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sábado, 11 de outubro de 2025

Traduçao da Carta de Dom Domenico Munari ao Arcebispo em 1877

 



Carta de Dom Domenico Munari

Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 21 de outubro de 1877

Diletíssimo Arcebispo,

Este dia, que em anos passados eu costumava passar em meio à alegria de doces amigos, este dia me recorda Arsiè e a bela sua solenidade aniversária do terceiro domingo de outubro, e muito mais me recorda os dilettíssimos amigos com os quais eu costumava conversar com alegria em tempos menos infelizes do que o presente.

Antes de todos esses amigos, naturalmente, vem Vossa Senhoria, diletíssimo Arcipreste, e por isso a Vós devo por esse título escrever a presente, e escrever-Vos destas múltiplas penas.

Gozo perfeitamente de saúde, embora a sorte iníqua se ria de mim e me lance os golpes mais cruéis nos meus espíritos, especialmente no decorrer do meu destino a estes lugares do novo mundo; todavia não perdi ainda aquele meu habitual e natural bom humor, que me faz rir até mesmo da desgraça.

Depois de tantas desventuras, a partida e o naufrágio nas costas da França (coisas que já conhecereis), depois de 40 dias de viagem, decidi arriscar-me a vir aqui, ao Brasil, que ainda não conhecia, apenas ouvindo falar. Atravessei o Atlântico desembarcando em Rio Grande no dia 10 de agosto; de lá embarquei num vaporzinho e em 12 dias, passando por Lisboa e Santa Cruz das Canárias, finalmente me encontrei nesta terra.

Permaneci no Rio de Janeiro por 12 dias; mas vendo que ali circulava a “Seca”, que com a foice da febre amarela ameaçava mandar-me ao coveiro e engordar os ratos, tratei logo de escapar e embarquei num vapor que me trouxe ao Rio Grande do Sul; entrei pelo canal de Porto Alegre e fui enviado para a cura de Conde d’Eu, colônia italiana de 4.000 e mais almas. Logo em seguida foi anexada também a colônia Dona Isabel de outros tantos italianos; mas, considerando a impossibilidade de poder reger com tanto encargo, especialmente com a indiferença, com o astúcia das vorazes Harpias que presidem aquela infeliz colônia, apresentei ao Governo a minha demissão, por ter o Bispo erigido uma nova Paróquia, como me foi prometido e espero.

Agora gozo de ótima saúde e bom humor, e com isso celebro o Ofício e a Missa, e escrevo a alguns amigos. Não será surpresa que eu não retorne à colônia Conde d’Eu, mas agora por conselho do Bispo não volto, nem os colonos querem, e com razão, dar uma lição de equidade e justiça ao Chefe da Colônia que os trata pior que escravos. Oh! pobres italianos imigrados! Quanta angústia e privações devem sofrer, e quantos sacrifícios devem fazer para se estabelecerem em uma selva selvagem áspera e forte! A maioria amaldiçoa o dia em que descobriu a América, maldizendo o desgosto, a emigração e o dia da sua partida para estas partes, e desejariam morrer miseráveis e nus em sua pátria, em vez de se verem privados de cada conforto em meio a essas antigas selvas, sem esperanças de retorno, e com pouca esperança de prover o necessário.

E como são tratados os colonos, posso jurar que nenhuma miséria é igual a essa.

Mas quem acreditará em mim? Tantos desses miseráveis, quando escrevem, por medo de que suas cartas não cheguem às suas pobres famílias (porque o Czar das colônias tem tudo em mãos para entregar ao longínquo correio), escrevem bem; mas isso não é verdade e não pode ser. E como poderão chamar-se felizes?

Aqui é uma selva, e no princípio sem teto, e depois uma cabana semelhante ao presépio de Belém, feita em grande parte de varas, onde o ar e a água dominam sempre.

Enquanto escrevo, os colonos devem levar-se à própria colônia, onde encontram apenas mato, mato e mais mato. Dez dias só de comida são dados a eles, e depois nada, nada e nada. Uma vez paga a casa com 105 florins, depois muda-se a máscara, e só 25 florins (quando Deus quer) são dados de ajuda, que equivalem a 25 francos de nossa moeda, e a menos de 25 francos.

Verdadeiramente digo-vos, e o Senhor é minha testemunha.

De fato, neste emaranhado não entra o Governo do Brasil, porque este estaria disposto a ajudar; mas são as companhias que, como o Czar e as Harpias, sugam das últimas forças do pobre colono, até o ponto de este sucumbir miseravelmente.

Avisai ao Governo já que a emigração deve ser fechada, se ele vos ouvir, e se me ouvir também. Oh, pobres cegos e miseráveis, nada são e nada mais se tornarão, senão ainda mais miseráveis! Agora a Vós posso e devo escrever a verdade, porque estou fora da pressão deles. Avisai em Igreja o povo, que não tome por ora o caminho da América, pelas causas indicadas.

Passo a falar de outras coisas da emigração.

As notícias que tenho em resumo são estas: os emigrados italianos sofrem com o calor excessivo do clima, com a absoluta falta de pão, de vinho, que devem substituir (se podem) por uma espécie de água extraída da cana-de-açúcar fermentada, com sabor desagradabilíssimo. A terra é fértil, mas é coberta de mato e de florestas imensas, com árvores de até 2 metros de diâmetro; para derrubá-las é preciso o trabalho de dois homens robustos durante um dia inteiro, trabalho desproporcional ao hábito do italiano emigrado, que muitas vezes não compensa a fadiga suportada. Além disso, muitas vezes a seca arruína as colheitas, e se não há seca, uma chuva repentina as destrói, ou uma geada mata as plantas na primavera; outro dia foi uma grande granizada, que em um quarto de hora, enquanto o pobre colono mal acreditava no que via, arrasou tudo.

Quando a terra tivesse muito fruto, o colono não poderia pagar ao Governo o preço da terra, pela absoluta falta de comércio, estando as colônias muito longe dos centros comerciais e com estradas tão péssimas que nem mulas podem transitar. Assim, em meio às misérias e angústias, prepara-se talvez um pão, mas certamente se prepara uma grande dívida, que dificilmente poderá pagar.

Quanto ao espiritual, é coisa péssima em tudo.

A religião professada pelos americanos do Rio Grande do Sul é precisamente a nulidade de toda religião; são “frammassoni”, mas não sabem o que isso significa; são católicos, mas não conhecem nada do cristianismo; são protestantes sem saber o que é o protesto. Na verdade, são indiferentes à religião, e nada mais.

A esse propósito, quero transcrever duas linhas do Boletim da Sociedade de Patronato dos Emigrantes Italianos, publicado em Roma em janeiro de 1876:
“As mulheres (dos imigrantes) se dão à prostituição; ao redor das meretrizes vivem outros emigrantes italianos, em péssimos costumes, lascivos, e sem freios.”

E mais:
“Há um turbilhão de emigrantes italianos atirados à mendicância, sem advertência da sua condição e da sua miséria, de modo que uma décima parte deles se encontra em situações horríveis, arruinados moral e materialmente, expostos a todos os perigos, reduzidos à condição de escravo por muitos e muitos anos.”

Portanto, quanto ao corpo e quanto ao espírito, os colonos perecem, e infeliz será quem se aventurar a emigrar para cá. A Providência talvez reprovará a nossa emigração: para mim isso já é mais que suficiente.

Assim escrevo apenas para bem do povo italiano.

De coração, vos saúdo.
Vosso devotíssimo amigo e confrade,

Don Domenico Munari
Ex-pároco de Fastro 

Nota do Autor

A carta do padre Domenico Munari, escrita em 1877, é um documento raro e pungente, impregnado de desilusão, compaixão e testemunho humano diante do drama dos primeiros colonos italianos no Rio Grande do Sul. Nela transparece a alma de um pároco sensível, formado na serenidade dos vales vênetos, lançado de súbito ao coração de uma terra bravia e hostil, onde seus conterrâneos lutavam para sobreviver entre o mato, a fome e a solidão.
Munari não escreve como observador distante, mas como alguém que compartilha a dor dos seus. Sua pena é, ao mesmo tempo, denúncia e desabafo. Ele vê nas companhias colonizadoras “harpias vorazes”, exploradoras do suor dos emigrantes, e descreve com espanto o contraste entre as promessas de um novo mundo fértil e a dura realidade de selvas, miséria e abandono. Sua carta é também um clamor pastoral — alerta às autoridades e súplica ao céu — pedindo que se interrompa a emigração antes que mais famílias sejam arrastadas à ruína moral e física.
Em suas linhas ecoa o sentimento profundo de quem, longe de casa, percebe o fracasso de um ideal. O tom é de desalento, mas também de fidelidade: o padre, embora vencido pelas circunstâncias, conserva o humor e a fé, e ainda encontra forças para celebrar a missa e escrever a verdade, mesmo sabendo que poucos acreditariam.
O sentimento que percorre toda a missiva é o de triste compaixão — a dor de ver um povo generoso, cheio de esperança, transformado em vítima das ilusões da emigração. Na sua voz, mistura-se o desencanto de um homem de fé com a ternura de um pastor que, mesmo exilado e impotente, ainda deseja proteger o rebanho disperso nas florestas do Novo Mundo.

Dr. Luiz Carlos B. Piazzetta


segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Giovanni Battista Lorenzo: Entre Dois Mundos

 


Giovanni Battista Lorenzo 

 Entre Dois Mundos


Giovanni Battista Lorenzo nasceu em 24 de novembro de 1855, em Longarone, uma vila pitoresca na província de Belluno, incrustada no coração das Dolomitas. Essas montanhas imponentes, com seus picos que pareciam tocar o céu, dominavam o horizonte como sentinelas eternas de uma terra de contrastes. Elas eram, ao mesmo tempo, um refúgio e um desafio: majestosas em sua beleza, mas implacáveis em sua dureza.

Filho de Matteo Lorenzo e Angela Ricci, Giovanni veio ao mundo em uma família humilde, que vivia do cultivo de uma terra que parecia resistir a cada arado, como se relutasse em ceder seu sustento. Matteo, um homem de poucas palavras, mas de força quase sobre-humana, acreditava que o solo era o legado mais valioso que poderia deixar aos filhos. Angela, por sua vez, era o coração da casa: uma mulher de espírito resiliente, cujo canto suave ao final do dia embalava os sonhos das crianças enquanto preparava o pão escasso que mal alimentava todos.

A infância de Giovanni foi uma luta constante contra as adversidades impostas por uma terra ingrata e os longos invernos que pareciam durar uma eternidade. A geada cobrindo os campos pela manhã era ao mesmo tempo uma lembrança da beleza fria das montanhas e do trabalho árduo que o aguardava. Desde muito jovem, ele ajudava o pai na lavoura, aprendendo a distinguir os sinais do céu – uma tempestade iminente, uma seca traiçoeira – que determinariam o sucesso ou o fracasso de cada colheita.

Mas o solo árido e o clima implacável não eram os únicos desafios. A região era assolada por uma pobreza endêmica que parecia inquebrantável. Famílias como os Lorenzo viviam à beira da subsistência, constantemente ameaçadas pelas forças da natureza e pela incerteza econômica de uma Itália que ainda lutava para encontrar sua identidade como nação. “É preciso mais do que força para prosperar aqui, Giovanni,” Matteo dizia ao filho enquanto limpava o suor da testa após um longo dia de trabalho. “É preciso fé... e talvez um pouco de sorte.”

