. A cerimônia foi simples, realizada na capela da fazenda, com poucos amigos e colegas como testemunhas. Domenico descreveu o dia como um raio de sol em meio às nuvens pesadas que pairavam sobre sua vida de imigrante. Quando Angela recebeu a notícia, sua resposta misturava emoções conflitantes. Ela expressou alegria sincera pelo irmão, mas não pôde esconder uma ponta de inveja que transparecia em suas palavras. "Domenico, fico feliz que tenha encontrado alguém para compartilhar sua jornada, mas confesso que, aqui, os dias são cada vez mais solitários. Gostaria de ter a mesma sorte." Angela sentia o peso de estar sozinha na Itália, carregando a responsabilidade de manter a casa e cuidar de sua mãe envelhecida. Para ela, a notícia do casamento era um lembrete de tudo o que ainda lhe faltava. Poucos anos depois, uma nova carta trouxe uma notícia que iluminou os dias de Angela: o nascimento do primeiro filho de Domenico, Pietro. Ele descreveu o momento com detalhes emocionados, desde o choro forte do bebê ao nascer até o brilho de orgulho nos olhos de Emilia. Domenico escreveu: "Angela, nunca pensei que seria possível sentir tamanha alegria depois de tantos anos de dificuldades. Pietro é pequeno, mas já carrega em si a esperança de um futuro melhor." Ao ler a carta, Angela sentiu algo raro e precioso: uma felicidade genuína pelas conquistas do irmão. Pela primeira vez, as dificuldades que os separavam pareceram menos importantes do que o vínculo que os unia. Ela respondeu com entusiasmo, pedindo mais detalhes sobre o sobrinho e expressando sua esperança de conhecê-lo um dia. "Domenico, ao ler suas palavras, quase posso ouvir o riso de Pietro e ver os olhos brilhantes de Emilia. Prometa-me que, um dia, eu também poderei abraçá-lo." Domenico respondeu com uma promessa que ele próprio não sabia como cumprir: "Angela, um dia você conhecerá Pietro. Sei que a vida nos mantém separados, mas esse encontro ainda acontecerá. Até lá, guardarei cada uma de suas cartas para que ele saiba como sua tia, mesmo à distância, sempre foi parte de sua história." Apesar das dificuldades, essa troca trouxe um alento aos dois irmãos. Para Domenico, era uma forma de manter viva a conexão com sua origem; para Angela, uma fagulha de esperança em meio à solidão. Pietro, ainda sem compreender seu papel, já unia dois mundos que lutavam para permanecer conectados, mesmo separados por um oceano.

Capítulo 5: O Retorno Impossível

Nos anos seguintes, as cartas entre Domenico e Angela assumiram um tom mais melancólico, refletindo o peso das décadas que haviam passado. Domenico, agora com uma família formada, relatava os desafios de criar os filhos em uma terra tão diferente de suas raízes. Ele falava da luta constante contra a instabilidade financeira e as dificuldades de preservar as tradições italianas em um ambiente que, embora oferecesse oportunidades, também exigia sacrifícios culturais e emocionais. "Angela," ele escreveu certa vez, "às vezes me pergunto se meus filhos compreenderão o que significa ser italiano. Tento ensinar-lhes nossas canções, mas suas vozes já carregam o sotaque desta nova terra." Enquanto isso, Angela enfrentava suas próprias batalhas na Itália. A propriedade da família, que ela cuidara com tanto zelo, tornou-se objeto de disputa entre parentes gananciosos que questionavam sua posse. Sentindo-se acuada e traída, ela encontrou nas cartas de Domenico um misto de conforto e frustração. Embora ele tentasse mediar os conflitos com conselhos e palavras de apoio, a distância tornava suas intervenções limitadas. "Domenico," Angela escreveu em resposta, "sua voz ainda é uma âncora para mim, mas há dias em que sinto que estou afundando. A terra que você tanto lutou para salvar está se tornando uma fonte de dor." Aos 60 anos, Domenico começou a sentir os efeitos da idade e das longas décadas de trabalho árduo. A febre amarela, que varria as colônias do interior paulista, não poupou sua família. Ele contraiu a doença em um surto devastador que ceifava vidas sem distinção. Fragilizado, ele sabia que seu tempo estava se esgotando. Incapaz de escrever, pediu a Emilia que transcrevesse sua última mensagem para Angela, carregada de emoção e despedida:

"Angela, 

Mesmo tão distante, nunca deixei de sentir sua presença ao meu lado. As palavras que trocamos ao longo dos anos foram os fios que mantiveram nossos mundos unidos, mesmo quando a vida nos separou. Sei que não cumpri minha promessa de voltar à Itália, mas espero que você compreenda: meu coração nunca partiu de verdade. Se meu corpo não puder mais retornar à nossa terra, saiba que minha alma já está ao seu lado. Cada oliveira, cada pedra daquele solo guarda um pedaço de mim. Cuide do que resta de nossa história e lembre-se de que sempre estivemos juntos, mesmo separados por um oceano." Quando Angela recebeu a carta, sentiu-se consumida por um misto de dor e gratidão. Sabia que aquelas palavras eram um adeus, mas também uma reafirmação do vínculo inquebrável entre os dois. No campo onde cresceu, plantou uma nova oliveira em memória do irmão, como um símbolo de que, apesar da distância e do tempo, as raízes que os uniam continuavam a crescer.

