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sexta-feira, 22 de agosto de 2025

O Retorno Que Nunca Veio


O Retorno Que Nunca Veio
Crônica da coragem e da saudade dos imigrantes italianos no sul do Brasil

No verão de 1885, a palavra “Mérica” corria como vento quente pelas vielas poeirentas de San Martino di Lupari, na província de Pádua. Nos campos de trigo dourado e nos pátios silenciosos das casas de pedra, o murmúrio ganhava força. Diziam que havia terras imensas, onde o sol amadurecia vinhedos novos e as colheitas cresciam sem o peso dos impostos. Cartas atravessavam o Atlântico como folhas ao vento, escritas por aqueles que haviam partido antes. Vinham da Argentina e do Brasil carregadas de promessas — nelas, a América era pintada como a nova Gênesis, onde leite e mel corriam livres, e o ouro parecia repousar sob cada pedaço de terra.

Foi nesse cenário que Santo Bortelini, tio materno de Antonio Belluzzo, tomou a decisão que alteraria o curso de toda a família. O Vêneto, com suas planícies exaustas e colheitas cada vez mais magras, já não oferecia mais do que trabalho pesado e recompensas escassas. Santo, homem de coragem obstinada, partiu levando a esposa e as duas filhas pequenas. O embarque em Gênova foi silencioso e definitivo, como se cada passo sobre o cais fosse um rompimento com séculos de raízes.

Meses depois, as primeiras cartas começaram a chegar. O papel amarelado cruzara oceanos trazendo palavras embebidas em esperança. As frases eram medidas e precisas, mas carregavam um perfume de otimismo irresistível: falavam de terras férteis, onde a enxada parecia abrir não apenas o solo, mas um futuro inteiro; descreviam um clima generoso, onde o frio não esmagava as sementes e o sol amadurecia tudo com pressa; falavam de abundância, como se a fartura fosse uma recompensa garantida a quem tivesse força para trabalhar.

Essas cartas, lidas e relidas à luz fraca das lamparinas, caíram como sementes na imaginação dos que ficaram. Alimentaram sonhos que, até então, pareciam inalcançáveis. Cada palavra funcionava como um chamado silencioso para além do Atlântico, empurrando jovens e velhos a acreditar que, do outro lado do oceano, existia uma nova vida à espera.

Três anos mais tarde, Antonio, aos vinte anos, já sentia o mesmo peso de incerteza que havia empurrado tantos para longe do Vêneto. As cartas do tio Santo, cheias de promessas e detalhes sedutores, tinham se enraizado em sua mente como uma necessidade urgente. Com o pai, a mãe e os irmãos, embarcou em Gênova num vapor abarrotado de famílias como a sua, todas carregando o mesmo fardo invisível: um passado de privações e um futuro feito apenas de expectativas.

O navio cortava o oceano como uma lâmina lenta, e cada dia parecia suspenso no tempo. Vinte e dois dias se arrastaram entre o cheiro persistente de sal, o ranço das provisões mal conservadas e o ferro frio das correntes. O mar, às vezes sereno como um espelho, às vezes brutal como um animal ferido, embalava o navio e testava a resistência dos passageiros.

Quando finalmente avistaram a costa, o horizonte parecia dissolver as últimas ilusões. O cheiro salgado do Atlântico misturava-se ao odor metálico das correntes e ao ar espesso do porto. O som cadenciado das ondas foi sendo abafado pelo ruído áspero das gruas, dos guindastes e da multidão que se aglomerava. O cais porto do Rio de Janeiro surgia como uma entrada estreita para um mundo totalmente novo, mas ainda envolto em silêncio e estranheza.

Mal desembarcado, Antonio sentiu que o calor úmido e o movimento caótico daquela cidade desconhecida não eram o destino final sonhado durante a travessia. Com poucas palavras, pediu transferência para o Rio Grande do Sul, onde corria a fama de que as colônias italianas ofereciam melhores terras e clima mais próximo ao do Vêneto.