Mesmo assim, Longarone não era apenas um lugar de privações. Havia momentos de profunda beleza e alegria que alimentavam os sonhos de Giovanni. As festas religiosas traziam vida à pequena vila, com procissões iluminadas por tochas e canções que ecoavam entre os penhascos. Era durante essas celebrações que Giovanni começava a imaginar um mundo além da estreita faixa de terra que sua família cultivava. Ele observava os comerciantes que vinham das cidades maiores, trazendo histórias de lugares distantes e exóticos, e sentia nascer dentro de si uma inquietação, um desejo de explorar o desconhecido.

Angela, sempre perceptiva, notava o brilho nos olhos do filho mais velho quando ele ouvia essas histórias. “Você tem algo especial, Giovanni,” dizia ela, acariciando seu rosto com mãos calejadas. “Um coração inquieto e mãos talentosas. Não deixe que este lugar sufoque seus sonhos.”

Essa inquietação encontrou uma saída inesperada na carpintaria. Ainda menino, Giovanni descobriu uma paixão por transformar madeira bruta em algo útil e belo. Com ferramentas simples emprestadas de um vizinho, ele passou a esculpir pequenos objetos – colheres, cadeiras, caixas. Sua habilidade chamou a atenção dos moradores da vila, que começavam a lhe pedir encomendas. Cada peça que criava era uma pequena vitória contra a dureza de sua realidade, e cada elogio recebido alimentava sua crescente confiança. No entanto, a dureza da vida no campo não poupava ninguém, e as colheitas incertas colocavam a família Lorenzo em constante risco de perder tudo. Giovanni cresceu ouvindo as histórias de famílias inteiras que deixaram a Itália em busca de uma vida melhor, atravessando mares e terras desconhecidas. Aos poucos, ele começou a se perguntar se não estava destinado a fazer o mesmo. Enquanto as montanhas que cercavam Longarone eram vistas por muitos como um escudo protetor, para Giovanni elas começaram a parecer uma prisão. Com o passar dos anos, a aspiração de Giovanni deixou de ser apenas um desejo infantil e transformou-se em um plano. Ele sabia que não podia permanecer em Longarone, confinado à pequena propriedade que sustentava sua família. Mas também sabia que partir não seria fácil. A lealdade à família e o amor por sua terra o amarravam, mesmo quando o chamado do desconhecido se tornava cada vez mais forte. 

Giovanni Battista Lorenzo era, naquele momento, um jovem dividido entre dois mundos: o passado, enraizado na tradição e no sacrifício, e o futuro, que prometia oportunidades além da compreensão, mas que exigiria coragem para desbravá-lo. Naquele pequeno vilarejo cercado pelas Dolomitas, nasceu o homem que um dia atravessaria continentes e se tornaria um símbolo de resiliência e transformação. Ainda jovem, Giovanni revelou um talento que parecia desafiar sua realidade: a carpintaria. Enquanto outros meninos de sua idade dedicavam-se exclusivamente ao trabalho no campo ou às obrigações domésticas, ele se encantava com a transformação da madeira bruta em algo útil e belo. Com ferramentas rudimentares emprestadas de um vizinho — um martelo, um formão e uma velha serra —, passou a esculpir objetos simples. Primeiro foram colheres e pequenos brinquedos, feitos quase como passatempo. Mas o que começou como uma curiosidade logo se transformou em um ofício promissor.

As peças de Giovanni tinham uma qualidade única. Cada curva de uma cadeira, cada detalhe entalhado em uma caixa parecia carregar não apenas habilidade técnica, mas uma alma própria. Seus vizinhos notaram. Em uma comunidade onde os bens eram escassos e tudo precisava ser funcional, os objetos criados por ele se destacavam por sua beleza. Logo, começaram a surgir pedidos: uma mesa para a cozinha, uma cruz para a capela local, até mesmo uma nova porta para a casa de um comerciante. O reconhecimento foi instantâneo. Matteo, seu pai, embora um homem rígido e preso às tradições agrícolas, não pôde deixar de notar o talento do filho. “A madeira é mais generosa contigo do que a terra é comigo, disse certa vez, entregando a Giovanni uma pilha de tábuas antigas que ele havia guardado por anos. Para Angela, sua mãe, o sucesso do filho era uma dádiva, um pequeno vislumbre de que talvez ele pudesse escapar do ciclo de dificuldades que parecia aprisionar as gerações anteriores da família.

Contudo, enquanto a reputação de Giovanni como carpinteiro crescia, a Itália ao seu redor mudava de forma. A recente unificação do país, proclamada em 1861, trouxe consigo a promessa de um futuro próspero para uma nação unificada, mas a realidade para os camponeses do norte era bem diferente. As mudanças políticas e econômicas concentravam as riquezas nas mãos dos grandes proprietários de terra e industriais, enquanto os pequenos agricultores e artesãos, como a família Lorenzo, enfrentavam uma crescente desigualdade.

Os impostos aumentaram. As terras comuns, que por gerações serviram como sustento para as famílias mais pobres, foram privatizadas ou simplesmente extintas. O custo de vida subiu enquanto os preços dos produtos agrícolas despencavam. A fome, que antes era uma ameaça sazonal, começou a parecer uma presença constante. Giovanni, observador por natureza, absorvia essas mudanças com a mesma sensibilidade com que esculpia seus trabalhos em madeira.

Ao mesmo tempo, as montanhas que cercavam Longarone, antes um símbolo de segurança e proteção, começaram a parecer uma prisão. Cada vez que entregava um de seus trabalhos, ouvia histórias de pessoas que haviam partido. Falavam de oportunidades nas cidades industriais do norte ou além-mar, em lugares tão distantes quanto a América do Sul ou os campos de trigo da França. Essas histórias eram carregadas de promessas, mas também de perigos. Os que partiam enfrentavam o desconhecido, deixando para trás famílias, tradições e tudo o que conheciam.

Giovanni, no entanto, sentia que não tinha escolha. Ele sabia que a carpintaria, por mais promissora que fosse em Longarone, estava limitada pelas necessidades básicas da vila. Ali, suas criações nunca seriam mais do que utensílios ou enfeites simples. “O mundo é maior do que estas montanhas,” pensava ele enquanto seus dedos corriam pelas ranhuras de um pedaço de madeira recém-polido. “Se eu quiser mais, preciso ir atrás.”

O desejo de partir crescia dentro dele como uma chama. Havia uma inquietação em seu espírito, algo que ele próprio não conseguia explicar, mas que o empurrava para além das fronteiras de sua terra natal. “Giovanni, coragem não é apenas enfrentar o perigo,” disse Angela certa noite, enquanto costurava à luz de uma lamparina. “É também saber quando deixar para trás aquilo que nos é querido. Você tem o talento e a vontade. Não deixe que o medo o segure aqui.”

Com essa convicção e o apoio silencioso da família, Giovanni começou a planejar sua partida. Ele sabia que o futuro exigiria mais do que apenas sua habilidade com madeira; seria necessária coragem, resiliência e uma fé inabalável em suas próprias capacidades. Contudo, havia também a dor de partir. Cada entalhe finalizado, cada peça concluída parecia uma despedida — um adeus ao menino que cresceu entre as Dolomitas e ao homem que agora estava prestes a desbravar um mundo desconhecido.

Giovanni ainda não sabia onde seus passos o levariam, mas estava decidido a caminhar. Aquele talento incomum para a carpintaria, combinado à determinação de transcender as dificuldades de sua terra natal, estava prestes a transformar não apenas sua vida, mas também o destino de todos ao seu redor.

Em 1876, aos 21 anos, Giovanni despediu-se de sua família em uma manhã gelada de primavera. As montanhas de Longarone, que durante toda sua vida haviam sido sua fortaleza e prisão, agora pareciam distantes enquanto o jovem caminhava em direção ao desconhecido. Com uma mala de madeira que ele mesmo havia construído, recheada apenas com algumas roupas e ferramentas básicas de carpintaria, Giovanni iniciou a longa jornada rumo à França, alimentado por um misto de ansiedade e esperança. A viagem foi um teste de resiliência. Ele cruzou vilarejos isolados, atravessou campos de trigo e florestas, viajando em trens lotados e enfrentando estradas lamacentas. Cada passo o afastava do conforto familiar, mas também o aproximava de um futuro que ele mal podia imaginar. Quando finalmente chegou a Lyon, uma das cidades mais vibrantes da França naquela época, foi tomado por um sentimento avassalador. As ruas eram um frenesi de atividade: vendedores ambulantes gritavam suas ofertas, carruagens passavam apressadas, e o ar era preenchido pelo cheiro de carvão queimado e pão fresco. Apesar do entusiasmo inicial, Lyon não o recebeu com o calor que ele esperava. Giovanni rapidamente descobriu que as promessas de trabalho eram apenas uma parte da história. Sem dinheiro suficiente para uma boa hospedagem, teve que se contentar com um quarto apertado em uma pensão cheia de outros imigrantes. As noites eram frias, e o barulho constante dos companheiros de quarto — alguns rindo, outros lamentando sua sorte — muitas vezes não o deixavam dormir.

Após dias batendo de porta em porta, Giovanni finalmente conseguiu emprego em uma oficina de marcenaria localizada em um dos bairros industriais da cidade. O lugar era um galpão amplo e escuro, iluminado apenas por lâmpadas a óleo que lançavam sombras oscilantes sobre as pilhas de madeira e ferramentas espalhadas. A oficina produzia móveis refinados para atender à crescente demanda da emergente classe burguesa, que buscava ostentar sua riqueza com peças elegantes e bem trabalhadas. O trabalho era árduo. Giovanni começava antes do amanhecer, limpando serragem e organizando ferramentas. Sob a supervisão de um mestre francês severo chamado Étienne Morel, ele passou semanas apenas observando, absorvendo cada movimento, cada técnica. Os marceneiros mais experientes usavam ferramentas que ele nunca tinha visto antes, como serras circulares movidas a vapor e fresas que podiam criar padrões ornamentais com precisão. Giovanni sabia que aquele era seu momento de aprender.

Mesmo com uma rotina exaustiva de 12 horas diárias, ele não permitiu que o cansaço ou as dificuldades o impedissem de avançar. Durante os intervalos, Giovanni estudava os projetos que os mestres deixavam sobre a bancada. Ele analisava as proporções das peças, os detalhes dos entalhes, os acabamentos que davam vida às criações. À noite, em seu quarto apertado, tentava replicar em pedaços de madeira descartada o que havia visto durante o dia. Com o tempo, ele não apenas adquiriu novas habilidades, mas começou a compreender o design sob uma perspectiva artística. Lyon estava no coração de uma Europa em transformação, e a influência de movimentos como o Art Nouveau começava a surgir nas curvas graciosas das cadeiras e nas formas sinuosas das mesas. Giovanni ficou fascinado. Para ele, a madeira deixava de ser apenas matéria-prima e se transformava em uma tela onde histórias podiam ser esculpidas.