Epílogo

Domenico faleceu em 1938, nos arredores de Campinas, cercado por sua família brasileira, mas com o coração ainda enraizado na Itália que nunca mais viu. Emilia, seus filhos e netos cuidaram para que sua história não fosse esquecida, preservando suas cartas e as memórias dos sacrifícios que ele fizera para lhes proporcionar uma vida melhor. Domenico partiu em paz, mas deixando para trás um legado de saudade e resiliência. Angela, na Itália, sentiu a perda de forma profunda. Embora soubesse que aquele dia chegaria, a notícia trouxe uma dor que não poderia ser descrita. Nos anos que se seguiram, ela continuou a escrever cartas para o irmão, como se suas palavras pudessem atravessar não apenas o oceano, mas também o véu que separa os vivos dos mortos. Essas cartas, no entanto, nunca foram enviadas. Cada uma foi cuidadosamente dobrada e guardada em um baú de madeira envelhecido, junto com as correspondências que Domenico lhe enviara ao longo da vida. Décadas depois, em 1972, quando a propriedade da família foi passada para novos donos, o baú foi descoberto no sótão, intacto e cheio de histórias não contadas. Dentro dele, estavam as cartas de Angela, cheias de emoções contidas, de saudades imortalizadas no papel. As palavras escritas falavam de uma irmã que se recusava a deixar o elo com seu irmão desaparecer, mesmo após sua morte. Lá também estavam as cartas de Domenico, que narravam com uma sinceridade tocante as lutas, os sonhos e as realizações de um homem que viveu entre dois mundos. Reconhecendo o valor histórico e emocional daqueles escritos, a família que encontrou o baú decidiu doá-lo ao Arquivo Histórico de São Paulo. Hoje, as cartas de Domenico e Angela estão preservadas em uma coleção especial, acessíveis a estudiosos, descendentes de imigrantes e visitantes curiosos. Elas não são apenas documentos; são testemunhos de uma época em que o oceano era uma barreira quase intransponível, separando não apenas terras, mas vidas e corações. Os textos revelam a luta de uma geração que vivia entre o passado e o futuro, dividida entre a terra natal e a nova pátria. Eles falam das dificuldades enfrentadas pelos imigrantes, do esforço para manter a conexão com aqueles que ficaram para trás e das esperanças que surgiam mesmo nas circunstâncias mais difíceis. As cartas são, acima de tudo, uma prova de que o amor e a família podem resistir ao tempo, à distância e até mesmo à morte. Nas palavras de um curador do arquivo: "Essas cartas não são apenas histórias pessoais; são um pedaço da alma de uma geração que ajudou a construir o Brasil enquanto sonhava com a Itália. Elas nos lembram que, por trás de cada ato de emigração, há corações que nunca deixaram de buscar um ao outro."

Nota do autor:
A saga de Domenico Salvietto é inspirada em fatos reais, com nomes e eventos moldados pela imaginação do autor para homenagear os milhões de imigrantes italianos que cruzaram o oceano em busca de uma vida melhor. Embora os personagens e algumas situações sejam fictícios, eles refletem com fidelidade o espírito, os desafios e as esperanças vividas por uma geração. Sob o céu de dois continentes, esta história busca preservar a memória daqueles que, com coragem, sacrifício e amor, construíram legados duradouros e transformaram sonhos em realidade.



quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Os Desencontros Familiares na Grande Emigração


Os Desencontros Familiares na Grande Emigração


Muito antes de a Itália tornar-se um Estado unificado — conquista que se consumaria apenas ao término do turbulento Risorgimento, iniciado em 1815 e concluído em 1871 —, a mobilidade já fazia parte da vida de inúmeros habitantes da península. Nas regiões setentrionais, como Piemonte, Lombardia, Veneto, Trento e Friuli, a migração não era novidade: antes de ser um fenômeno necessário, ela acontecia além das fronteiras vizinhas, em busca de subsistência e sobrevivência.

No início, eram sobretudo os homens, e depois também as mulheres, que se ausentavam temporariamente, deixando para trás famílias inteiras. Seguiam para a França, Suíça, Áustria e Alemanha, empregando-se na agricultura, na construção civil ou em serviços sazonais. Tal deslocamento periódico recebeu o nome de migrazione delle rondini — ou migração das andorinhas — numa alusão àquelas aves que, após um período distante, regressavam ao ninho.

Contudo, nas últimas décadas do século XIX, este movimento temporário transformou-se em definitivo devido diversos fatores entre eles a formação do reino da Itália. A miséria estrutural, a pressão demográfica e a escassez de oportunidades na Itália — somadas à promessa de terras, salários ou simplesmente de pão — levaram milhões de italianos a deixarem o país para sempre. Os destinos prediletos eram, inicialmente, os Estados Unidos, a Argentina e o Brasil, que despontavam como terras de abundância do outro lado do Atlântico. Entretanto, países europeus mais prósperos, como França, Suíça, Bélgica e Alemanha, também absorviam parcela significativa dos que abandonavam suas aldeias natal.