A espera, porém, tornou-se uma provação silenciosa. Setenta dias permaneceram na Hospedaria de Imigrantes, um edifício vasto, mas saturado de gente e de histórias interrompidas. Os corredores ecoavam passos apressados e murmúrios em dezenas de dialetos. Nos dormitórios coletivos, as famílias dividiam o pouco espaço que havia, e cada olhar carregava uma mistura incômoda de desconfiança e esperança. A umidade impregnava roupas e paredes, e o tempo parecia preso ali dentro, arrastando-se dia após dia. Para Antonio, cada amanhecer era mais um lembrete de que a promessa de um novo começo ainda estava suspensa, à espera de um chamado que nunca chegava depressa o bastante.

No dia 13 de maio de 1888, Antonio finalmente chegou ao Rio Grande do Sul. As cidades estavam tomadas por uma agitação incomum: era o dia em que a escravidão havia sido abolida no Brasil. Ruas fervilhavam com vozes exaltadas, passos apressados e celebrações dispersas. Para a história nacional, era um marco.

Mas, para Antonio e sua família, a data trazia outro significado — mais silencioso, mais áspero. A chegada não se pintava de cores festivas, mas de tons sombrios de incerteza. O que encontraram foi pobreza imediata, uma desorientação sufocante, a completa ausência de crédito e qualquer forma de amparo. Não havia ferramentas suficientes para cultivar, nem abrigo seguro contra o frio ou a chuva. Cada detalhe parecia reforçar a sensação de que a “terra prometida” talvez fosse apenas uma miragem bem contada em cartas.

Ali, no coração da cidade que comemorava a liberdade de um povo, Antonio sentiu que a liberdade dos imigrantes significava apenas enfrentar sozinhos um território imenso e indiferente. O sonho americano, que havia atravessado o Atlântico, parecia, de início, um equívoco cruel.

Longe dali, na Itália, o avô e o tio Giovanni, que haviam ficado, aconselharam o retorno. Mas o pai de Antonio, Vittorio, e o tio Prospero estavam exaustos de travessias. Não era apenas o cansaço do corpo — marcado por semanas no porão de um navio e meses em hospedarias superlotadas —, mas o desgaste silencioso de quem já havia gasto quase todas as reservas de esperança. Carregavam, nos ombros curvados, o peso invisível da escolha: voltar à Itália seria admitir derrota e enfrentar o olhar inquisidor dos que ficaram; permanecer significava abraçar o desconhecido e aceitar uma terra que ainda não os aceitava. Entre a humilhação do retorno e a incerteza da permanência, escolheram ficar.

As primeiras plantações de milho e trigo surgiram como um voto silencioso de confiança na terra. Os campos, antes cobertos por mato espesso e raízes retorcidas, foram abertos à força, com suor e ferramentas improvisadas. A cada sulco arado, parecia nascer não apenas uma fileira de sementes, mas também uma promessa de estabilidade.

A terra, embora dura e exigente, devolvia respostas visíveis. Brotos verdes começaram a despontar timidamente, criando manchas vivas sobre o solo marrom. O sol, implacável durante o dia, incendiava as colinas com uma luz quase cortante. E a chuva, embora nem sempre previsível, às vezes caía no momento exato, como se entendesse a necessidade dos que a aguardavam com ansiedade.

Cada grão germinado tornava-se uma confirmação silenciosa de que talvez fosse possível resistir. Mas no coração de Antonio ardia uma saudade que o trabalho não conseguia sufocar. Cada dia passado longe do Vêneto acrescentava um peso invisível à sua memória. A tia Lucia, envelhecida pela dureza dos dias, carregava esse peso de forma ainda mais evidente. Seu rosto trazia marcas não apenas do tempo, mas também da resignação de quem havia deixado para trás uma vida inteira em troca de um futuro que não se concretizava como prometido.