Além das habilidades técnicas, Giovanni também se dedicou a aprender o idioma francês, inicialmente por necessidade, mas depois por paixão. As palavras eram difíceis no início, e ele muitas vezes se sentia como um estranho em meio aos diálogos rápidos de seus colegas. Mas ele persistiu, ouvindo atentamente as conversas na oficina e praticando com os outros imigrantes. Em pouco tempo, passou a se comunicar com confiança, o que lhe abriu novas oportunidades.

Apesar das dificuldades, ele começou a prosperar. Seu esforço não passou despercebido. “Esse italiano tem mãos de ouro,” ouviu Morel comentar certa vez com um cliente. A partir daí, Giovanni passou a ser encarregado de projetos mais desafiadores, como entalhar cabeceiras de cama intricadas e projetar cadeiras ornamentadas. Sua dedicação transformou-o de um simples ajudante em um marceneiro respeitado na oficina. Os anos em Lyon moldaram Giovanni tanto quanto ele moldava a madeira. Ele aprendeu não apenas a ser um melhor carpinteiro, mas também a navegar pelas complexidades de uma nova cultura, a lidar com preconceitos e a se manter firme diante dos desafios. À medida que sua reputação crescia, ele começou a pensar no que mais o mundo poderia oferecer.

Ainda assim, um pensamento constante o acompanhava: aquele não era seu destino final. A França havia sido um porto seguro, uma escola de ofício e perseverança. Mas Giovanni sabia que sua jornada ainda estava longe de terminar. Em suas noites solitárias, ele sonhava com um lugar onde pudesse usar o que aprendera para construir algo maior, algo duradouro. Esse lugar, ele começava a suspeitar, estava do outro lado do oceano.

Em Lyon, Giovanni não apenas aperfeiçoou suas habilidades na marcenaria, mas também teve seu olhar ampliado para a dura realidade dos imigrantes. Ele, que no início se sentira como um simples trabalhador em busca de um futuro melhor, agora se via parte de um grupo marginalizado e explorado. O preconceito contra os italianos era palpável em cada esquina e nas palavras sussurradas pelos franceses quando passavam por eles nas ruas. Trabalhavam com intensidade, mas eram vistos apenas como ferramentas descartáveis — mão de obra barata que preenchia os postos mais sujos e exigentes. Trabalhadores que, no entanto, estavam longe de ser bem-vindos em um país que ainda se via como superior, mais refinado, distante do atraso que, em sua visão, as massas imigrantes representavam.

Giovanni, embora integrado ao sistema de trabalho, jamais se acostumou com o tratamento cruel de seus colegas. Ele via como seus compatriotas eram frequentemente relegados aos piores postos na fábrica, mal pagos, forçados a viver em condições insalubres e a se submeter às humilhações diárias. Enquanto o suor e a poeira da oficina marcavam suas mãos e roupas, ele não podia deixar de notar que seus amigos italianos carregavam não apenas a carga física do trabalho, mas também o peso invisível do desprezo. Era um fardo que Giovanni carregava consigo, sentindo uma mistura de raiva e resignação ao observar o destino de seus companheiros.

Foi nesse contexto de luta e discriminação que ele conheceu Marie Duval, uma jovem francesa de espírito indomável e olhos brilhando com o desejo de escapar das rígidas convenções da sociedade francesa. Marie não era como as outras mulheres da cidade. Crescera em uma família que, embora de classe média, valorizava a liberdade de pensamento, e ela absorvia com paixão as ideias progressistas que circulavam nas universidades e salões de Lyon. Ela frequentava a mesma mercearia onde Giovanni comprava suas provisões e, com o tempo, eles começaram a trocar palavras sobre o cotidiano, sobre a vida e os sonhos que ambos tinham, tão diferentes e, ao mesmo tempo, entrelaçados pela busca por algo melhor.

Marie, com sua visão arrojada, acreditava na transformação pessoal, no poder de reinventar a vida, algo que Giovanni nunca havia considerado até então. Ela não o via como um simples imigrante, um carpinteiro italiano, mas como um homem com um futuro brilhante, capaz de transcender os limites impostos por sua origem e pelas condições de sua classe. Para Giovanni, ela representava tudo o que ele buscava: liberdade, mudança, renovação. Ela também, de alguma forma, viu nele a chama da determinação, aquela força quieta que o levava a trabalhar de forma incansável para melhorar a si mesmo, que o impulsionava a não se conformar com a dura realidade que o cercava. Era como se, ao lado de Marie, ele se visse refletido, e os sonhos que cultivava agora parecessem mais tangíveis, menos distantes.

Em 1880, depois de quatro anos de um romance silencioso, mas profundo, Giovanni e Marie se casaram em uma cerimônia simples, com poucos convidados, mas repleta de um significado que ambos carregariam para sempre. A felicidade, porém, foi breve e cheia de sombras. Mesmo com o cuidado e o amor que dispensaram à sua nova vida, não conseguiram escapar da crueldade do destino. Em poucos meses após o casamento, Marie ficou grávida e, com grande esperança, os dois esperaram pela chegada de seu primeiro filho. No entanto, a gravidez foi marcada por complicações, e o bebê nasceu prematuramente, enfraquecido por uma infecção que se espalhava pelos bairros operários da cidade. A morte do pequeno Luca, aos dois meses de vida, devastou ambos.

A dor de perder o filho foi profunda, mas, ao invés de se separarem, como tantos casais poderiam ter feito sob tamanha tragédia, Giovanni e Marie se uniram ainda mais, compartilhando o luto e o vazio que a morte do filho deixara em suas vidas. Mas a dureza da vida nos bairros pobres de Lyon continuou a cobrar seu preço. Em 1882, Marie ficou novamente grávida, com esperanças renovadas. No entanto, a infecção e a febre que assolaram o bairro atingiram a jovem mãe, que contraiu uma doença que, apesar de todos os esforços dos médicos da época, acabou levando também a segunda criança, uma menina que eles haviam nomeado Sophia. Com a perda da filha, Giovanni e Marie caíram em um abismo de desespero. A morte de dois filhos em tão pouco tempo era uma realidade cruel demais, algo que nenhum sonho de uma vida melhor poderia compensar.

Essa dor imensa os deixou com cicatrizes invisíveis, mas, ao mesmo tempo, uma determinação mais forte. Giovanni, que já havia se deparado com as injustiças da vida como imigrante, agora tinha diante de si a dolorosa realidade da perda, da fragilidade da vida. Marie, embora profundamente marcada pela dor, se recusava a se deixar consumir pelo luto. Ela sabia que a vida, por mais imprevisível e dolorosa, exigia que eles seguissem em frente. Ela olhou para Giovanni, com olhos ainda brilhando de determinação, e disse-lhe que não podiam se permitir afundar em seu sofrimento. "A vida, Giovanni, não é um destino que se espera, mas uma luta que se enfrenta", ela lhe disse com uma firmeza que ele nunca havia visto antes.

Essas palavras, carregadas de dor, mas também de força, foram a âncora que os manteve unidos. Marie se tornou a âncora emocional de Giovanni, e ele, por sua vez, a sustentou fisicamente. No entanto, o peso da tragédia não desapareceu. Giovanni, que começava a se destacar cada vez mais na oficina de marcenaria, agora se via não apenas como um carpinteiro, mas como um homem que tinha que lutar para garantir o futuro de sua família — uma luta que exigia muito mais que apenas habilidade com madeira, mas uma coragem que ele só agora começava a entender de verdade.

A experiência na França foi, sem dúvida, um aprendizado valioso para Giovanni. No entanto, cada dia vivido nas oficinas de Lyon, cada gesto de desprezo de um colega francês, cada olhar atravessado de um patrão que o via apenas como mais um imigrante sem identidade, uma sombra em meio à paisagem industrial, reforçava a amarga realidade de sua condição. Ele havia se tornado um mestre em sua arte, mas, ao mesmo tempo, se via como um estrangeiro condenado a permanecer à margem da sociedade. A lealdade que ele sentia por seus compatriotas italianos, com quem compartilhava os fardos do trabalho e as noites de solidão, não era suficiente para dissolver a barreira invisível que os separava dos franceses. Mesmo com o domínio das técnicas mais avançadas de carpintaria e marcenaria, mesmo com o conhecimento do francês, que ele falava com a fluência de um nativo, Giovanni jamais conseguiria ultrapassar o estigma de ser "o outro", aquele que havia cruzado as fronteiras em busca de algo que só lhe parecia alcançar à custa de sacrifícios imensuráveis.

Com o tempo, os pequenos sucessos que Giovanni conquistara na marcenaria — a criação de móveis finos, a satisfação de um cliente que apreciava o toque refinado de suas mãos — pareciam, paradoxalmente, mais amargos. Ele era respeitado como profissional, mas ainda se via excluído da verdadeira aceitação. O prestígio que sua arte lhe proporcionava não lhe dava acesso aos círculos sociais mais elevados. Era o preço que ele pagava por ser um imigrante. Seu nome italiano, a sonoridade estranha para os ouvidos franceses, sempre o lembrava de que havia uma linha invisível, mas tangível, que jamais poderia ultrapassar. Giovanni sentia-se, de certa forma, condenado a viver em uma terra onde suas habilidades eram reconhecidas, mas sua origem jamais seria inteiramente aceita.

Foi nesse momento de desilusão que, em uma noite fria de inverno, enquanto escutava conversas no bar local, ele ouviu pela primeira vez falar do Brasil — um país distante, nas Américas, onde a terra parecia abundante e as oportunidades pareciam multiplicar-se à medida que o olhar se estendia para as vastas planícies. O que lhe contaram, no entanto, não era apenas a promessa de riqueza, mas a possibilidade de um recomeço. Os relatos que ele ouviu falavam de um novo mundo, repleto de promessas de trabalho, de uma terra onde a mão-de-obra italiana era cobiçada e onde os imigrantes não eram relegados à periferia das grandes cidades, mas vistos como pioneiros, como aqueles que construíam o futuro de um país. Muitos falavam sobre as colônias italianas no sul do Brasil, onde os italianos começavam a se estabelecer, cultivando a terra e erguendo suas próprias comunidades.

Para Giovanni, a ideia de se afastar da França e recomeçar em uma terra desconhecida parecia, naqueles dias, uma chance de se libertar do peso da rejeição. Ele pensou nas promessas que a vida no Brasil oferecia: a chance de ser tratado como igual, de ser reconhecido por sua habilidade e coragem, de erguer sua própria casa e, quem sabe, de construir um nome que fosse respeitado por todos. Ele se imaginou, um homem de 25 anos, com a bagagem adquirida na França, com suas mãos calejadas pela marcenaria, mas com a mente agora aberta para o futuro. O Brasil era uma terra cheia de promessas, um país que parecia ser a fuga definitiva dos grilhões da marginalidade a que estava condenado na velha Europa.

A ideia de migrar para o Brasil parecia algo tangível, quase palpável, como se o destino estivesse finalmente lhe oferecendo uma oportunidade que ele não poderia ignorar. E foi com esse espírito de renovação e de esperança que Giovanni começou a preparar sua partida. A decisão de emigrar foi, sem dúvida, a mais difícil de sua vida. Deixar para trás os amigos com quem compartilhara a dureza da vida em Lyon, a esposa Marie que, embora ainda fosse seu suporte emocional, começava a sucumbir à melancolia de uma vida que nunca parecia ser a que eles haviam sonhado, significava não apenas uma mudança geográfica, mas um rompimento com tudo o que ele havia conhecido até então.