Os portos de Gênova e Nápoles tornaram-se pontos de partida simbólicos de uma diáspora sem precedentes. Marselha e Le Havre, na França, igualmente viam seus cais apinhados de italianos em trânsito, carregando baús modestos, sacos com roupas e ferramentas, mantimentos e, sobretudo, esperanças. Os navios de linha, quase sempre superlotados, eram a última imagem da pátria que ficava para trás.

Naquele período, as famílias italianas eram numerosas. Casas modestas abrigavam dez, doze ou até quinze pessoas em poucos cômodos. A fome rondava com frequência, especialmente nas comunidades camponesas das montanhas e nas aldeias pobres do Mezzogiorno. Em cada núcleo familiar, a lógica se repetia: os filhos mais velhos emigravam primeiro, abrindo caminho para os mais novos partirem depois.

Os destinos, porém, dispersavam os laços. Um irmão podia instalar-se na Argentina, outro embarcar para o Brasil, enquanto um terceiro tentava a sorte nos Estados Unidos. Alguns permaneciam na Itália, outros atravessavam os Alpes para se fixar definitivamente em países vizinhos. A rede familiar, que outrora se sustentava na proximidade física, fragmentava-se pelo mapa do mundo.

A comunicação, especialmente para os que cruzavam o Atlântico, era precária. No Brasil e na Argentina, vastos territórios recebiam colonos semi-alfabetizados e mesmo analfabetos em áreas rurais distantes, mal servidas por estradas e com serviços postais inexistentes ou intermitentes. As cartas, único elo possível entre mundos tão afastados, levavam meses para cruzar o oceano. Muitas se extraviavam; outras nunca saíam dos portos. Para um emigrante que partia rumo às colônias brasileiras, não era raro permanecer anos sem notícias concretas de pais, irmãos ou mesmo mulher e filhos.

Com o passar do tempo, a distância se convertia em silêncio. Quando um irmão mais novo decidia emigrar, poderia desembarcar no mesmo país que o anterior, mas ser enviado para uma colônia distante, talvez em outro estado brasileiro. A vastidão territorial e a falta de meios de comunicação faziam com que encontros se tornassem improváveis. Muitas famílias perdiam contato para sempre, apesar de viverem sob o mesmo céu, separados apenas pela geografia e pelo destino.

Até hoje, não é incomum encontrar famílias que compartilham o mesmo sobrenome — descendentes de um mesmo tronco ancestral — sem saber que seus antepassados estiveram lado a lado em algum porto, que partilharam a mesma aldeia de origem, ou que um dia trocaram cartas que jamais chegaram. A Grande Emigração italiana, que levou milhões de vidas para longe de casa, deixou também incontáveis histórias de desencontros que atravessaram gerações.

Nota do Autor

Este artigo é um sopro vindo de longe, como o eco de passos que já não se ouvem, mas que ainda ressoam nas memórias que atravessaram gerações. A Grande Emigração não foi feita apenas de travessias marítimas e terras desconhecidas; foi feita de silêncios que se instalaram em casas vazias, de cartas que não chegaram, de abraços que o destino não permitiu.

Nas docas de Gênova e Nápoles, famílias se despediam acreditando que o tempo traria reencontros. Mas, muitas vezes, o tempo trouxe apenas distância. Irmãos foram espalhados por continentes, nomes se perderam em registros incompletos, e histórias se diluíram na imensidão de terras estranhas.

Este texto é dedicado a todos eles — aos que partiram e aos que ficaram. A cada sobrenome que hoje resiste, há uma raiz antiga fincada em solo estrangeiro. A cada descendente que não conhece sua origem, há uma aldeia que um dia se despediu.

Escrevo para que, ao ler estas linhas, cada um possa sentir que não caminha sozinho: atrás de cada passo presente, há um rastro antigo, aberto por mãos calejadas, carregando esperança no lugar da certeza.

Dr. Piazzetta


quarta-feira, 30 de julho de 2025

I Zorni de Tera Rossa


I Zorni de Tera Rossa

Stòrie de sangue, sudor e speransa su ‘na tera nova

La nave la zera partì da Génova soto el manto scuro del inverno del 1877. Al porto, el vento portava un odor de carbon bagnà e pesse màrcio, smissià con el odor de l’aqua ferma e de i corpi che da zorni i no savea pì cossa la zera un bagno. L’imbarco el zera stà lento e ruvìdo, segnà da spintoni e urli dei marinai che tratava i emigranti come carga da stiva. Òmeni e done i entrava in barco con le spale basse e el sguardo sbusà, come se i sentìsse che i gavea da dir adio no solo a la tera natìa, ma anca a ‘na parte de l’ànima so.

Sora el barco, streti tra corde, valise e barili de aqua salmastra, i viaiava ànime mosse no da l’ambission, ma da la urgensa de sopravivar. No ghe zera tra lori esploradori, gnanca soniadori romántici. I zera contadin strachi da la tera, operài cacià fora da le fàbriche, vedove con putèi, veci che preferiva morir fora da l’Itàlia che continuar a mendicar in casa. L’ària i quel fondago la zera grossa, pien de umidità, scremento umano e l’odor àssido de gòmito. Chi che no rivava a siapar un posto su i leti improvisà dormiva sora i sacha de farina, facendo turni de riposo come in ‘na trincera invisìbile.