Ela raramente expressava seus sentimentos em palavras. Seus lamentos eram silenciosos, manifestos no modo como parava diante das matas densas e sombrias que cercavam a colônia. Ao olhar para aquele mundo bruto e intocado, sentia que Cristóvão Colombo havia traído todos ao revelar um continente que parecia destinado aos selvagens e não aos filhos cultivados do delicado solo italiano. Para ela, cada árvore retorcida e cada colina áspera eram um lembrete amargo de que a América não fora feita para acolher, mas para testar até o limite a resistência dos que ousassem fincar raízes ali.

Mesmo assim, o tempo avançava, implacável e inevitável. Com as mãos endurecidas pelo uso constante da enxada e do arado, Antonio tornou-se parte daquela terra áspera, moldando o solo com esforço e determinação. A cada estação, as lavouras cresciam, e ele ajudava a expandir os campos, transformando clareiras antes tomadas pelo mato em áreas produtivas.

Plantaram vinhedos, e as parreiras jovens começaram a escalar as encostas com uma promessa de vida e sabor. O verde intenso dos ramos trazia uma nota de esperança à paisagem, desenhando linhas de cor e lembrando a Antonio o perfil familiar das terras de San Martino, mesmo que distante.

Com o tempo, conseguiram abrir portas para crédito, conquistando a confiança dos poucos comerciantes e instituições locais que ousavam apostar naquele grupo teimoso de imigrantes. A miséria, embora persistente, foi cedendo espaço a uma rotina dura, mas marcada por uma estabilidade tênue — um equilíbrio frágil entre a luta constante e a promessa silenciosa de dias melhores.

Ainda assim, a terra natal jamais abandonou o coração de Antonio. Cada amanhecer trazia consigo o mesmo peso silencioso, uma mistura agridoce de saudade e resignação. Ele sabia, com a clareza cruel que o tempo impõe, que sua vida estava sendo construída longe da pátria — num solo estranho, onde a natureza exigia mais do que podia oferecer em retorno.

O horizonte distante da colônia jamais apagou a imagem das colinas de San Martino di Lupari, onde o céu parecia tocar o chão com delicadeza e onde o tempo fluía com a lentidão dos vinhedos. Ali, naquela terra natal, suas raízes profundas ainda se entrelaçavam com sua identidade — uma identidade que nem a distância, nem o suor derramado poderiam apagar.

A “Mérica”, como fora descrita nas cartas, não era a terra de leite e mel que as palavras haviam pintado com tanta generosidade. Era uma terra que não prometia nada, nem oferecia garantias, mas que, impiedosa, devorava o corpo e moldava a alma dos que tinham coragem de ficar. Era um solo onde a esperança se misturava à dureza da realidade, onde os sonhos sobreviviam apenas à sombra da perseverança.

Antonio aprendeu que emigrar não era apenas atravessar oceanos, mas carregar dentro de si uma luta diária, silenciosa, para transformar o que parecia inóspito em lar — um lar feito de coragem, de sacrifícios, e da eterna busca por um lugar onde o coração pudesse repousar.

E embora Antonio jamais tenha voltado a pisar as terras de seu nascimento, suas mãos e seus esforços plantaram mais do que apenas sementes no solo brasileiro. Plantaram raízes invisíveis que cresceriam nas gerações futuras — filhos e netos que, entre os vinhedos e as colheitas, carregariam a memória da pátria distante e a força de quem ousou transformar o deserto em promessa. A saga da família Belluzzo, marcada pela coragem e pela luta silenciosa, continuaria a ser escrita, não em cartas cruzando oceanos, mas em cada amanhecer daquela terra que, apesar de tudo, passou a chamar de lar.