Aos 25 anos, Giovanni não apenas partia para uma nova terra, mas estava também quebrando as correntes invisíveis que o prendiam ao passado. Ele não sabia o que o esperava, mas tinha certeza de uma coisa: o Brasil representava a última chance de transformação, não apenas para ele, mas para sua família, para o legado que ele queria deixar para seus filhos, algo que nunca poderia construir vivendo à sombra de sua identidade imigrante na França.

E assim, com o coração apertado pela saudade, mas também pulsando de uma coragem renovada, Giovanni começou a se preparar para a longa jornada que o levaria para o desconhecido Brasil, um lugar onde o futuro, ao menos nas histórias que ouviu, era seu para ser conquistado. Na véspera de sua partida, enquanto observava o último pôr do sol sobre os telhados de Lyon, ele sentiu uma sensação de liberdade que nunca tinha experimentado antes. Como se, finalmente, estivesse deixando para trás não apenas uma terra, mas também uma vida inteira de limitações e de esperanças frustradas. E a cada passo que dava em direção ao novo, ele se sentia mais leve, como se estivesse, finalmente, começando a viver sua verdadeira história.

Em 1891, Giovanni, Marie e o filho sobrevivente, Luigi, finalmente se viram à beira de uma nova jornada, a qual esperavam com um misto de ansiedade e esperança. A decisão de emigrar para o Brasil não foi tomada de ânimo leve, mas sim carregada de promessas e expectativas. Após anos de luta na França, de perdas e de sonhos adiados, Giovanni sentiu que a travessia para o Brasil representava mais do que uma mudança de destino. Era, talvez, a última chance de garantir um futuro diferente para sua família, de estabelecer um novo começo que fizesse jus ao sacrifício de tudo o que haviam deixado para trás.

No entanto, o que deveria ser o alicerce de uma vida nova logo se mostrou repleto de dificuldades inesperadas. O navio que os levaria ao Brasil, o Andrea Doria, não era apenas um transporte, mas um cenário de promessas e perigos. O barco era grande e imponente, mas também apinhado de imigrantes, muitos deles em busca de um futuro melhor, como Giovanni. Ao longo da viagem, uma sombra de doença se espalhou silenciosamente entre os passageiros. Os primeiros sinais surgiram logo após a partida de Marselha, com febres altas e tosse seca. No início, ninguém deu muita atenção, afinal, viagens transatlânticas eram sempre longas e penosas. Mas, com o tempo, os sintomas se agravaram, e logo se tornaram uma epidemia à bordo.

O sarampo, uma doença de contágio rápido, mostrava-se particularmente devastador em um navio abarrotado de imigrantes, onde os cuidados médicos eram inexistentes. Luigi, o filho de Giovanni, que até então parecia saudável e cheio de vida, começou a apresentar sinais de fraqueza. Marie, incansável em sua dedicação, fazia o possível para proteger o menino, mas a enfermidade espalhava-se com a ferocidade de um incêndio em palha seca. Em pouco tempo, Luigi também estava gravemente adoecido, deixando os pais à beira do desespero. Giovanni, que sobrevivera à fome e à pobreza na Itália e na França, agora enfrentava a perspectiva mais aterradora de sua vida: a possível perda de seu único filho.

Nos corredores escuros do navio, os gritos angustiados de mães desesperadas misturavam-se ao silêncio resignado daqueles que já haviam perdido suas crianças. A atmosfera era sufocante, impregnada pelo cheiro de morte e pela tristeza insuportável de vidas ceifadas prematuramente. Cada dia que passava era um pesadelo prolongado, uma luta constante entre a esperança e o desespero.

Contra todas as expectativas, Luigi começou a reagir. Suas febres diminuíram e, embora enfraquecido, ele sobreviveu. A pequena Anna, ainda mais vulnerável devido à sua pouca idade, também contraiu a doença, mas foi cuidada com tamanha dedicação por Marie que conseguiu resistir. Giovanni, exausto, mas aliviado pela recuperação dos filhos, apertou a família contra o peito em uma promessa silenciosa de que nunca deixaria que algo assim os ameaçasse novamente.

A travessia, contudo, marcou a família de forma indelével. O navio, atravessando o Atlântico como um espectro carregado de dor, tornou-se um símbolo do preço que pagavam por um futuro incerto. Giovanni e Marie, gratos por terem sobrevivido ao pesadelo, sentiam o peso das perdas ao seu redor. Enquanto contemplavam o horizonte que anunciava a chegada ao Brasil, decidiram que, não importando os desafios à frente, a força que os mantivera unidos seria suficiente para vencer qualquer adversidade.

Quando finalmente avistaram a costa brasileira, uma sensação de alívio misturou-se com o medo do desconhecido. O Porto de Santos, uma das portas de entrada para o Brasil, era caótico e desordenado. A esperança de uma nova vida foi rapidamente obscurecida pela realidade dura e imprevisível da chegada. Ao desembarcarem, uma nova humilhação os aguardava: a quarentena obrigatória. Por dias, Giovanni, Marie e os poucos sobreviventes do navio foram mantidos sob vigilância, sem saber se poderiam finalmente tocar em terra firme. A ansiedade crescia a cada hora, enquanto os oficiais do governo inspecionavam meticulosamente cada um dos passageiros, buscando sinais de doenças que poderiam comprometer a saúde pública.

As condições no Porto de Santos eram deploráveis. As famílias de imigrantes aguardavam sob barracas improvisadas, em um clima de tensão crescente. Giovanni, que sempre soubera como lidar com a adversidade, sentia a pressão aumentando. As memórias da viagem — das doenças, das mortes, da dor irreparável pela perda de seu filho — pareciam se misturar com a frustração de não poder seguir em frente. O Brasil, que uma vez parecia um lugar de promessas, agora parecia um labirinto de obstáculos.

Os dias de quarentena passaram lentamente, com Giovanni e Marie refletindo sobre a jornada que haviam empreendido. Eles haviam cruzado o mar, superado tragédias, e, finalmente, chegaram a uma terra nova — mas o que os esperava? Uma sensação de incerteza pesava sobre seus corações, enquanto observavam o movimento frenético de pessoas e cargas no porto. O Brasil era, de fato, vasto e cheio de oportunidades, mas também era imenso, desconhecido e, como tudo o mais, repleto de desafios.

Quando finalmente foram liberados, Giovanni e Marie se aventuraram no interior do país, para o destino prometido aos imigrantes italianos: as colônias no sul. Mas a memória da tragédia e a saudade de Luigi jamais os abandonariam. Eles estavam longe de saber que sua luta para se reerguer em um novo mundo seria ainda mais árdua do que jamais imaginariam. O Brasil, com todas as suas promessas de prosperidade, aguardava-os com seus próprios fantasmas — mas Giovanni sabia que, como homem, ele não poderia mais voltar atrás. O futuro, com todos os seus desafios, era agora a única coisa que restava. E ele enfrentaria tudo com a mesma coragem que o havia levado até ali.

Quando finalmente chegaram a São Paulo, o coração de Giovanni batia mais rápido do que nunca, mas não era apenas a ansiedade de começar uma nova vida que o agitava. Ele estava fascinado pela cidade que se estendia à sua frente, um emaranhado de ruas movimentadas, mercados cheios de cores vibrantes, e uma mistura de rostos de todas as partes do mundo. A cidade, então, era um cenário pulsante de uma modernidade que contrastava fortemente com as montanhas e os campos austeros de Longarone. As primeiras impressões de Giovanni foram aquelas de um lugar vibrante, com uma energia que fazia o espírito se expandir. Era um lugar onde o futuro parecia se desenrolar diante dele, mas onde também a brutalidade das contradições sociais se manifestava de forma crua.

As promessas que haviam atraído milhares de imigrantes, como ele, estavam ali, estampadas nos panfletos e propagandas que falavam de terras férteis e empregos nos cafeeiros. Mas Giovanni logo percebeu que a realidade era muito mais complexa do que ele imaginara. Embora a ideia de se estabelecer nos grandes cafezais fosse tentadora para muitos de seus compatriotas, ele não se sentia atraído por essa vida. As promessas de uma abundância fácil de trabalho no campo pareciam vagas e distantes demais, e Giovanni sabia, no fundo, que a terra jamais seria sua verdadeira aliada. Ele tinha uma habilidade, uma arte refinada e trabalhada com o suor da experiência, e não era nos cafezais que essa arte se manifestaria. Giovanni não era um homem de terra; ele era um homem de madeira.

Foi então que ele tomou a decisão de buscar algo mais alinhado ao que sabia fazer de melhor. Ao se afastar dos campos que tantos imigrantes buscavam, ele se dirigiu para um bairro recém-emergente, que começava a atrair cada vez mais conterrâneos e também outros estrangeiros: o Brás. O bairro ainda estava se formando, mas já exalava uma atmosfera própria, marcada pela presença de comerciantes, artesãos e operários. Era o reduto da imigração italiana em São Paulo, onde os italianos começaram a se estabelecer, estabelecer seus negócios e criar novas famílias, mantendo-se unidos pela língua e pelas tradições.

Ali, Giovanni percebeu que havia uma comunidade que o receberia, não como um simples imigrante, mas como alguém com um ofício. As oportunidades que ele procurava não estavam nos grandes campos de café, mas nas pequenas oficinas e ruas comerciais do Brás, onde o som do martelo sobre a madeira, o cheiro da serragem e o esforço silencioso de um artesão moldavam o caráter de um lugar. Ele então arrumou seu pequeno estúdio, uma oficina modesta, mas cheia de potencial, onde as mãos calejadas por anos de trabalho duro na França encontraram um novo lar.

A transformação do Brás era rápida, e Giovanni sentia que poderia se tornar uma parte fundamental dela. A demanda por móveis e objetos de decoração estava crescendo entre os imigrantes italianos que se estabeleciam na cidade, muitos dos quais ainda estavam acostumados à vida no campo e à simplicidade de suas casas na Itália. Ele percebeu que poderia aplicar os conhecimentos adquiridos na França, onde aprendera a trabalhar com as mais sofisticadas técnicas de marcenaria, para criar peças que não apenas atendiam às necessidades de seus compatriotas, mas que também traziam um toque de arte para a vida simples dos imigrantes.

Mas, como tudo na vida, os desafios eram constantes. Giovanni logo se viu enfrentando as dificuldades de um mercado competitivo, com vários outros imigrantes tentando conquistar seu espaço. O bairro do Brás, embora florescendo, ainda estava longe de ser o centro próspero que viria a ser nas décadas seguintes. O trabalho era escasso, os preços dos materiais variavam frequentemente e, muitas vezes, Giovanni tinha que negociar com fornecedores que cobravam o preço da escassez. Além disso, ele sabia que ainda havia uma barreira invisível que o separava dos paulistanos nativos — o preconceito que muitos imigrantes enfrentavam, não apenas de outras etnias, mas também de uma elite brasileira que via os italianos como trabalhadores inferiores.