Tra quei poareti ghe zera Giuseppe Miazani, contadin del Véneto, che portava su el corpo le màrchie de ‘na vita consumà da la fadiga. I diti, duri e storti, pareva de legno. La schena, incurvà da quando che el avea quindese ani, la disea tuto: ´na vita passà tra zape, sassi e solchi sechi. A quarantado ani, no el sperava miràcoli, ma solo ‘na nova oportunità. Ghe zera con la so moièr Teresa, con li oci fondo e la vose smorsà, e con i tre putei che no savea gnanca cossa che i stea lassando drio, ma che lesea su la fàcia dei genitori la gravità de chi che parte sensa saver se torna.

La fame l’avea cacià via da l’Itàlia. No ‘na fame de un zorno, ma ‘na fam longa, sossial, de generassion. La tera del Véneto la zera massa cara, massa streta, e i paroni del grano e del poder no gavea pì uso per zente come Giuseppe — zente sensa tìtoli, sensa schei, sensa studi. El Brasile el lo ciamava con promesse che lu no capiva. I manifesti atacà sui muri de le paròchie disea de tera bona e libartà, ma nisun i lesea ben. Le parole le vegniva ripetù in fiere, smorsade dal’analfabetismo e da la speransa. Promesse scrite su carti timbrà che nisun savea decifrar, ma che pareva mèio che la fame su la pansa, le nove tasse che no se podea pagar, e la umiliassion lenta de inchinarse davanti al usuraro del paese.

La prima note in barco, Giuseppe el ga capì che la traversia no saria stà solo un cambiamento de continente, ma un rito de purgassion. L’aqua da bever zera poca e tiepida, el magnar, ´na polenta, dà come ‘na carità. I sorci combatéa posto con i malà. I pianti dei putei se smisciava con la tosse seca e le preghiere basse. El mar, indiferente, butava onde che strenzea el vapor  e fassea gomitar i pì debòi.

Ma par tuta la scomodesa, el mal de mar, el spavento, Giuseppe el tegneva ‘na convinssion muta — quela traversia la zera l’ùltimo gesto de dignità che ghe restava. Morir in barco, o anca in tera nova, saria almanco morir provando a scampar da ‘na condana a ‘na vita sensa doman. E cussì, con i piè tremanti e l’ànima sospesa, el passava el oceano come miaia e miaia de altri contadin scancelà dal mapa de l’Europa, provando a scrivar con el pròprio corpo el primo paragrafo de un mondo novo.

La traversia la zera stà un lento de se stacar del mondo vècio — no solo geogràfico, ma spiritual. Ogni zorno in alto mar, le robe che prima tegneva in piè la vita — el campanil del paese, l’odor de le stagion, i nomi de le strade e dei santi — i se sfumava come tinta lavà. In fondago, ndove sentene de ànime le se strinseva sora asse mal inchiodà, la traversia del mar la diventava pì che fìsica: la zera ‘na traversia interior, ‘na eroson lenta de l’identità. No zera pì italiani, ma gnanca brasiliani. I zera, par adesso, naufraghi del passà.

Gibraltar, el vapor el ga restà fermo par zorni interi, sensa che gnanca un spiegassion fusse dà. Le autorità del porto controlava el fondago con sospeto, contava teste, guardava carte strasse e timbri smorfi. I emigranti, da la so parte, i vardava el movimento del porto con un sguardo misto de desidèrio e rassegnassion. I òmeni i se sentava sora l’orlo de la nave e i vardava la schiuma del mar come se vardasse un altar. El zera un gesto istintivo, quasi ‘na liturgia: vardar l’orisonte come chi che prega, come chi che prova a contratar con el destin ‘na traversia manco crudele. El silénsio zera assoluto tra i colpi.

Un silénsio che no zera mancansa de rumore, ma la mancansa de tuto che i gavea conossesto: i campanei de cesa, i passi sui ciòdoli, le vosi ´nte le fiere, i canti del tramonto. Tuto quel zera restà drio del mar. Adesso ghe zera solo la boscaia e el tempo — un tempo che pareva muoversi pian, indiferente al straco, a la febre e a la nostalgia. La mata vèrgine no se dava via fàssil.
Lei resistea come un animal ferì, feroce ma muto. No ghe zera sentieri pronti, gnanca righe drite. Ogni metro conquistà zera fruto de setimane de lavoro ripetitivo, duro e pericoloso. Àlbari con diametro de un abràssio bisognava che cascasse prima che na semense tocasse la tera. I manare, ancora sensa el fil giusto, bateva sui tronchi che pareva de piera, e ogni colpo domandava pì che forsa: domandava paciensa, disciplina e ‘na fede strana ´ntel futuro. Quando finalmente i cascava, pareva che parte del mondo vècio cascasse insieme a lori.