Nota do Autor

Esta narrativa é uma ficção inspirada nas memórias e cartas dos imigrantes italianos que, no final do século XIX, atravessaram oceanos e fronteiras em busca de um futuro incerto no Brasil. Embora os nomes e detalhes tenham sido alterados, o coração da história permanece fiel à experiência daqueles homens e mulheres que enfrentaram dificuldades inimagináveis, carregando consigo a esperança e a dor da separação. Escrevo esta história para preservar a memória daqueles que deram suas vidas — muitas vezes em silêncio e anonimato — para construir as bases das comunidades que hoje prosperam. É uma homenagem à coragem dos que permaneceram, ao sacrifício dos que duvidaram, e à resiliência das famílias que, mesmo diante do abandono e da dureza, jamais esqueceram suas raízes. Em tempos em que a migração ainda é motivo de esperança e conflito, lembrar essas histórias é essencial para compreender o preço do sonho e o valor da perseverança humana. Que esta obra possa ser um farol para aqueles que buscam suas origens e um tributo à força que habita nos corações que atravessam mares.

Dr. Luiz C. B. Piazzetta


quinta-feira, 5 de junho de 2025

Horizontes de Esperança

 


Horizontes de Esperança

Marmora, província de Cuneo em 1883

Um romance histórico inspirado enm fatos reais


Giovanni Morandello nasceu em 1883 na pacata vila de Marmora, situada a poucos quilômetros de Dronero, na província de Cuneo. A família Morandello era composta por camponeses humildes, que dependiam da agricultura de subsistência para sobreviver. Giovanni, desde muito jovem, conheceu o peso da responsabilidade. Aos dezesseis anos, seguiu os passos de muitos jovens da região e tornou-se um emigrante sazonal, viajando para a França para trabalhar nas colheitas e economizar o máximo possível.

A vida na casa dos Morandello seguia um ciclo imutável: primavera e verão eram dedicados ao plantio e à colheita nos campos da família, enquanto o inverno levava Giovanni de volta à França, onde enfrentava jornadas árduas no frio intenso. Todo o dinheiro que ele ganhava era entregue aos pais, que o utilizavam para manter a família à tona. Contudo, o passar dos anos trouxe um sentimento crescente de insatisfação e inquietação a Giovanni.

Em 1905, aos 22 anos, Giovanni tomou uma decisão que mudaria sua vida para sempre. Dois conhecidos de Marmora, que haviam emigrado para o Brasil, enviaram cartas cheias de promessas sobre as oportunidades no novo continente. Eles afirmavam que, com trabalho duro, era possível construir um futuro melhor, longe da pobreza e das restrições do Piemonte. Giovanni não hesitou. Conversou com os pais, que venderam uma vaca para financiar sua viagem, e decidiu partir.

Giovanni não viajou sozinho. Na mesma caravana estavam Rosa e Teresa, duas jovens de Marmora. Rosa queria reencontrar o noivo, que trabalhava como pedreiro em São Paulo, enquanto Teresa buscava escapar das perspectivas limitadas oferecidas às mulheres de sua aldeia. Os três partiram a pé em direção a Nice, onde pegaram um trem para Le Havre. Ali, no movimentado porto, embarcaram no navio “La Bourgogne” em uma manhã fria de janeiro de 1906.

A travessia do Atlântico foi tudo menos tranquila. As tempestades de inverno agitavam o mar com fúria, e o balanço constante do navio deixava muitos passageiros debilitados. Giovanni, no entanto, parecia incansável. Ele ajudava Rosa e Teresa quando elas ficavam doentes, mantendo a esperança viva com histórias sobre o que encontrariam do outro lado do oceano.

Ao chegar ai Porto do Rio de Janeiro, o trio passou pelo controle de imigração na Ilha das Flores. Giovanni carregava pouco dinheiro mas sua saúde robusta e disposição para o trabalho o ajudaram a atravessar o processo sem maiores problemas. Após alguns dias na Hospedaria dos Imigrantes, Giovanni seguiu viagem para São Paulo, onde ouviu falar de empregos na construção civil.

São Paulo era um mundo completamente diferente de Marmora. Giovanni ficou fascinado e assustado com o tamanho da cidade, mas não deixou que isso o intimidasse. Trabalhou em várias obras, levantando pontes e prédios que moldariam o horizonte da metrópole. Foi nesse período que conheceu Luigi Bruni, outro imigrante italiano, que lhe falou sobre oportunidades no sul do Brasil. Decididos a buscar melhores condições, Giovanni e Luigi embarcaram em um outro navio no porto de Santos rumo ao Rio Grande do Sul.