Porém, Giovanni, com sua perseverança inabalável e o caráter forjado pelas dificuldades passadas, não se deixou abater. Ele conheceu a fundo a sua arte e percebeu que, para prosperar, deveria trazer algo único para o mercado. Ele começou a elaborar móveis e objetos não apenas utilitários, mas que carregavam uma beleza estética que refletia a tradição italiana, mas também o toque moderno que ele aprendera na França. A sua carpintaria passou a ser procurada por aqueles que queriam mais do que simples mobília: eles queriam um pedaço de arte, algo que representasse o sonho de uma nova vida em terras distantes.

A fama de Giovanni se espalhou lentamente pelo Brás e, com o tempo, ele foi ganhando a confiança de uma clientela fiel. No coração de São Paulo, uma cidade em constante crescimento e mudança, ele construiu não apenas móveis, mas também sua própria reputação. Ele já não era mais um simples imigrante italiano que chegara ao Brasil com o peso da dor da perda e da saudade. Ele era um mestre carpinteiro, um homem que transformava a madeira em obras-primas, que traziam um pedaço de sua Itália para o novo mundo. Giovanni, agora mais do que nunca, sentia que sua luta tinha valido a pena. E, por mais que ainda restassem obstáculos, ele sabia que, com sua habilidade e determinação, o Brás seria seu ponto de partida para uma nova vida, em uma nova terra, onde a sua arte e o seu espírito encontrariam um lar.

A "Fábrica de Móveis Lorenzo", pequena e modesta no início, se transformou em um verdadeiro refúgio de criatividade e habilidade sob as mãos de Giovanni. Quando ele abriu as portas da oficina, ela era um espaço simples, com paredes de madeira não tratada, onde o cheiro da serragem pairava no ar, e as ferramentas que ele trouxera da França – algumas já gastas e outras novas – se alinhavam em bancadas rústicas. A produção, no começo, era voltada para o mobiliário simples: mesas, cadeiras e armários de madeira, peças práticas que atendiam à crescente demanda dos imigrantes italianos que chegavam a São Paulo. Eram móveis funcionais, desenhados para sobreviver à pressão de uma vida sem grandes luxos, mas ainda assim, Giovanni tinha algo a mais em mente. Ele não queria apenas criar utilitários, ele queria criar beleza.

Foi a partir de um projeto simples de uma cama de casal, encomendada por um imigrante italiano que se estabelecera em uma das vielas do Brás, que Giovanni teve a primeira grande ideia. Ele percebeu que as peças de mobiliário podiam ser mais do que apenas funcionais. Ele poderia aplicar a sofisticação e a elegância das tradições artísticas que aprendera nas oficinas de Lyon, misturando o estilo clássico europeu com o toque único da cultura italiana que ele carregava em sua alma. Introduziu ornamentos refinados, delicados entalhes nas cabeceiras das camas, arabescos nas gavetas e até detalhes inspirados nas igrejas e nos palácios da Itália. O resultado foi um mobiliário que parecia ter saído das mãos de um mestre artesão, feito não apenas para ser usado, mas para ser admirado. As linhas das peças de Giovanni eram elegantes, mas imbuídas de um toque de rusticidade, como se a madeira ainda carregasse consigo o espírito das montanhas de Longarone.

Logo, sua reputação se espalhou pelas ruas do Brás, e, pouco a pouco, também alcançou os bairros mais abastados da cidade. A "Fábrica de Móveis Lorenzo" tornou-se sinônimo de qualidade e sofisticação. Giovanni não se contentava em atender apenas os imigrantes; ele desejava ir além. Ele queria conquistar os paulistanos nativos, especialmente os novos ricos que emergiam da rápida industrialização de São Paulo. Ele sabia que a cidade estava mudando, que novas classes sociais estavam surgindo, e que sua chance de prosperar dependia de sua habilidade em se adaptar às demandas da elite emergente. Os paulistanos mais ricos, ávidos por mostrar seu status, procuravam móveis que não fossem apenas peças utilitárias, mas símbolos de seu novo poder e riqueza. Giovanni foi perspicaz o suficiente para perceber essa demanda.

Foi assim que ele passou a introduzir, de forma gradual, os elementos do estilo rococó e o neoclássico nas peças que produzia. As mesas de jantar ganharam detalhes intrincados, com arabescos dourados que remetiam aos palácios de Veneza e Roma. As estantes, projetadas para as bibliotecas dos novos ricos, eram adornadas com colunas esculpidas e superfícies polidas que brilhavam sob a luz suave dos salões. Ele não apenas criava móveis, mas verdadeiras obras de arte, peças que falavam do gosto refinado e da ascensão social dos que as compravam. Seu trabalho foi rapidamente reconhecido pela alta sociedade paulistana, que começou a encomendar peças personalizadas para seus palacetes, que começavam a surgir nas áreas mais nobres da cidade, como a Avenida Paulista.

Em 1895, Giovanni foi convidado para trabalhar em um projeto grandioso: o mobiliário de uma nova igreja que estava sendo erguida no bairro do Bexiga, um centro vibrante da comunidade italiana em São Paulo. A igreja, dedicada a São Pedro, seria um marco na cidade, um símbolo da fé que unia tantos imigrantes. Giovanni se sentiu profundamente honrado com o convite, e isso não apenas fortaleceu sua posição como mestre carpinteiro, mas também lhe deu a oportunidade de trabalhar em um projeto que realmente representava a fusão de suas raízes italianas com sua nova vida no Brasil. O altar da igreja foi esculpido por suas mãos, delicadamente adornado com entalhes que capturavam a essência da religiosidade e da história da Itália. As cadeiras de madeira, projetadas para os fiéis, eram simples, mas elegantes, refletindo a mistura de austeridade e beleza que ele tanto prezava.

O sucesso de Giovanni não se limitava apenas aos móveis que ele produzia para os imigrantes ou para a classe alta de São Paulo. Ele começou a ser chamado para trabalhar em projetos ainda mais desafiadores, como o mobiliário de grandes palacetes na Avenida Paulista, onde a elite paulistana consolidava sua presença. As casas da alta sociedade não eram apenas espaços de moradia; eram palácios que representavam a ascensão de uma nova classe social, e esses espaços exigiam móveis à altura de sua grandiosidade. Giovanni se destacou em cada um desses projetos, criando peças que deslumbravam pela beleza e pela funcionalidade.

As encomendas começaram a chegar de todas as partes da cidade, e a oficina de Giovanni passou a ser um lugar de constante movimento. Ele começou a contratar ajudantes e treinou alguns dos filhos dos imigrantes italianos, transmitindo sua arte e sua visão a uma nova geração. A “Fábrica de Móveis Lorenzo” se expandiu, e Giovanni viu seu nome, que antes era sinônimo de um simples carpinteiro, se tornar uma marca registrada da sofisticação paulistana.

Com o tempo, as peças criadas por Giovanni não eram mais apenas móveis; elas se tornaram símbolos de uma nova era, a era da industrialização e da modernidade de São Paulo, mas também um reflexo da tradição e da alma dos imigrantes que contribuíam para essa construção. Ele, um homem simples vindo das montanhas de Longarone, se tornara uma figura central no coração da cidade, respeitado não apenas por sua habilidade, mas pela sua capacidade de transformar um ofício humilde em uma arte admirada por todos.

E assim, a história de Giovanni Lorenzo se entrelaçou com a própria história de São Paulo, uma cidade que, tal como ele, havia sido moldada pela persistência, pelo trabalho árduo e pelo desejo incessante de construir um futuro melhor.

Os anos que seguiram à chegada de Giovanni e sua família ao Brasil foram, em muitos aspectos, uma luta silenciosa contra o peso da saudade. A vastidão das terras paulistas, com suas paisagens exóticas e seu ritmo frenético, contrastava fortemente com as montanhas suaves de Longarone. A saudade de sua terra natal era um fardo diário que pesava em seu coração, uma sensação de perda constante que parecia não diminuir, apesar das promessas de um futuro melhor. A falta do cheiro familiar das pinheirais e o som do rio Piave, que corria por entre as aldeias, parecia ecoar em sua mente a cada novo amanhecer.

Entretanto, foi a morte de Marie, sua amada esposa, em 1905, que colocou sua resistência à prova. Marie, com sua personalidade forte e espírito livre, sempre fora a âncora emocional de Giovanni. Ela era a luz que o guiava quando as dúvidas sobre o futuro o assombravam e o consolo que ele procurava nas noites longas, quando a solidão da cidade grande ameaçava consumi-lo. Quando ela adoeceu, a febre tifoide tomou conta de seu corpo com uma velocidade implacável. Ele a viu, debilitada, lutar contra a doença, os olhos ainda cheios de vida, mas o corpo fragilizado. Mesmo com todos os cuidados que ele e os médicos conseguiram proporcionar, Marie não resistiu, e ela se foi.

Sua morte deixou um vazio profundo no coração de Giovanni. Os dias seguintes foram uma sequência de uma dor esmagadora, marcada pela perda de não apenas a esposa, mas também de uma parte de si mesmo. A vida na cidade de São Paulo, antes uma terra de promessas, agora se tornara um lugar de solidão. As ruas movimentadas, a cultura pulsante e a energia frenética da metrópole pareciam ainda mais insuportáveis agora, sem a presença de Marie ao seu lado.

No entanto, como um homem de fé, Giovanni procurou refúgio no que lhe era mais sagrado: sua crença religiosa. A igreja que ele ajudara a construir, um marco da comunidade italiana na cidade, tornou-se o seu porto seguro. Os domingos, antes um dia de descanso e conforto familiar, agora eram ocasiões de reflexão e de busca por consolo. Giovanni encontrou nas preces um meio de lidar com a dor que o consumia. Ele passava horas em silêncio na igreja, os olhos voltados para o altar, buscando nas palavras sagradas o conforto que não encontrava mais na vida cotidiana. Era ali, rodeado pela madeira polida das bancadas que ele mesmo havia projetado, que ele sentia um vínculo com a esposa falecida. Como se, de alguma maneira, a presença de Marie ainda estivesse presente, nas formas e nos detalhes que ele tinha criado com tanto carinho.

A comunidade italiana, que começava a florescer ao seu redor, também ofereceu um consolo inesperado. Os imigrantes, que haviam partido de terras distantes com esperanças e sonhos semelhantes aos de Giovanni, se tornaram uma família substituta para ele. Havia um senso de irmandade entre eles, uma compreensão silenciosa do que significava a perda, a luta diária para se manter em pé, e a força que era necessária para seguir em frente. Eles compartilhavam mais do que um idioma comum; compartilhavam uma história de superação e resiliência.

O bairro do Brás, que antes havia sido apenas um local de trabalho, agora se tornava para Giovanni um lugar de pertencimento. Ele se tornou uma figura central na vida dos italianos que ali viviam. Não apenas pelo seu trabalho como carpinteiro, mas também pela sua postura de líder silencioso, alguém que havia enfrentado suas próprias batalhas e superado tantas adversidades. Ele foi chamado para organizar festas tradicionais italianas, para ser conselheiro das famílias que, como ele, lutavam para manter vivas suas tradições e valores, longe de sua terra natal.