La tera, rossa forte, sanguinava quando la vegniva scomodà. Sto baro grosso, che se atacava ai cavìcie e impastava i brassi, tensava tuto quel che tocase — robe, pele, óngie, soni. I strassi de le done se sporcava par sempre; i taloni se sgrepolava soto el peso de la moita dura; le ongie se negava. Ma chel no zera solo sporco. Zera batèsimo. El sigilo bruto de ‘n posto che no voleva coloni — solo sopraviventi.

Con le man feride, i diti taiài dal fil storto del fero e da le spin dei tronchi spacà da poco, e con i piè infià da portar l’aqua in sècie improvisà, Giuseppe el imparò no solo a resistar, ma a trasformar.
El imparò a coltivar formenton e fasòi coi semi passà tra visin con parlar diversi, a segnarse el tempo dei racolti co i sicli de le piove, a riconosser i rumori de la mata come segnali o benedission. El imparò anca a tirar su muri sensa piere, solo baro e pàia seca mescolà con el sudor del matìn e el silénsio del dopopranzo. I baracón cressea da drento in fora, formà pì da l’urgensa che da la tècnica, ma ognidun de lori zera ‘na vitòria contro l’oblio.

La léngua, però, zera ‘na selva ancor pì infasà. Giuseppe no capiva el idioma dei òmeni che lo comandava, no leseva le òrdine atacà su la sede de la colónia, gnanca capiva le ordinanse dei registri agrari. Le parole del potere rivava filtrà da interpreti improvisà, da visin che savea leser, da putei più adatà che i genitori. Zera un governo sensa fàssia, ‘na autorità che stava in alto sui coli, fra carte timbrà e promesse vaghe. E però, anca in quel silénsio obligà, la vita la ‘ndava avanti.

De doménega, con la stessa dignità straca con la qual i netava i òci dei fiòi, Giuseppe e Teresa se meteva dosso le robe manco sporche e montava el sentiero de tera batua fin la ceseta improvisà — un galpon de legna con un crucifisso rùstego e banchi de tronchi spacà.
Quel no zera ‘na cesa. Zera ‘na idea de cesa. Un sìmbolo pì che ‘na casa de fede, un tentativo de refar el sacro in un mondo che zera ancora in costrussion.

Là, soto la luse fioca che passava tra le fessure dei muri, se sentiva ‘na messa mescolà, ndove el latin antico se mescolava con el portughes strassinà del prete cavaler e con i mormori dei coloni che rispondeva in talian, o in dialeti che gnanca i visin capiva.
Ma no importava. Tuti zera confusi uguali, curvà soto el peso de la setimana, unì da la stessa fame, dai stessi dolori, da la stessa speransa. E in quel momento breve, soto el suono dissonante de le léngue e el odor de legna verde, ghe zera un fià — picin, fràgil, ma vero — in meso a la vastità selvàdega del mondo novo.

Le carte zera l’ùnico fil col mondo de prima. In mezo a la boscàia che se magnava le distanse e desfaseva i riferimenti, quel tochetin de carta zera tuto quel che restava de un tempo prima del mar, de la selva, de la tera rossa. No ghe zera pì strade, gnanca segni, gnanca cesete familiari. Ghe restava solo el ricordo, e sto ricordo, par no sparir, bisognava scrivarlo.

A ogni racolto, dopo setimane de laoro tosto e noti mal dormì, Giuseppe se parava un momento, sempre al scuro, sempre straco, par scrivar al fradèo pì vècio, che zera restà in Véneto.
Se sentava su un toco de legno, con ‘na candela che tremava su el fólio bagnà de sudor, e faseva quel che no gavea mai imparà ben: scrivar. Le parole vegniva fora con fadiga, letra dopo letra, come se ogni sìlaba dovesse traversar la resistensa de la strachessa. Frase corte, semplissi, ma càriche de significà invisìbili.

Contava le dificoltà — la febre che gavea tirà via un puteo del visin, l’aqua granda che gavea portà el formenton, la morsicada de serpe che gavea quasi costà la man del fiòl pì picinin.
Ma contava anca le vitòrie, anca se picolete: la carossa nova fata con legna del posto, el primo pan coto in un forno che l’avea costruì con baro cruo e coto, l’arivo de un visin de Trento che portava novità fresche de l’Itàlia e ricordava cansonete che tuti gavea desmentegà. Sti trionfi picinin zera tratà come imprese èpiche. No perché i zera cussì grandiosi, ma perché i simbolisava qualcosa de pì profondo — la lenta, dolorosa ma inevitàbile trasformassion de ‘na vita strapà da le radisa. Ogni carta zera un ato de resistensa contro l’oblio. Un gesto volù de tegner viva la scintila del ricordo, anca quando tuto atorno pareva voler el contràrio. La scritura tremolante, macià da man sporche de tera e cali, mostrava pì che analfabetismo.
La rivelava el sforso fisico e del cuor de un omo che tentava de tegnir insieme do mondi. Da ‘na parte, el Piemonte, con l’òrdine, la léngua, la stòria. Da l’altra, el Brasile — inòspito, fèrtile, incontrolàbile. In mezo, un omo che no zera pì ne uno ne l’altro. Brasilian? Italian? Gnente. Sol coloni.