No Sul, Giovanni enfrentou os maiores desafios de sua vida. Em Porto Alegre contratado para trabalhar na construção de uma barragem, um projeto colossal em meio à paisagem semi tropical ao lado do rio Guaíba. Em um trágico incidente, uma explosão acidental de dinamite matou dois colegas de trabalho, lembrando Giovanni dos perigos constantes daquele ambiente. Ainda assim, ele perseverou, economizando cada centavo com o sonho de voltar para a Itália.

Mais tarde, Giovanni se juntou a uma equipe de operários que instalava trilhos para a expansão da ferrovia que ligava o Rio Grande do Sul com resto do país. Embora o trabalho fosse exaustivo, ele encontrou conforto no fato de estar ao ar livre, rodeado por montanhas e vastas planícies. Durante as noites, escrevia cartas para sua amada, Maria, que havia prometido esperá-lo em Marmora.

Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, Giovanni decidiu que era hora de retornar à Itália. Com uma pequena economia acumulada, ele embarcou em um navio em direção ao Rio de Janeiro e dali para Gênova. No entanto, ao chegar, encontrou um país devastado pela inflação e pela iminente guerra. O dinheiro que ele havia economizado com tanto sacrifício perdeu rapidamente o valor.

Giovanni voltou a Marmora, onde casou-se com Maria e retomou a vida de camponês. Devido a sequela da ferida em uma das pernas devido a explosão de dinamite na barragem brasileira, ele não foi chamado para servir o exército. Apesar das dificuldades, ele nunca perdeu a esperança. Contava histórias sobre suas aventuras no Brasil para seus filhos e netos, lembrando-os de que a coragem e a resiliência eram as maiores riquezas que um homem podia possuir.


Nota do Autor

A história de Horizontes de Esperança nasceu do desejo de dar voz aos milhares de imigrantes italianos que deixaram suas terras em busca de um futuro melhor no Brasil. Embora este romance seja uma obra de ficção, ele é profundamente inspirado nas experiências reais dos pioneiros que enfrentaram desafios imensuráveis, desde a travessia do Atlântico até a luta por dignidade e progresso em terras desconhecidas.

Giovanni Morandello representa o espírito resiliente de tantas pessoas que, como ele, partiram de vilarejos como Marmora, na província de Cuneo, deixando para trás famílias, histórias e raízes. Ao longo de sua jornada, ele se depara com dificuldades que refletem as condições de muitos imigrantes: trabalhos árduos, a distância de seus entes queridos e a constante busca por um lugar no mundo.

Minha intenção ao escrever este romance foi trazer à tona não apenas as adversidades, mas também a coragem, a esperança e os pequenos triunfos que moldaram essas vidas e ajudaram a construir a história do Brasil. Que esta obra seja um tributo aos sonhos e sacrifícios daqueles que cruzaram oceanos carregando consigo a força de sua cultura e a esperança de dias melhores.