Com o tempo, Giovanni começou a perceber que, embora a dor da perda nunca desaparecesse por completo, ele podia encontrar novas formas de preencher o vazio deixado por Marie. A sua fé, os laços que criara com os outros imigrantes e o profundo amor por sua arte foram as forças que o mantiveram em pé. Ele transformou sua dor em força criativa, dedicando-se ainda mais ao seu trabalho, criando peças de mobiliário que, agora, carregavam a emoção e a memória de sua perda.

No entanto, apesar das circunstâncias difíceis, Giovanni nunca perdeu sua fé em um futuro melhor. Ele soubera, desde a chegada ao Brasil, que a vida nunca seria fácil, mas que o esforço, a dedicação e a habilidade poderiam transformá-la. Ele, assim como os outros imigrantes, havia deixado para trás um mundo que não oferecia muitas possibilidades, mas encontrara, na terra desconhecida, a chance de construir algo novo. E, ao fazer isso, ele manteve viva a memória de Marie, que sempre acreditara no poder do recomeço e na capacidade humana de se reinventar.

À medida que o tempo passava e Giovanni se consolidava como um dos maiores carpinteiros de São Paulo, seu filho Luigi, agora um jovem adulto, começava a se destacar de maneira notável. Luigi, que cresceu no seio de um lar de imigrantes, nunca teve a chance de esquecer as dificuldades que sua família enfrentara nos primeiros anos de chegada ao Brasil. No entanto, ao invés de ser consumido por essas lembranças, ele as usou como combustível para a sua própria determinação em criar algo ainda mais grandioso do que seu pai. Desde a infância, Luigi havia demonstrado um talento nato para a engenharia e a mecânica, fascinado pelas engrenagens das máquinas e pelas possibilidades que elas ofereciam. Enquanto Giovanni se concentrava nos aspectos artísticos da carpintaria, Luigi começava a vislumbrar um futuro em que a tradição do trabalho manual pudesse ser aprimorada pelas inovações tecnológicas que estavam transformando o mundo ao seu redor.

Aos 18 anos, Luigi foi enviado por Giovanni para a Escola Técnica de São Paulo, um centro de aprendizado que se tornaria o alicerce de sua formação. Lá, ele aprendeu sobre as mais novas técnicas de manufatura, o uso de máquinas e ferramentas de última geração, e, talvez o mais importante, a aplicação desses conhecimentos na prática. Quando voltou para a oficina de seu pai, Luigi trouxe consigo não apenas um diploma, mas uma visão renovada sobre o futuro do trabalho artesanal. Ele compreendia a importância de preservar a qualidade das criações de Giovanni, mas também sabia que a chave para o sucesso estava em combinar a arte tradicional com as novas tecnologias.

Foi nesse contexto que Luigi se tornou o braço direito de Giovanni. Ele introduziu inovações revolucionárias na oficina, com a ajuda das máquinas que ele trouxera da Europa, como serras elétricas e lixas automáticas, que agilizaram a produção sem comprometer a precisão e o acabamento das peças. A oficina, que antes era um espaço modesto onde Giovanni criava com suas próprias mãos móveis de madeira esculpida, rapidamente se transformou em um ateliê moderno, eficiente e capaz de atender a uma demanda crescente. Luigi também treinou outros carpinteiros e ajudou a estabelecer um sistema de trabalho mais organizado, onde cada peça de mobiliário passava por etapas específicas, desde a concepção até o acabamento final. Ele supervisionava de perto todos os processos, sempre buscando a excelência e a perfeição, mas também abraçando as oportunidades que a industrialização oferecia.

Com a entrada das máquinas e da eficiência no processo de produção, a “Fábrica de Móveis Lorenzo” se tornou muito mais do que um simples negócio. O ateliê se transformou em um símbolo de resiliência, uma prova de que os imigrantes italianos não apenas sobreviveriam no Brasil, mas prosperariam. A oficina não era apenas uma fonte de renda para Giovanni e Luigi, mas também para dezenas de outros italianos recém-chegados que viam na “Fábrica de Móveis Lorenzo” uma chance de recomeçar, uma oportunidade de construir um futuro melhor para suas famílias. Muitos deles tinham histórias semelhantes às de Giovanni: tinham deixado suas terras na Itália em busca de uma vida mais digna, mas agora, em São Paulo, encontravam-se diante da dura realidade da imigração. No entanto, dentro da oficina, sentiam que pertenciam a algo maior, a uma comunidade que compartilhava não apenas o esforço diário, mas também o sonho de um futuro mais próspero.

Luigi, com sua visão de futuro, também soubera expandir os horizontes da empresa. Ele buscou diversificar a produção, introduzindo novos estilos de móveis que atendiam à crescente classe média brasileira. A produção de móveis finos para igrejas e palacetes, iniciada por Giovanni, continuou a prosperar, mas Luigi também começou a se aventurar na criação de móveis mais acessíveis para as famílias que viviam nos bairros emergentes de São Paulo. Seus móveis, de um design elegante e, ao mesmo tempo, prático, passaram a ser símbolo de status para a nova classe média paulista. Ao mesmo tempo, os projetos mais luxuosos que Giovanni ainda supervisionava continuaram a atrair os mais abastados, fazendo com que a “Fábrica de Móveis Lorenzo” se tornasse uma das mais reconhecidas da cidade.

O crescimento da oficina não se deu apenas no aspecto material, mas também na qualidade de vida da comunidade italiana em São Paulo. Giovanni, sempre guiado por seu espírito de solidariedade, criou um ambiente no qual seus empregados eram tratados com dignidade e respeito. Muitos dos trabalhadores que começavam a vida como simples operários foram promovidos a carpinteiros e, com o tempo, abriram suas próprias oficinas ou se tornaram supervisores na “Fábrica de Móveis Lorenzo”. Para Giovanni e Luigi, o sucesso não estava apenas no lucro, mas na capacidade de ajudar aqueles que, como eles, haviam atravessado mares e continentes em busca de uma vida melhor. Com o tempo, o ateliê tornou-se um pilar da comunidade italiana no Brás, um lugar onde o trabalho árduo e a solidariedade prevaleciam, uma verdadeira família forjada não apenas pelo sangue, mas também pela luta e pelos sonhos compartilhados.

A "Fábrica de Móveis Lorenzo", agora próspera, era um símbolo do que a dedicação, a visão e a colaboração podiam realizar. Giovanni, já envelhecido, viu com orgulho como seu legado era preservado e expandido por seu filho, que se tornara não apenas seu sucessor, mas seu parceiro em todos os sentidos. Quando Giovanni olhava para o sucesso da oficina, via não apenas os móveis lindamente esculpidos, mas também as histórias de vida que ali se entrelaçavam. Cada peça que saía da “Fábrica de Móveis Lorenzo” era um testemunho da resiliência de uma família, de uma comunidade e, acima de tudo, de um imigrante que, com suas próprias mãos, construiu seu futuro em uma terra estrangeira.

Nos anos 1930, Giovanni Lorenzo já era uma figura amplamente reverenciada na cidade de São Paulo, um verdadeiro mestre artesão que havia conquistado não apenas o respeito de sua comunidade, mas também a admiração de clientes abastados e figuras de destaque na sociedade paulista. Sua obra, que inicialmente começara em um pequeno ateliê no bairro do Brás, havia se espalhado por toda a cidade, e seus móveis elegantemente esculpidos eram vistos não apenas em lares de classe alta, mas também em igrejas, escolas e até mesmo no mobiliário de edifícios públicos. Cada peça que saía de sua oficina trazia consigo a alma de um imigrante que atravessara oceanos e continentes para construir uma nova vida, e agora sua habilidade e dedicação se refletiam nas formas refinadas e nas técnicas de carpintaria que se tornaram sua assinatura.

Giovanni, agora com mais de 70 anos, havia se tornado sinônimo de excelência no ofício. Seus móveis não eram apenas objetos funcionais, mas também obras de arte que evocavam o esplendor da tradição italiana, misturada com as influências do novo mundo que ele havia adotado como lar. Suas criações ornamentadas com detalhes intrincados, seus trabalhos em madeira maciça e suas entalhes delicados tornaram-se cobiçados por aqueles que podiam pagar por luxo, mas também eram admirados por quem entendia o valor do trabalho manual. A sua habilidade e o reconhecimento que conquistara ao longo de sua vida o transformaram em uma lenda viva da carpintaria paulistana, e sua oficina, embora reduzida em tamanho, continuava a produzir peças de uma qualidade incomparável.

No entanto, Giovanni não se via como uma simples figura do passado, um mestre artesão que se rendia à tranquilidade da aposentadoria. Muito pelo contrário, ele se sentia impelido a continuar sua obra, a perpetuar o legado de sua família e de sua comunidade. Sentia que seu trabalho estava longe de ser concluído e que, enquanto fosse capaz, deveria transmitir os conhecimentos que acumulou a outros, especialmente aos jovens que começavam a se interessar pelo ofício da carpintaria. Ele acreditava que o verdadeiro valor de um mestre não estava em acumular riqueza ou fama, mas em transmitir seu conhecimento e experiência, em forjar novas gerações de trabalhadores qualificados que continuariam o que ele iniciara.

Por isso, ele dedicava grande parte de seu tempo ao treinamento de jovens aprendizes que chegavam até sua oficina, vindos de diferentes bairros de São Paulo, muitos deles filhos de outros imigrantes italianos ou de brasileiros que viam na carpintaria uma chance de conquistar uma vida melhor. Giovanni acreditava profundamente no valor do aprendizado prático e na disciplina que o ofício exigia. Sob sua orientação, os jovens aprendiam a trabalhar a madeira com a mesma paixão e respeito com que ele sempre a tratara. Mas mais do que isso, Giovanni ensinava-lhes sobre a história do trabalho manual, o significado de cada entalhe e de cada corte, e como a carpintaria poderia ser uma forma de expressão pessoal, um modo de deixar uma marca indelével no mundo, como ele fizera ao longo de sua vida.

Entre os aprendizes que Giovanni formou ao longo dos anos, muitos se tornaram mestres em seus próprios direitos, e alguns até abriram suas próprias oficinas, dando continuidade ao legado do mestre Lorenzo. A "Fábrica de Móveis Lorenzo" ainda existia, embora sob a liderança de seu filho Luigi e de novos gerentes que Giovanni havia treinado com o mesmo cuidado e atenção aos detalhes que ele exigia de si próprio. Giovanni, contudo, preferia manter-se ativo dentro da oficina, supervisionando os projetos mais importantes e assegurando que os padrões que ele estabelecera fossem mantidos, mesmo com o crescimento do negócio e a modernização do processo de produção.

Além de seus móveis, Giovanni também continuava a ser procurado por projetos especiais, como a criação de mobiliário para igrejas e escolas, onde sua habilidade em trabalhar com madeira e sua atenção ao simbolismo e à função do mobiliário religioso garantiam-lhe um lugar de destaque. Um de seus maiores projetos na década de 1930 foi a renovação do mobiliário da Igreja de São Bento, um dos templos mais importantes de São Paulo. Giovanni projetou um altar de madeira que mesclava o estilo barroco italiano com o moderno, criando uma peça que seria admirada por gerações. Ele também dedicou seu tempo ao restauro de móveis antigos, trabalhando com esmero para devolver sua beleza original, ao mesmo tempo em que integrava elementos contemporâneos nas novas peças, sem perder a essência de seu trabalho.