Sto nome — “colono” — che ´ntei èditi ofissiai voleva dir categoria produtiva, là el gavea ‘n peso diverso. Èsser colono no zera ‘na profession. Zera ‘na condission. Zera viver sospeso tra quel che se zera e quel che mai se savaria èsser. Zera piantar radisa in tera strànea sensa saver se ste radise durava. Zera scrivar carte a chi forse no risponderia mai, solo par ricordarse che ‘na volta se zera stà da un’altra parte, soto un altro cielo,  con un altro nome.

I fiòi cressea con i piè fermi su la tera de la colónia — no par scelta, ma par instinto. Zera come se el corpo, pì in pressa che el pensar, capisse che lì bisognava piantar radise presto, senò se vegneva tirà via da la brutalità del posto. I corea tra i tronchi cascà e le stecadure improvisà con la sicuressa de chi no gavea mai visto el mondo de prima. Par lori, la boscaia, el baro rosso, el odor dolse de la cana fermentà ´nte l’ària calda del mesodì, no zera ostàcoli. Zera paesàgio. Zera casa.

Imparea a leser in portughes, su le tavole grezze de ‘na scola improvisà a canto la ceseta, ndove ‘na maestra zòvene, anca lei fiola de emigranti, insegnava le sìlabe con carbone.
I quaderni zera pochi, el silénsio impossìbile, ma lori imparava. La léngua nova entrava pian pian, come un rivolet che siàpa le sponde, e prendeva forma ´nte le vosi dei putei. Se leseva con l’acento, ma se leseva. Se scriveva mal, ma se scriveva. El idioma de la tera che i gavea acolto, par forsa e par bisogno, se impiantava ´nte le generassion nove con ‘na naturalessa inevitàbile.

Ma in casa, torno al fogo basso e al pan duro, se cantava le canson vècie del nord de l'Itàlia. Cansoni de sposalìssio, de vendemia, de Nadal — imparate dai veci, mormorà da le mare con la ose bassa mentre che impastava la farina o lavava i pani ´ntel rieto. Le parole vegniva in talian, carighe de imàgini che i putei no capiva par intero, ma che i savea a memòria. Zera parole eredà, come el color dei oci o la forma del mento. E in quele parole, anca sensa capir, i sentiva ‘na apartenensa che no se podea spiegar. Zera come recordar qualcosa che no se ga mai vissù, ma che, in qualche maniera, se riconosseva.

El tempo i fasea diventar qualcosa de novo. No i zera pì italiani — la léngua la scampava, le feste tradissionai se perdeva in meso ai calendari confusi dei coloni. E gnanca brasiliani i zera, almanco no par quei che zera nassesto là da generassión, che i ghe vardava storto, come intrusi che parlava strambo e che magnava polenta al posto del fasòi. I zera un’altra roba. ‘Na zente che se stea formando, ancora sensa nome, sensa ‘na stòria scrita, ma con ‘na identità che fasea le prime mosse. ‘Na generassion che no la perteneva a gnente, ma che, par ‘na ironia granda, la metea radise pì fonde de qualunque altra — radise piantà no su ‘na tradission o ‘na pàtria, ma su ‘na resistensa de ogni zorno.

E quele radise, invisìbili ai oci dei governanti e dei nùmari, le se piantava fonde ´nte la tera che prima zera solo bosco — ‘na tera che no zera stà dada, ma che i ga siapà con el badil, con el siénsio e con el tempo.

Ani dopo, quando Giuseppe rivava sora al monte ndove, piere su piere, lu aveva tirà sù con le so man la casa che teneva insieme la famèia, no vardava mia a la ricchessa. Con quei oci consumà dal sol e dal tempo, el vardava la restansa. No ghe zera mia lusso ne le serche che segnava el campo — solo legna grezza, scurìa da la piova e dal caldo. Ma ogni palo piantà ´ntel teren zera ‘n segno: no de proprietà, ma de resistensa. ‘Na prova muda che là, pròprio là, el a deciso de restar, anca quando tuto ghe disea de molar tuto e tornar indrio.

I solchi ´nte la tera, ndove el gran cresseva in filare che se muoveva con el vento, no i volea dir abondansa o bancheto. I volea dir tempo investì con speransa tegnù, come chi che prega sensa saver se el sarà sentì. A ogni stagion, sempre la stessa domanda: el sarà bon? Ma la tera, con el tempo, la gavea imparà a risponder con ‘na generosità cauta. E Giuseppe, anca se el savea che no saria mai diventà rico là, el capia qualcosa de pì fondo — che restar, da solo, iera za ‘na forma de vitòria.

Ogni sicatrisse su le so man — tàia fà dai badili sbusà, cali duri da la corda de la carossa — zera ‘na riga scrita su la stòria muda de quei che zera vegnesto par piantar el futuro là ndove prima ghe zera solo dùbio. No ghe zera libri che contava le so strade. Gnanca un giornal che contasse la fatica del colono piemontese tra i monti sofeganti del sud del Brasile. Ma lu el savea, come con el istinto, che el stéa lassando segni fondi tanto quanto quei del vasor ´nte la tera bagnà.