Dr. Piazzetta



domingo, 26 de maio de 2024

Raízes de Esperança: A Odisseia dos Bottarello





Desespero e Esperança


No final do século XIX, a Itália enfrentava uma crise profunda. A unificação recente do país não havia sido capaz de resolver as desigualdades sociais e econômicas que afligiam o povo. No Vêneto, em particular, a situação era desesperadora. As terras férteis, uma vez prósperas, estavam agora exauridas e incapazes de sustentar as famílias que delas dependiam. A importação de grãos de outros países como Rússia e Estados Unidos, contribuíam para o desestímulo da ainda atrasada agricultura do país. Proprietários rurais desistiam de plantar, vendendo as terras, e desemprego era crescente, a fome constante e esses abandono do campo levavam muitos a considerar alternativas extremas para garantir a sobrevivência.
Na frazione Bosco, no comune de Vidor, vivia a família Bottarello. Carlo Bottarello, um homem de 28 anos, trabalhava arduamente como mezzadro, dividindo os escassos rendimentos de suas colheitas com o proprietário das terras. Ao seu lado estava Marietta, sua esposa de 27 anos, e seus quatro filhos: Carmela, de 8 anos; Domenico, de 6; Rinaldo, de 4; e Giuditta, de apenas 2 anos. Também faziam parte da família os pais de Carlo, o nono Matteo, um experiente agricultor e artesão de pouco mais de 50 anos, e nona Maria, uma mulher de 48 anos que trazia a sabedoria e a força dos anos.

A Decisão Dolorosa


Os Bottarello enfrentavam uma situação insustentável. As colheitas eram insuficientes e a maior parte do que conseguia colher tinha que dar para o proprietário da terra onde trabalhava e a fome começava a rondar a casa. As crianças, com rostos pálidos e olhares famintos, eram um lembrete constante das dificuldades. A família fazia somente uma refeição ao dia, que quase sempre consistia de polenta com alguma erva para dar sabor e para as crianças com um pouco de leite. Carne somente comiam se por sorte tivessem caçado alguns pássaros. Em muitas famílias vizinhas e também na de Carlo, inúmeras vezes a polenta era servida sem acompanhamento e sobre a mesa Marietta amarrava uma sardinha, ou muito raramente um pequeno pedaço de salame, com um longo  barbante, e cada um ao seu turno tocava na iguaria com o seu pedaço de polenta para dar um pouco de sabor. Situação difícil, dramática e insustentável. Carlo, desesperado por uma solução, sem dinheiro para comprar passagens de navio, ouviu rumores sobre a possibilidade de emigrar para o Brasil. O governo brasileiro sofrido de falta de mão de obra e em uma tentativa de povoar suas terras, oferecia passagens gratuitas para famílias dispostas a cruzar o Atlântico em busca de uma vida melhor.
Após semanas de deliberação e noites insones, Carlo decidiu que não havia outra opção. A família inteira reuniu-se ao redor da mesa de madeira maciça, marcada pelo tempo e pelo uso. As lágrimas escorriam pelo rosto de Marietta enquanto segurava firmemente a mão de Carlo. Nono Matteo, com olhos cansados, mas resolutos, concordou com a decisão, sabendo que era a única esperança de um futuro para seus netos.

A Despedida e a Jornada


A manhã da partida foi marcada por uma despedida comovente. Amigos e vizinhos reuniram-se para dizer adeus, compartilhando abraços e lágrimas. Até o pároco Don Luigi, amigo de infância de Matteo com o qual compartilhou os bancos escolares, apareceu para abençoar o grupo. A pequena vila de Bosco testemunhou a partida dos Bottarello com um misto de tristeza e esperança.
A viagem começou com um trajeto de trem de Cornuda até Gênova. Para a maioria deles, era a primeira vez em um trem, e a experiência foi tanto excitante quanto aterrorizante. Ao chegarem a Gênova, insones e cansados pelas inúmeras paradas, depararam-se com o grande porto, um lugar movimentado e agitado, repleto de sons e odores desconhecidos. Esperaram ansiosos no cais pelo navio que os levaria ao Brasil, o Duca di Galliera.

O Oceano Traiçoeiro


O embarque foi rápido, e as condições encontradas a bordo eram precárias. A superlotação era evidente, e os Bottarello mal encontraram um espaço para se acomodar. Nos porões úmidos e mal ventilados o cheiro de corpos suados e do mar misturava-se, criando uma atmosfera opressiva. Durante a travessia, enfrentaram tempestades violentas que balançavam o navio de maneira assustadora, fazendo com que muitos passageiros, incluindo os filhos mais novos de Carlo, ficassem doentes. O terror causado pelo medo de um naufrágio e morrerem no meio daquelas tormentas, fazia com que muitas mães perdessem o leite, o que levava ao óbito de muitos lactentes. 