Entretanto, sua verdadeira paixão continuava sendo a preservação do ofício. Ele ainda se reunia frequentemente com outros mestres carpinteiros, discutindo técnicas, trocando histórias e ensinando os segredos que ele mesmo aprendera ao longo de décadas. Giovanni sabia que sua vida estava chegando ao fim, mas sentia que seu espírito continuaria a viver através daqueles a quem ele havia transmitido sua arte. Ele não via sua oficina como apenas um negócio, mas como um templo da tradição artesanal, um lugar onde o trabalho manual e a dedicação à perfeição se entrelaçavam, criando algo mais duradouro do que qualquer riqueza material.

Com o peso dos anos, Giovanni sentiu que sua força física já não era mais a mesma. Seu corpo, marcado pelo tempo e pelo trabalho árduo, exigia mais descanso do que antes. A saudade de sua terra natal, que nunca o deixara completamente, agora se tornava uma companhia constante. Porém, ele encontrou conforto na comunidade que havia ajudado a construir. Sua relação com Luigi e seus netos, que começavam a se interessar pelo ofício de carpinteiro, era profunda e solidificada pelo respeito mútuo e pelo amor pela profissão. Giovanni não temia a morte; ele sabia que, de certa forma, sua vida se perpetuaria nas mãos daqueles que, como ele, haviam aprendido a trabalhar a madeira e a construir algo duradouro com suas próprias mãos.

Assim, enquanto a cidade de São Paulo continuava a crescer e a se modernizar, Giovanni Lorenzo, com sua habilidade, sua fé e sua dedicação, se tornava uma lenda viva. O homem que um dia saíra das montanhas de Longarone, com nada mais do que suas ferramentas e sua coragem, agora via seu nome imortalizado em cada móvel que saía de sua oficina. A "Fábrica de Móveis Lorenzo" continuava a prosperar, mas, para Giovanni, o maior legado não estava nas riquezas acumuladas, mas no reconhecimento do valor do trabalho manual e na criação de uma tradição que perduraria por gerações.

Em 12 de abril de 1939, aos 84 anos, Giovanni Battista Lorenzo faleceu serenamente em sua casa, no bairro do Brás. Seus olhos, que já haviam visto tanto — da fria e isolada Longarone às vastas terras de São Paulo — se fecharam pela última vez com a tranquilidade de um homem que soubera, ao longo de sua vida, enfrentar tempestades e superar barreiras. A morte de Giovanni, como ele sempre desejara, foi silenciosa, sem dor, rodeado pelas paredes de madeira que ele mesmo criara, nas quais tantas memórias de sua jornada estavam gravadas.

Quando a notícia de sua partida se espalhou, uma onda de pesar tomou conta da cidade. O velório, realizado na Igreja Nossa Senhora da Paz, foi uma celebração de vida, mais do que de luto. Pessoas de todas as classes sociais, oriundas dos cantos mais humildes até os mais altos círculos paulistanos, compareceram para prestar suas homenagens a aquele homem cuja trajetória parecia transcender qualquer fronteira. Entre os presentes estavam seus filhos, netos, colegas de trabalho, ex-aprendizes e até alguns que haviam sido tocados apenas pela beleza dos móveis que ele criara, mas que sentiam que, de alguma forma, Giovanni Lorenzo havia moldado algo mais dentro deles.

Os bancos da igreja, que normalmente ficavam vazios ou eram preenchidos por uma pequena multidão, estavam agora lotados. A simplicidade da cerimônia, no entanto, não tirou a grandiosidade do momento. Havia uma aura de respeito profundo que pairava sobre todos, como se cada pessoa presente sentisse que estava diante de algo imortal. Giovanni não era apenas um mestre carpinteiro; ele era um símbolo da persistência, do sonho que se materializava com as mãos calejadas, do homem que deixou sua marca no Brasil, assim como naqueles que o conheceram.

Luigi, seu filho e braço direito, foi quem escolheu as palavras para o epitáfio que marcaria sua sepultura. A frase que ele escolheu era simples, mas poderosa, refletindo o homem que Giovanni fora e o impacto de sua vida naqueles que o cercaram. "De Longarone a São Paulo, suas mãos construíram sonhos, sua coragem edificou vidas." Essas palavras não apenas encapsulavam o espírito da jornada de Giovanni, mas também evocavam os milhares de imigrantes como ele, cujos nomes raramente apareciam nos livros de história, mas cujas contribuições, silenciosas e persistentes, ajudaram a erigir um país inteiro.

As mãos de Giovanni, aquelas mesmas mãos que uma vez moldaram a madeira com precisão e paixão, estavam agora, ironicamente, livres das ferramentas que ele usava para criar beleza e funcionalidade. Elas descansavam pacificamente, mas em sua trajetória, elas haviam tocado o coração de milhares de brasileiros, imigrantes e nativos, moldando não apenas a madeira, mas também a alma de uma nação em formação.

O legado de Giovanni Lorenzo não estava apenas nas peças de mobiliário que ele criara ao longo de sua vida, mas na rede de relações que ele estabelecera, na comunidade italiana que ajudara a construir e na lição de que, com coragem, trabalho árduo e uma fé inabalável, era possível, sim, criar um novo futuro, mesmo quando tudo parecia perdido. Sua oficina, que continuava a prosperar sob a direção de seu filho Luigi e dos aprendizes que ele havia treinado, era mais do que um simples negócio; era um símbolo de resiliência e adaptação, um local onde o espírito do imigrante encontrava expressão.

Durante os dias que se seguiram ao velório, a cidade de São Paulo viveu um luto coletivo. Muitos paulistanos, especialmente os de origem italiana, viam em Giovanni Lorenzo o retrato de seu próprio esforço e sacrifício. Como ele, muitos haviam chegado ao Brasil em busca de uma vida melhor, e como ele, muitos haviam construído seus sonhos com as mãos calejadas pelo trabalho árduo. A morte de Giovanni não foi apenas a perda de um mestre carpinteiro, mas também a perda de uma geração inteira de homens e mulheres que haviam contribuído para a fundação de uma nova sociedade.

A "Fábrica de Móveis Lorenzo" continuou a prosperar nos anos seguintes à sua morte, mas Giovanni não seria esquecido. Sua história foi contada e recontada, não apenas pelos que o conheceram diretamente, mas por aqueles que, de alguma forma, se sentiram conectados a ele. Seu nome se tornou sinônimo de dedicação, de esforço imensurável e de um sonho que se tornara realidade. As gerações seguintes dos Lorenzo, que haviam crescido em sua oficina, mantiveram vivas suas tradições e continuaram a produzir móveis que levavam consigo não apenas a qualidade da madeira, mas também o espírito do homem que um dia, com coragem, atravessou os mares para buscar algo mais.

No fundo, o maior tributo a Giovanni foi dado pelas palavras de sua própria filha, Maria, que, em um discurso durante a missa de 30º dia de sua morte, disse: "Meu pai nos ensinou, mais do que a trabalhar a madeira, a trabalhar os nossos próprios sonhos." E, assim, o homem que viera de Longarone para construir uma nova vida em São Paulo continuava a construir sonhos, não apenas de madeira, mas de pessoas, de uma cidade, de um país que se fazia, peça por peça, ao ritmo de suas mãos laboriosas. E, em cada canto daquele Brasil que ele ajudou a moldar, Giovanni Lorenzo deixava um pedaço de si — uma obra que jamais se desfaria.

Nota do Autor

A saga de Giovanni Battista Lorenzo é, antes de tudo, uma homenagem à coragem, resiliência e determinação de milhões de imigrantes que, entre o final do século XIX e o início do século XX, cruzaram oceanos em busca de uma nova vida. Embora esta obra seja fruto da minha imaginação, ela foi inspirada por eventos reais, vividos por pessoas cuja história ecoa na trajetória fictícia de Giovanni e sua família.
Durante a pesquisa para este trabalho, mergulhei nas histórias de imigrantes italianos que deixaram suas aldeias nas montanhas do Vêneto, na Lombardia e em outras regiões da Itália, enfrentando incertezas e dificuldades inimagináveis. Ao chegar ao Brasil, essas famílias não encontraram as promessas de prosperidade imediata que haviam lhes sido vendidas, mas sim desafios de adaptação, isolamento e, muitas vezes, condições de trabalho duras e exploradoras. A saga de Giovanni reflete esse percurso — o embate entre sonhos e realidade, a luta diária e o desejo inquebrantável de criar um futuro melhor para seus descendentes.
Embora Giovanni Battista Lorenzo e sua família sejam personagens fictícios, suas experiências foram construídas a partir de uma miríade de relatos reais. Conheci a história de um carpinteiro italiano que, como Giovanni, transformou-se em um mestre artesão no Brasil e cuja obra permanece viva em igrejas e lares paulistanos. Ouvi também sobre famílias que perderam entes queridos durante a travessia do Atlântico, mães que enterraram filhos em terras desconhecidas e comunidades inteiras que, mesmo à distância de suas pátrias, recriaram uma Itália vibrante em solo brasileiro.
Esta história é, portanto, uma ficção fundamentada na verdade universal das migrações humanas: o anseio por uma vida melhor, a busca incessante por dignidade e a capacidade do ser humano de adaptar-se e florescer em meio às adversidades. Giovanni representa todos aqueles que, com coragem e trabalho árduo, não apenas moldaram madeira ou construíram casas, mas também esculpiram os alicerces de uma sociedade diversa e próspera.
Espero que esta obra inspire os leitores a refletirem sobre o valor e o legado desses pioneiros e a reconhecerem a beleza e a importância das histórias de seus próprios ancestrais. Afinal, cada um de nós carrega, de algum modo, a força daqueles que vieram antes de nós e, como Giovanni Battista Lorenzo, ousaram sonhar com um futuro melhor.

Com gratidão e respeito,

Dr. Luiz C. B. Piazzetta


quarta-feira, 6 de agosto de 2025

El Camino de le Stagion: La Vita de ´na Cròmera


 El Camino de le Stagion: 

La Vita de ´na Cròmera


Maria Santina lei la ze nassesta ´ntel 1835, ´nte 'na picolina località de Val de Cadore, uno dei posti pì béi de la provìnsia de Beluno, su ´ntel nord de l’Itàlia. El vale, incantonà soto l’ombra de le maestose Dolomiti, pareva ‘na pintura viva, con le montagne dai cimi rosàstro che se scomissiava col celo e coi boschi che cambiava color seguendo el ritmo de le stagion. La zera ‘na tera bèa ma dura. Là, el brusìo de l’aqua dei fiumi che se sentiva tra i prati se mescolava con el canto dei osei, mentre l’odor de tera fresca te dava la promessa — no sempre mantegnù — de abondansa.