E la ze sta pròprio sta verità sconta che la ze vegnesta fora in quela lètara scrita in marzo del 1878. El folio, sporcà de suor e tera, el portava al fradèo lontan in Itàlia ‘na nova semplice, quasi seca: “Mi son vivo a Santa Maria Boca do Monte.” 
Nissun fronsolo. Nissun lamento. Nissuna epopea. Solo la verità nuda che lu, Giuseppe Miazani, contadin, pare, imigrante, el zera là — che respirava, che laorava, che spetava. Lu gavea patì la fame, sì. Lu gavea dormì con la paura, sì. Ma lu gavea tirà sù la so casa. Lu gavea seminà el so gran. El ciamava quel toco de tera no pàtria, ma soa.

E questo, par un che el zera partì con le man vode e l’ànima mesa spalancà, zera pì che bastansa.


Nota de l’Autor

I Zorni de Tera Rossa el ze nassesto da ‘na voia profonda de salvar e tegner vive le stòrie de chei che, con coraio e speransa, ga lassà la so tera natìa par costruì ‘na vita nova sora un solo scognossesto. Sto libro el ze ‘na reverensa silensiosa a le generassion de emigranti che, afrontando gran fatiche, i ga trasformà ‘el solo duro in campi fèrtili e ga piantà rade profunde in tere lontan.

Par tuto el camin de ste pàgine, mi go provà a entrarghe drento l’ànima de ‘sti òmeni e done comun, che la vita ghe la ze stà segnada da la fadiga, da la nostalgia che strenza el cuor, e da ‘na fede che no se spalma mai, gnanca con i zorni neri. No se trata mia sol de ‘na crónaca stòrica, ma de ‘na contassion che vol coglier el batito de l’esperiénsa umana – le so alegrie, i so afronti, le so picole-grandi vitòrie.

Speto che l’òpera I Zorni de Tera Rossa spinga chi la lese a tegner caro el ricordo e l’eredità de chi ga fato el presente che viven – un presente che tante volte el resta scondù soto la pòlvare de la stòria. Che sta stòria la possa èsser un invìto a pensar su el senso de pertenensa, de laor e de speransa – robe che serve par metar su ogni doman.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta






terça-feira, 15 de julho de 2025

O Destino de Giovanni Marchetto: Um Emigrante em Busca de Esperança


 

O Destino de Giovanni Marchetto
Um Emigrante em Busca de Esperança


Giovanni Marchetti era um agricultor humilde de uma pequena localidade de Mirabello, na província de Ferrara, Itália. Como muitos outros na década de 1880, ele via a América do Sul como uma terra de promessas. A Itália estava afogada em crises econômicas, e os campos áridos não produziam o suficiente para sustentar sua família. Giovanni, sua esposa Maria e seus dois filhos pequenos decidiram arriscar tudo e partir para o Brasil, onde lhes haviam prometido terras férteis e oportunidades de trabalho.

O início da jornada foi uma sucessão de desilusões. A carta que Giovanni escreveu durante a travessia é um testemunho de sua angústia. Ele descrevia como, no navio, as pessoas estavam "apertadas como sardinhas em lata". A morte rondava a embarcação: um menino de apenas cinco anos, saudável e cheio de vida, sucumbiu a uma febre. Outros oito passageiros estavam gravemente doentes. Gritos de dor e lamentos ecoavam incessantemente. A comida era quase incomível, e o pão, "duro como ferro", não amolecia nem com água.

Giovanni era um homem calmo por natureza, mas o tratamento desumano o enfureceu. A indignação tomou conta quando descobriu que haviam sido enganados pelos agentes de emigração. Pagaram por um lugar em um navio a vapor, mas foram colocados em uma embarcação à vela, que transformava a travessia em uma interminável provação. Ao chegarem a Marselha para uma escala, Giovanni e outros 100 emigrantes confrontaram os agentes responsáveis pela fraude. A revolta quase terminou em violência, mas a chegada das autoridades evitou o pior. Os culpados foram presos, mas a incerteza sobre o futuro permanecia.

Após semanas de sofrimento no mar, o navio finalmente chegou ao porto de Porto Vitória, no Brasil. A visão era desoladora: um local cercado por mata fechada, com poucas construções e nenhuma infraestrutura. Giovanni foi designado para trabalhar em uma colônia agrícola no interior da província de Santa Tereza, junto com dezenas de outras famílias italianas.

Os primeiros meses foram de luta incessante. Sem ferramentas adequadas e enfrentando um clima tropical opressivo, Giovanni teve de abrir espaço na floresta virgem para plantar. A malária e outras doenças eram companheiras constantes. Muitos vizinhos sucumbiram, mas Giovanni não desistiu. Ele trabalhou incansavelmente, com Maria ao seu lado, plantando as sementes que lhes dariam sustento no futuro.

Um dos momentos mais marcantes aconteceu no segundo ano de sua chegada. Após uma colheita particularmente bem-sucedida, Giovanni escreveu novamente à sua família que permanecera na Itália. "Hoje, senti o gosto da terra que sonhei. O milho está alto, e o trigo é dourado como o sol. A dor e o cansaço quase me fizeram desistir, mas agora vejo que fizemos a escolha certa. Não foi pela riqueza que viemos, mas pelo direito de sonhar com um futuro para nossos filhos."