Novo Mundo, Novos Desafios


Após semanas de tormento no mar, finalmente avistaram o porto do Rio de Janeiro. A chegada foi um alívio, mas os desafios estavam longe de terminar com o desembarque. Passaram quatro dias abrigados na Hospedaria dos Imigrantes, onde foram alimentados, registrados e receberam algumas orientações básicas.
Passado os quatro dias, a próxima etapa da jornada de todo o grande grupo de imigrantes foi outra viagem de navio até o Rio Grande do Sul. No porto de Rio Grande, foram acomodados provisoriamente em grandes barracões de madeira, aguardando os barcos menores que os levariam rio acima até a Colônia Caxias. Após dez dias de angustiante espera, embarcaram em pequenos barcos fluviais, cruzando a Lagoa dos Patos contra a correnteza e passando por Porto Alegre sem desembarcar.

A Caminho da Colônia


Com os pequenos barcos subiram pelo rio Caí até a pequena cidade de São Sebastião do Caí, onde finalmente desembarcaram. Após um dia de descanso, iniciaram a difícil subida da Serra a pé, em grandes carroças e no lombo de mulas. A subida era árdua, e os funcionários do governo brasileiro abriam caminho estreitos com foices e facões para o grupo avançar. A selva entorno era densa e implacável, com árvores gigantescas e dela saíam sons de animais que traziam muito medo às crianças. A jornada parecia interminável.

Nova Vida na Colônia Caxias


Ao chegarem na Colônia Caxias, foram acomodados provisoriamente até que tomassem conhecimento do lote que lhes fora destinado. A construção de um abrigo de pau a pique foi a primeira tarefa na nova terra, um trabalho exaustivo, mas necessário. Os contínuos sons desconhecidos da floresta, urros e gritos dos animais, como bandos de macacos e periquitos causavam medo e inquietação. Muitas vezes, durante a noite, se ouviam os urros de animais ferozes que rodavam os frágeis  casebres, deixando todos amedrontados.
Os primeiros meses foram de desânimo e sofrimento. O frio intenso das noites serranas e a solidão no meio da mata virgem eram opressivos. Sem conforto religioso de padres ou de médicos, se sentiam abandonados no meio do nada, estavam realmente isolados do mundo. Mas a fé no futuro e a resiliência os mantiveram firmes. Limparam uma parte do terreno para o primeiro plantio, semearam milho e trigo, enfrentando as adversidades com determinação.

Progresso e Sucesso


Os anos passaram, e a família Bottarello, com trabalho árduo e perseverança, começou a ver os frutos de seus esforços. Aos poucos construíram uma nova casa sólida de madeira, um símbolo de sua melhoria progressiva. Após alguns anos, finalmente alcançaram o sucesso.
A família agora prosperava em suas terras, um contraste marcante com os dias de fome e desespero na Itália. Carlo e Marietta, com seus filhos crescidos, olhavam para trás com orgulho e gratidão, sabendo que a difícil decisão de emigrar havia sido a chave para um futuro melhor.
A jornada dos Bottarello era uma história de sacrifício, resiliência e triunfo, um testemunho do espírito indomável daqueles que buscaram um novo começo em terras distantes.

As Raízes no Novo Mundo

A vida na Colônia Caxias, agora bem estabelecida, florescia em meio ao trabalho árduo e ao espírito comunitário dos imigrantes. Carlo e Marietta não apenas cultivavam suas próprias terras, mas também ajudavam novos colonos que chegavam. Nono Matteo tornou-se uma figura respeitada na comunidade, compartilhando suas habilidades artesanais e ensinando técnicas de cultivo aos jovens.
Carmela, Domenico, Rinaldo e Giuditta cresceram em um ambiente de desafios e aprendizagens constantes. A infância difícil deu lugar a uma juventude marcada pelo trabalho, mas também por um sentido profundo de comunidade e pertencimento. Carmela, com seu espírito resiliente, começou a ensinar as crianças mais novas da colônia, contribuindo para a educação e a formação das novas gerações. Domenico, seguindo os passos do pai, tornou-se um agricultor habilidoso, enquanto Rinaldo demonstrava um talento nato para a carpintaria, ajudando o nono Matteo na oficina. Giuditta, a mais nova, florescia como uma jovem inteligente e curiosa, sempre pronta a ajudar nos afazeres diários.