Fiola de contadin, Maria la ze cressiù ´nte ‘na vita che ogni matina ghe portava la fatica. Le so man picinine le se ga insegnà presto con el toco rùstego de la tera e con i strumenti de legno che, anca se semplissi, i zera fondamentai par sopraviver. La insertessa de le recolte, minassià da piove improvisà o sechie lunghe, la gavea fato forti tuti i abitanti del vale. ´Nte ‘l inverno, quando la neve la copriva tuti i campi e le montagne le pareva inassessìbili, la vila la se tornava un refùgio de resistensa. Le famèie le stava tute al calor del fogo, tentando de sbatar via el fredo che no finìa mai. Maria, anca zòvene, la ga imparà a viver cussì: con forsa e con saviessa.

In quei ani, tuto el Cadore el zera parte del grande impero Austro-Ungàrico, ´na realtà che segnava tanto la vita dei cadorini. Soto el domìnio imperial, le tere le zera aministrà da ´na burocrassia lontan, che poco ghe importava dei problemi de le comunità montanare. L’identità italiana dei abitanti del vale la ghe convivea con le imposission culturai e politiche del impero, creando un senso de identità mescolà.

La resolussion che se prendeva a Viena le zera lontan come le montagne, e i contadin i gavea de far tuto par conservar le so tradission, el so parlar e la so maniera de viver. Ma la povertà e la mancansa de oportunità la zera ben pì forte che ste question polìtiche. Tante famèie le gavea de partir, siapando strade lontan par poder sostentar la vita.

Questo senàrio el ga insegnà a Maria Santina e a tanti altri a tegner viva la speransa, anca quando le condission zera le pì dure. Le radise taliane dei cadorini le restava forte, ma le resolussion lontan dei governanti no cambiava el fato: le famèie le ga sempre dovesto trovar novi modi de viver, spesso a dispeto de le confin.

La vita ´ntel Valle de Cadore la zera sempre ´na lota. Par tanti cadorini, laorar su la tera zera dura, e no bastava mai par mantegner la famèia. Le tere, anca se qualcuna la zera fèrtile, zera poche e no sempre generose. Le racolte le dependava dai caprissi de le stagion, e i inverni fredi i lassava i granai vuoti. La gente la gavea de far de tuto par tirar vanti.

I òmeni cadorini, da tanto tempo, i se spostava ´ntei perìodi de calma par far qualche soldo fora: venditori ambulanti, careghete, operài ´nte le cave, legnai ´nte le foreste lontan o manovali in vilagi dei paesi visin. Ma cossì, i lassava le done a curar la casa, i fiòi e la tera. Anca se restava sole, le done del Cadore le zera forti e coraiose. Tante le ghe trovava modo de contribuir par mantegner la dignità de la famèia.

Le cròmere, le vendedore ambulanti, le zera un esémpio de sto coraio. Maria, vardando le altre, la ga deciso de seguir la stessa strada. La ze diventà ‘na cròmera, ‘na vendedora ambulante che portava no solo mersi, ma anca l’ànima del Cadore.

Maria la caminava ´nte le strade tortuose, portando drio lensioli ricamà, erve profumà, spessiarie, vieri e pìcole stàtue de legno. Le so robe le zera tesori che parlava del so paese. La vendeva anca stampe con santini e calendari, tute colorà, fate da ´na famosa stamperia véneta. Par Maria, vender no el zera solo far soldi: el zera portar la stòria e l’essensa de la so tera, passo dopo passo, par un doman mèio.

La resolussion no la zera stà fàssile. Ancora zòvane, Maria Santina la ga afrontà le inssertese de ‘na vita nova, partendo par la prima volta con poco pì che el coraio che la se porta da generassion de cadorini resilienti. Sopra le spale, come ‘na bissaca, la portava ‘na gran cassa de legno ben ordinà da la so mama, pien de prodoti che la so aldeota la sapeva far ben: linsioi ricamà con motivi fioreai che pareva che caturava l’essensa de le fior de campagna de i vali, pìcole cose de legno intaià che se vedea la pressisione de mani che trasformava el semplisse in sublime, e erbe aromàtiche, colte con amore sui campi intorno a Valle de Cadore. Ogni roba no el zera solo ‘na mercansia; la zera ‘n framento de la so tera, ‘na parte viva de l’identità cadorina, che Maria la portava come se portava un tesoro.

La via l’era lunga e solitària, ‘na traversia che la metea a la prova tanto el corpo come el spìrito. Maria la caminava par dì interi, con i piè proteti solo da scarpe de cuoio che a volte no le resisteva ben a le piere afilà de le strade montanare. La afrontava piove improvise che le insupava i vestiti e rendea i sentieri pien de fango, e el fredo che taiava de primavera, che pareva che entrava fin drento i ossi. Ma lei la ndava avanti, guidà da quela determinassion che la vita tra le Dolomiti le ga insegnà fin da picolina: la sopravivensa la zera ‘na lota, ma la lota la valea la pena.

Quando la traverssava la frontiera de l’Àustria e lei rivava al primo paeselo, la sentiva el cuor bàtere pì forte. Le paesàgi conossù le davano posto a qualcosa de diferente: case robuste de piera con teti inclinà, strade ben sistemà che pareva che lore fosse fate par resistir al rigore de l’inverno e persone dal viso riservà, ma curiose. Ze stà ‘na tera nova, ma Maria no la se ga intimidà.

A ogni porta che la bateva, lei ofriva no solo le so mercansie, ma anche un soriso caloroso che pareva che disperdeva ogni difidensa. Con la vose ferma, lei la parlava de la so vila, descrivendo le montagne, i russeli e la vita semplice, ma pien de significà. La presentava i lensoi come se fosse stati pesi de paesàgio che la ga lassià indrio, i artefati de legno come rapresentassion de el lavoro àbile del so pópolo e le erbe aromàtiche come ‘na promessa de salute e benessere. Ogni vendita no la zera solo ‘na transassion comerssiale; la zera ‘na scambi de cultura, un momento ndove Maria la condividea un peso de la so stòria e, in cámbio, la imparava del mondo al di là de le frontiere de Valle de Cadore.

Le noti forse le zera la parte pì difìssile. Dopo un zorno intiero a caminar e a negossiar, la sercava rifùgio ndove che poteva: stale, case de famèie generose o, a volte, soto el ciel stelà, avolta in un grosso copertor par scassiar el fredo. Ancora, anche ´ntei momenti de solitudine, la sentiva el calore de la so mission. Par lei, ogni passo el zera ‘n avanso verso un futuro pì prometente, e ogni incontro con i austriaci e i svisseri la zera ‘na possibilità de mostrar el valore de la so tera e del so lavoro.

Maria sùbito la scoprì che la vita de ‘na cròmera la ghe volea pì che forsa fìsica. Ogni zorno el zera ‘na prova de resistensa e astùssia. La capassità de negossiar la zera essenssial; la dovea valutà sùbito l’interesse dei so clienti e adatar le so stratègie. A volte, questo volea dir ofrì ‘na ridussion sotile, contar ‘na stòria su le origini dei prodoti o semplicemente ascoltar con pasiensa le lagnanse di chi no ga l´intenssion de comprar. La pasiensa la zera la so maior qualità, specialmente davanti a le rifiuti. No tuti i vèrzer le porte a ‘na straniera, e i sguardi difidenti spesso la seguiva per le strade. Ma Maria la portava con sé ‘n spìrito resiliente che parea crèsser davanti a le dificoltà.

Quel che la sosteneva la zera l’idea che ogni moneta guadagnà la zera pì che un guadagno materiale; el zera un passo verso un futuro miliore par la so famèia. Ogni centèsimo acumulà el zera ‘na promessa che Angelina, la so fiola, la gavarà ‘na vita pì cómoda, e che Pietro, el so marito, el podarà coltivar le so tere sensa le preocupassion incessanti de la sopravivensa. La zera questa visione che la fasea continuà, anche quando i so piè i dolea de tanto caminar o quando el peso de la borsa la pareva insoportà.

Con el passar dei ani, Maria la tornava sempre a la stessa època, diventando ‘na presensa familiare e ben voluta ´ntei paeseli che lei visitava. El so assento italiano, segnà da la cadensa dolse dei cadorini, la zera afassinante, e la so vose melodiosa spesso la trasformava ‘na semplisse interassion comerssiai in un momento de conession umana. I bambin i la seguiva per le strade come se la zera ‘na fata viandante, afassinà dai pìcoli zoghi de legno che lei la mostrava con destressa. Par i adulti, Maria la zera ‘na dona forte, determinà e bona. I contadin i la amirava per el so coraio e laoro duro, mentre le massaie le vedeva come ‘na amica con cui se poteva condividir confidense e risate.

Fu in canton de Schaffhausen, visin a la frontiera con la Germania, con le coline dolsi e i vigneti ben alineà, che Maria la trovò ‘na sorta de seconda casa. Là, lei se ospitava con Maddalena, ‘na cusina che con el matrimónio la se trasferì ani prima e che la acolse con le brassi verti. Le due le gavea la stessa età e se scriveva spesso. Durante le noti frede, le due done, unì per le so stòrie de resistensa, le se sedeva visin al fogo e le condivideva ricordi de la zovinessa. Maddalena la contava le dificoltà dei primi ani in Svizzera, mentre Maria la parlava de la nostalgia de la famèia e de le paesagi de Valle de Cadore. Tra risate e làgreme, loro le trovava consolo ´na in l’altra.

Dopo queste noti de chiachiere, Maria la organisava la so cassa con cura quasi serimonial, piegando i lensuoi ricamà e verificando se i artefati de legno i zera intati. Ogni pedo el zera ore de lavoro e speransa. Nonostante la rotina dura, Maria no la smeteva mai de scriver lètare a Pietro, racontando i progressi e chiedendo de come ´ndava la piantagion, e a Angelina, riempiendo le pàgine de teneressa e promesse che la tornerà con stòrie da contar e regali da spartir. Queste lètare, inviate religiosamente, le zera la sua forma de rimaner conessa a la tera che la ga lassià e al futuro per cui lei lotava con tanto cuore.


Nota del Autor

El romanso El Camin de le Stagion: La Vita de na Cròmera el ze 'na òpera che prova a contar la essensa de 'n tempo e de 'n pòpolo che, tante volte, le so stòrie la ze restà desmentegà ´ntei anfrussi del passato. Anche se la ze inventà, sta stòria la ze sta ispirà profondamente da fati stòrici e raconto che l'autor el ga podesto conosser, sia per scriti che per memòria tramandà dai dissendenti de le famèie che i ga vissù ´ntle zone del Cadore e d'intorno. La via de Maria Santina la ze, al stesso tempo, un omenaio e 'n tributo a le famèie cadorine che, con coraio e resistensa, le ga superà i dificultà de 'na vita de sacrifìssi, ma che ga trovà la forsa par salvar la so identità, cultura e eredità. Queste famèie, rapresentà ´ntela figura de Maria, le incarna el spìrito de lota, adatassion e speranssa che va oltre le generassion e le frontiere. Sto libro, dunque, no el ze sol 'na stòria inventà; el ze 'na finestra par guardar al mondo de chi che ga traversà le montagne, no solo par mantègner la famèia, ma anca par portar con loro l'ànima de la so tera. Che sta stòria ispire in ogni letor la stessa amirassion e rispeto che ga motivà la so creassion.

Con gratitude, 

Dr. Piazzetta