Giovanni e Maria tornaram-se pioneiros respeitados na colônia. Suas terras floresceram, e eles ajudaram outros imigrantes recém-chegados a enfrentarem os desafios. Embora a saudade da Itália nunca tenha desaparecido, eles encontraram um novo lar no Brasil, onde construíram uma vida de trabalho árduo e dignidade.

A carta de Giovanni, escrita no momento mais sombrio de sua jornada, tornou-se um símbolo de sua resiliência. Anos mais tarde, seus descendentes a preservaram como uma relíquia, lembrando que a coragem de um homem pode transformar o desespero em esperança.



sábado, 5 de julho de 2025

Linhas do Destino: Memórias de uma Terra Prometida


Linhas do Destino

Memórias de uma Terra Prometida


Caro Padre Luigi,

É com imensa alegria que lhe escrevo para contar sobre a nossa chegada a esta terra distante, onde o céu parece mais vasto e a esperança se mistura ao trabalho árduo. Já se passaram duas semanas desde que chegamos ao nosso lote na colônia, e devo dizer que a escolha de partir está se revelando uma bênção. A terra é generosa, coberta de árvores exuberantes, e promete colheitas que nunca sonhamos nos campos de onde viemos. A cada dia agradecemos ao Senhor por esta oportunidade e esperamos que em breve também possam se juntar a nós.

Aqui as coisas se organizam de forma simples, mas eficaz. O governo nos oferece um apoio inicial, o que nos dá tempo para nos prepararmos para viver de maneira independente. A natureza nos acolhe com água cristalina e ar puro, uma bênção para nossos pulmões cansados. Quando chegarem, encontrarão não apenas a nós, mas também um novo começo, que lhes devolverá energias e esperanças esquecidas.

Amado irmão Paolo,

Você não imagina o quanto desejamos vê-lo aqui com sua família. Garanto que encontrará uma vida mais tranquila do que a que deixamos para trás. As crianças correm livres, o medo parece menos presente, e o esforço, embora grande, traz frutos concretos. Já imagino seus filhos sorrindo enquanto exploram esses campos férteis.

Traga com você as melhores ferramentas que possui e algumas sementes de nossas terras. Aqui há necessidade de mãos fortes e ideias novas. Não deixe de dizer à nossa mãe que a viagem, embora longa, vale cada sacrifício. Conte a ela que os mais velhos chegam aqui com o rosto mais sereno, quase rejuvenescidos pela beleza da paisagem e pela esperança de dias melhores.

Não demorem a nos dar notícias sobre sua partida. Estaremos no porto para recebê-los com nossos cavalos e alegria no coração. A cada dia sonhamos com o momento de nos abraçarmos novamente e mostrarmos tudo o que construímos. Enviem nossos cumprimentos aos amigos e parentes em Valdobbiadene e digam que nosso coração os lembra com afeto.

Com confiança no futuro e no abraço de Deus, deixo estas linhas, esperando uma resposta que nos encha de esperança.

Seu devoto filho e irmão,

Giovanni


quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Cartas de Chamada






No ano de 1911, foi promulgada uma lei brasileira que em certo sentido legalizava o uso da Carta de Chamada. Por exemplo, introduzia a obrigação da chamada para os maiores de 60 anos e os não aptos para o trabalho que quisessem emigrar. No seu parágrafo único dizia: os maiores de 60 anos de idade e os inaptos para o trabalho só serão admitidos com imigrantes quando acompanhados de suas famílias, ou quando vierem para a companhia destas, contanto que haja da mesma família pelo menos um individuo válido, para outro inválido ou para um até dois maiores 60 anos. O único modo para demonstrar que o migrante vinha para estar com a família e esta estava disposta e apta para sua manutenção era se munir de uma Carta de Chamada. O governo federal forneceria gratuitamente aos agricultores ou aos chamados pelas mesmas, desde que aptos para o trabalho, passagem de terceira classe, transporte e acomodações até o destino escolhido, isenção do pagamento das taxas de bagagem e ótimo motivo para se apresentar com uma Carta de Chamada.  




Ainda no Capítulo III, art. 18° da referida lei, dizia que: dava-se preferência para o embarque com as companhias de navegação, autorizadas pelo governo federal, para transporte dos imigrantes, para os assim denominados imigrantes espontâneos e para aqueles chamados por parentes já estabelecidos no Brasil. 

As Cartas de Chamada eram aquelas escritas por parentes que já haviam anteriormente imigrado e mandavam notícias para seus familiares que ainda estavam na Itália. Esses parentes ou amigos que já moravam no Brasil, imigrados há algum tempo se responsabilizavam pela vinda do resto da família, que deveria carregar consigo as cartas de chamada durante a viagem, como um documento para ser aceito no novo país. Essas cartas de chamada do Brasil permitiam que tanto cidadãos brasileiros quanto os imigrantes, com residência permanente no país, “chamassem” seus parentes, fornecendo-lhes um atestado de apoio.  




Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta
Erechim RS