A Comunidade e a Fé

A fé sempre foi um pilar para a família Bottarello, e com o tempo, a comunidade conseguiu construir uma pequena capela de madeira. A igreja tornou-se um ponto central na vida dos colonos, um lugar para as celebrações religiosas, casamentos, batismos e encontros comunitários. Nona Maria, com sua devoção inabalável, era frequentemente vista cuidando da capela, arrumando as flores do altar e organizando os encontros religiosos.

Desafios Renovados

Embora a vida estivesse se estabilizando, novos desafios surgiam constantemente. O clima imprevisível do sul do Brasil, com suas chuvas torrenciais e secas intensas, testava a resiliência dos colonos. Carlo, sempre preocupado com o bem-estar da família, investiu na diversificação das culturas e na criação de pequenos animais, garantindo uma fonte de sustento mais segura.
As dificuldades de comunicação e transporte também eram obstáculos constantes. As estradas de terra e as longas distâncias até os centros urbanos dificultavam o acesso a mercados e recursos médicos. A comunidade, porém, mostrou-se inventiva e colaborativa, organizando-se em grupos para enfrentar esses desafios. Carlo liderava muitas dessas iniciativas, sua experiência e liderança eram amplamente reconhecidas e valorizadas.

O Legado dos Bottarello

Com o passar dos anos, a família Bottarello tornou-se um exemplo de sucesso e perseverança. Os campos cultivados com milho e trigo expandiram-se, e a terra antes selvagem agora florescia com vinhedos e árvores frutíferas. A grande casa de madeira de três pisos e um grande porão de pedras, construída com tanto esforço, era um símbolo de estabilidade e prosperidade.
Carlo e Marietta, agora já idosos, olhavam com orgulho para seus filhos, que começavam a formar suas próprias famílias. A comunidade crescia, e a integração entre os imigrantes e os habitantes locais se fortalecia, criando uma sociedade rica em diversidade cultural e cooperação.

Um Novo Ciclo

Enquanto a colônia continuava a se desenvolver, a chegada constante de novos imigrantes renovava o espírito pioneiro da região. Carlo e Marietta, agora avós, recebiam com alegria e hospitalidade aqueles que, como eles, buscavam uma nova vida. Matteo, apesar da idade avançada, continuava a ser uma presença sábia e encorajadora, enquanto nona Maria permanecia uma figura central de fé e suporte na comunidade.
A história dos Bottarello tornou-se uma inspiração para todos ao seu redor. A pequena capela de madeira, construída com tanto esforço, agora abrigava celebrações vibrantes, refletindo a alegria e a gratidão de uma comunidade que superou inúmeras adversidades.

Epílogo: A Promessa Cumprida

Quinze anos após a chegada ao Brasil, a família Bottarello olhava para o horizonte com a certeza de que seu sacrifício havia valido a pena. A terra brasileira, com suas promessas e desafios, havia se tornado um lar. Os descendentes dos Bottarello continuam a cultivar a terra com a mesma paixão e dedicação que seus antepassados trouxeram do Vêneto.
Carlo e Marietta, sentados na varanda de sua grande casa, assistiam ao pôr do sol, refletindo sobre a jornada que os trouxe até ali. A lembrança da Itália ainda vivia em seus corações, mas agora se misturava com o orgulho e a realização de terem construído um futuro melhor para sua família no novo mundo. A promessa de uma vida melhor havia sido cumprida, e a saga dos Bottarello se entrelaçava para sempre com a rica história da colônia Caxias, um testemunho eterno de coragem, fé e perseverança.